Em um mundo que cada vez mais intercala mídias em suas artes, o cinema e o videogame se interpolam e podem até confundir o espectador, já que encontramos jogos que parecem filmes interativos, e filmes (às vezes interativos) que parecem jogos. Infelizmente, não vemos muito sucesso de público e crítica em tramas derivadas de jogos, o que deixa os fãs desses games desconfiados e sem esperança para uma melhora nesse quesito. Apesar disso, alguns entusiastas tentam aproveitar resquícios de videogame em outros longas, mesmo estes não sendo adaptações de jogos eletrônicos.
Nessa matéria, citaremos rapidamente razões envolvendo esse insucesso no cinema, além de analisarmos características envolvendo filmes que poderiam ser facilmente inseridos em narrativas derivadas de games, principalmente devido a sua linguagem cinematográfica ficar bem similar à linguagem “gamística”.
Olhando um pouco para o futuro, também tentaremos mostrar o que a indústria deve perceber e fazer para que haja uma melhora nessa transposição de mídias, algo que pelo menos garanta sucesso entre os admiradores de games. Controles na mão? É isso aí, let’s play!
A linha tênue entre a razão e a paixão: o triste conto sobre filmes baseados em jogos
Houve uma época, alguns anos atrás, que especialistas em cinema diziam que após a febre de filmes de super-heróis, teríamos a febre de longas baseados em jogos de videogame. E apesar da quantidade de tramas derivadas em games ter aumentado recentemente, com longas como Warcraft: O Primeiro Encontro de Dois Mundos (Warcraft, 2016) , Assassin’s Creed (Assassin’s Creed, 2016), Tomb Raider: A Origem (Tomb Raider, 2018), entre outros, a crítica e os fãs continuam com a mesma opinião: a indústria ainda não alcançou o nível de qualidade esperado com relação a esse tipo determinado de cinema. Podemos citar um filme ou outro que representou bem essa transposição entre linguagens, tal como Terror em Silent Hill (Silent Hill, 2006) e até o primeiro Mortal Kombat (Mortal Kombat, 1995) que apresentaram e respeitaram, mesmo com alterações, a ambientação, narrativa e personagens envolvidos. Só que o mais recorrente é encontrarmos abominações como Alone in the Dark – O Despertar do Mal (Alone in the Dark, 2005), Street Fighter – A Última Batalha (Street Fighter, 1994) e Super Mario Bros. (Super Mario Bros, 1993), o último talvez sendo o mais famoso exemplo da imagem desgastada existente em longas derivados de jogos.
Fazer a adaptação cinematográfica de um game é uma oportunidade única de tentar popularizar determinada franquia, de diminuir os preconceitos que envolvem o mundo dos videogames, de tentar ganhar mais consumidores, mas também pode ser um verdadeiro tiro no pé, pois ao ser concretizado de forma insatisfatória, acaba afastando esses clientes em potencial.
Em termos de receita, os games faturam tanto quanto o cinema, e ocasionalmente, até ultrapassam a sétima arte nesse quesito. No Reino Unido, por exemplo, o setor de jogos representou mais da metade do mercado de entretenimento em 2018. Kim Bayley, diretora executiva da ERA (Entertainment Retailers Association) faz uma breve análise sobre essa situação em entrevista concedida à BBC: “A indústria de videogames tem sido incrivelmente eficaz em aproveitar as vantagens do potencial da tecnologia digital para oferecer novas e atraentes formas de entretenimento. Apesar de ser a mais nova entre as três indústrias (cinema, música e videogame), agora é de longe a maior.”
Com essa enorme representação no mundo do entretenimento, não demorou muito para que atores começassem a desempenhar papéis em jogos, estes dando vida a protagonistas importantes (Ellen Page em Beyond: Two Souls, Rami Malek em Until Dawn, Mads Mikkelsen em Death Stranding, entre outros) e consequentemente, associando os games a um lado mais dramático. Enquanto vemos essa veia cinematográfica chegar a jogos eletrônicos, por outro lado, não vemos longas recebendo as melhores qualidades encontradas na mídia game.
