O ano era 2016, a beta de Overwatch (versão ainda não finalizada do jogo, liberada pouco antes do lançamento oficial) mal havia lançado e equipes profissionais já se formavam por todos os cantos do mundo para disputar torneios que contavam até mesmo com narradores — os chamados casters.
Mas com menos de cinco anos de atividade, no início de 2021, o cenário competitivo de Overwatch deixou para trás seu caráter universal. Lançado em maio de 2016 pela Activision Blizzard, Overwatch continua a ser jogado pelos sul americanos. No entanto, em fevereiro de 2021 a Blizzard — como é comumente chamada — decidiu encerrar com as atividades oficiais do cenário competitivo na América do Sul.
Overwatch?! O que é isso?
O ponto de partida para compreender melhor o Overwatch é simples: trata-se de um jogo de videogame para ser jogado no computador ou na televisão. Quanto ao estilo, Overwatch nada mais é do que um FPS (First Person Shooter) tático. Em outras palavras, é um jogo colorido em que personagens ainda mais coloridos e cartunizados se unem em equipes de seis jogadores e utilizam poderes mágicos, estrelas ninja e até mesmo as convencionais armas de fogo a fim de cumprir diferentes objetivos — tais quais escoltar veículos de carga de um ponto a outro, proteger e atacar áreas ao redor do mundo e disputar pontos de controle — além, é claro, de eliminar os adversários.
Tudo isso controlado em primeira pessoa — daí o termo FPS —, ou seja, modo em que o jogador enxerga o mundo como se houvesse uma câmera bem nos olhos de seu personagem. O nome “tático”, por sua vez, se deve à existência de pouco mais de 30 personagens distintos à disposição dos jogadores no meio da batalha. Por conta dessa variedade de heróis — assim que são chamados os personagens no jogo — é praticamente indispensável que se elabore táticas diferentes para cada composição das equipes.
Este é o Overwatch. Um jogo de tiro em primeira pessoa lançado pela tradicional e hoje polêmica Blizzard Entertainment no ano de 2016 — ano no qual recebeu o prêmio de Game of The Year pelo “Oscar dos videogames”, The Game Awards. Foi, desde sua estréia, muito aguardado e com um futuro extremamente promissor tanto no âmbito casual — destinado àqueles que jogam por pura diversão — quanto no competitivo — destinado a um grupo de jogadores que levam o jogo mais a sério, ao ponto de disputar torneios e até mesmo ganhar dinheiro com isso.
A partir da valorização e crescente deste viés competitivo, nascem os torneios de jogos eletrônicos, que buscam descobrir qual o melhor jogador ou time de um país, região ou mundo. Este é o conceito por trás do termo “e-sports”. É a esportificação de um jogo de videogame. A transformação de algo casual em um evento competitivo