Com uma biblioteca de adaptações precária, os espectadores encontram essas qualidades que tanto procuram em filmes que não são derivados de games, mas que por uma particularidade ou outra, podem ser considerados uma ótima representação da linguagem encontrada nos jogos, e é esse assunto que veremos no próximo tópico.
Filmes que não têm base em jogos de videogame, mas que adaptam essa mídia melhor do que qualquer derivado
Diante da convergência gradativamente maior entre as linguagens cinematográficas e de videogames, podemos encontrar uma gama de longas com elementos derivados de jogos virtuais, especialmente no âmbito visual como WiFi Ralph: Quebrando a Internet (Ralph Breaks the Internet, 2018), Jogador Número 1 (Ready Player One, 2018), entre outros. Alguns conseguem até transpor outras características da chamada décima arte (a arte que integra elementos de outras artes). Mas quais seriam as narrativas que conseguiram transmitir melhor esses atributos no cinema?
No Limite do Amanhã (2014) (Edge of Tomorrow, Doug Liman)
Morrer, tentar novamente, rolar para o lado esquerdo, decorar os passos exatos que tenho que dar para conseguir avançar e derrotar determinado inimigo. Poderia estar simplesmente citando as etapas necessárias para derrotar um chefe, seja em games como Dark Souls, Castlevania, entre outros. No entanto, essas fases são exatamente o que o personagem Bill Cage (Tom Cruise) precisa aprender durante a narrativa do filme. Explicando de maneira rápida, Cage está no meio de uma batalha contra extraterrestres e ao matar um certo tipo de inimigo ganha o incrível poder de poder morrer e voltar no tempo. Esse poder dá uma vantagem única ao personagem, que consegue analisar todos os movimentos de seu opositor, fazendo com que ele se aprimore gradualmente e que consiga enfim chegar ao seu objetivo final.
No mundo dos games, esse ciclo que Cage se encontra é denotado como Curva de Aprendizagem. Um conceito bem simples, onde você inicia um jogo quase nem sabendo os botões que devem ser apertados, e no final, já domina plenamente as artimanhas que o jogo oferece.
Cada reinício (ou morte) de Cage é uma excelente representação daquele jogo que você salvou e que pode voltar para iniciar em determinada parte. A demonstração de armaduras metálicas pesadas, o conceito de looping temporal, algo utilizado em jogos como Life is Strange, e os inimigos variados em fases diferentes são outros atributos da linguagem de jogos eletrônicos que provavelmente fazem esse longa ser a melhor representação de um jogo de ação, sem ter base alguma em nenhum jogo.
Indiana Jones (trilogia clássica – anos 80)
Aperte um botão específico para correr e escape da pedra que te persegue incessantemente. Assuma um modo mais ativo, entrando em ação e atirando em tudo que vê pela frente, ou se esgueire entre matos e rochas para conseguir derrotar seu opositor sem ser percebido. A trilogia clássica de Indiana Jones traz muitas propriedades encontradas em jogos atuais de aventura. Os maiores exemplos são Uncharted e Tomb Raider. Inclusive, os diretores desses jogos, assumem publicamente a influência que Indiana Jones teve na narrativa e na concepção dos games.
Seja no modo como os filmes são narrados, ou nas sequências inspiradíssimas e quase ininterruptas de ação, o personagem interpretado por Harrison Ford consegue transmitir tudo que um protagonista principal de um jogo de aventura precisa: senso de humor, conhecimento, astúcia, e saber como enfrentar as adversidades encontradas; ou seja, o herói arquetípico de tantas narrativas.
O enredo de Indiana Jones é tão característico de jogos de videogame, que sua transposição para o mundo eletrônico foi feita diversas vezes, começando na época do Atari e inclusive chegando às versões mais atuais de consoles.
Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010) (Scott Pilgrim Vs. the World, Edgar Wright)
Derivado de uma série de histórias em quadrinhos, Scott Pilgrim contra o Mundo consegue unir diversos tipos de mídia durante sua exibição. O material base em si já continha elementos de videogame, sendo assim, o longa traz características visuais e sonoras que nos transportam ao mundo dos jogos antigos, tais como Sonic, Super Mario, Alex Kidd, entre outros.
Quando o protagonista derrota opositores, quando ganha vidas, quando encontra uma arma especial, tudo é demonstrado de maneira gráfica e sonora na tela, e sempre trazendo esse lado virtual para a trama. Aliás, a narrativa tem o conceito de que Pilgrim precisa derrotar 7 ex-namorados malvados (chefes) para ficar com o seu amor. As batalhas envolvendo esses namorados são uma ótima representação de combates encontrados em jogos de ação/luta e caracteriza muito bem sua evolução na jornada do herói.
Existem diversas referências a games durante o próprio filme, seja na música de Zelda tocada no início do longa, seja o nome da banda de Pilgrim que remete a um inimigo do mundo de Super Mario, ou mesmo uma brincadeira envolvendo o nome de determinado game (Pac Man se transforma em Puck Man); a trama é uma homenagem clara e explícita ao universo dos games, e consegue transpor de maneira hábil tudo que o envolve.
Black Mirror: Bandersnatch (2018) (Black Mirror: Bandersnatch, David Slade)
Se há um filme que chega muito perto da concepção de videogame, com certeza é Black Mirror: Bandersnatch. Se alguns jogos como Heavy Rain, Life is Strange, The Walking Dead ganharam a alcunha de jogos interativos, Bandersnatch é O filme interativo.
A ideia de trazer narrativas não-lineares com opções que alteram o andamento da trama não é novidade, inclusive sendo usada em livros, tal como “Jogo da Amarelinha” de Julio Cortázar, onde através de suas escolhas, você é direcionado para um determinado capítulo. Isso te lembra algum jogo, ou mais especificamente, lembra algum filme? Apesar de chegar próximo de um jogo, o longa não nos dá o total domínio das decisões, já que em determinadas partes, somos induzidos a repetir certas cenas. Isso provavelmente acontece devido às limitações tecnológicas, já que dar mais liberdade (e mais opções) para o espectador decidir o que fazer com a trama, aumentaria o gasto e o trabalho envolvido.
É interessante notar que o diretor do longa, Charlie Brooker, utilizou códigos de videogame na produção do roteiro (uma linguagem de programação chamada Twine), assim como ele relata em uma entrevista concedida à Variety: “É a única coisa que eu utilizei para fazer o tratamento da história funcionar. Sempre que eu tinha idéias, eu as colocava em uma caixa e tentava movê-las. É como fazer uma grande colcha de retalhos”.
O que Bandersnatch consegue como filme é algo incrível, e os fãs de videogames estão certamente atentos para o próximo passo que um longa (e uma concepção) como esse pode trazer.
Hardcore: Missão Extrema (2015) (Hardcore Henry, Ilya Naishuller)
O filme mais desconhecido da lista traz uma ideia até que inovadora para o cinema: que tal fazermos um filme de ação em primeira pessoa, com vários planos-sequência característicos de jogos de ação?
E foi exatamente esse resultado que o longa trouxe quando foi lançado. Gravado com câmeras Go Pro, Hardcore: Missão Extrema consegue colocar o espectador sob a perspectiva do personagem principal. E qual é o grande problema na transposição entre a mídia de filmes e games? Justamente fazer com que a interação do espectador o coloque como protagonista do filme e é justamente isso que a perspectiva em primeira pessoa traz para esse longa.
É literalmente uma representação gráfica de um jogo com estética FPS (first-shooter person, ou seja, jogos de tiro em primeira pessoa), tal como Call of Duty, Battlefield, ou o saudoso 007: GoldenEye (opa, não seria esse um jogo baseado em um filme?). Até a narrativa se assemelha a esse tipo de jogo, já que o longa traz apenas missões que são dadas sucessivamente para o personagem principal ir e concluir.
Há toda uma metalinguagem envolvendo o filme, e mesmo sendo o único longa do diretor Ilya Naishuller, este já consegue fazer um trabalho único, que nos transporta diretamente para o campo de batalha de um jogo, ou para o mundo louco e insano que o longa nos transmite.
Em busca do amanhã: os filmes baseados em games sobreviverão ao futuro?
O maior problema na transposição entre videogame-cinema é colocar o espectador como protagonista nos filmes (ou pelos menos fazer com que ele se sinta como um), e sabemos que isto é quase impossível em termos cinematográficos (apesar do já citado Black Mirror: Bandersnatch tentar fazer isso). Em um jogo, você é a pessoa que decide o rumo das ações, dessa forma, o nível de interação é muito maior, o que faz a relação com aquele tipo determinado de mídia ser mais intensa e completa. Em sua pesquisa (Jogos Cinematográficos ou Filmes Interativos? A semiótica e a interatividade da linguagem cinematográfica nos jogos eletrônicos), Luis Rodrigo Gomes Brandão, mestre em Design pela Universidade Federal de Pernambuco, exemplifica bem esse conceito: “Assim como o cinema, os jogos eletrônicos também utilizam a imagem e o som para estabelecer comunicação, mas necessitam de feedback imediato por meio de uma interface manual como o controle, o teclado e mouse. Entretanto, essas mídias convergentes se diferenciam quanto ao desenvolvimento da narrativa, pois nos games só ocorre mediante a intervenção do jogador em seus espaços navegáveis.”
Já sendo complexo por si só, ainda precisamos considerar o contexto envolvendo as questões de roteiro, pois se analisarmos, filmes geralmente têm uma narrativa de três atos, um valor que não se aproxima da infinidade de atos que podemos localizar em jogos, já que sua duração depende dos desdobramentos encontrados em sua própria narrativa.
Para Leonardo, estudante e grande admirador de jogos como Zelda: Ocarina of Time e The Last of Us, a indústria cinematográfica “deveria investir em séries, assim dando mais qualidade ao conteúdo base do game”. Em sua opinião, “oitenta minutos de filme são insuficientes para mostrar todas as facetas de um jogo; uma série, com aproximadamente 3 temporadas, seria excelente e daria muito certo”. A concepção demonstrada por Leonardo encontra embasamento, principalmente se olharmos a adaptação que a Netflix fez do game Castlevania, uma série (atualmente duas temporadas) que foi aclamada pelos fãs da saga e bem recebida pela crítica.
Em seu estudo “Estéticas Narrativas do Cinema Aplicadas a Games”, Richard Nunes da Silva, Tecnólogo em Jogos Digitais pela Universidade Feevale, analisa conceitos envolvendo essa transposição, e o que percebemos é que “se o público reconhece a história do game narrada em uma mídia diferente da original, a aceitação vai ser boa.”
Se essa interação não consegue ser semelhante, o que resta aos produtores é respeitar o trabalho base, ambientando as principais características do jogo e roteirizando algo no mínimo coerente com o universo estabelecido. Basicamente, quase toda narrativa moderna segue o esquema da Jornada do Herói, sendo assim, sempre haverá essa aproximação entre as duas mídias.
A intenção por trás de cada obra pode dizer muita coisa, pois muitos dos filmes adaptados em games tentam agradar a todos os tipos de público (no intuito de faturar muito), e talvez essa não seja a abordagem correta nesse caso. Pelo menos se considerarmos a opinião de Richard Souza, designer gráfico: “Geralmente os filmes são feitos para agradar todo o tipo de público, e render muita grana, muitas vezes fugindo da motivação inicial do game, e até mudando o gênero (Resident Evil por exemplo, creio eu que era pra ser um filme de suspense/terror, e não ação). Quando eles decidirem fazer filmes derivados de jogos eletrônicos para gamers, pode ser que dê certo”.
Não sabemos se o futuro dos longas derivados de jogos vai ser um belo Game Over ou um Continue, mas enquanto houverem pontos de save espalhados pelo ambiente, a esperança de que comecemos a ter uma leva de filmes minimamente aceitáveis e interessantes ainda existe. Enquanto isso, os fãs de jogos podem pegar sua pipoca, ligar sua TV e aproveitar os filmes dessa lista, que embora não-adaptados de jogos, representam essa mídia de forma intuitiva e satisfatória.
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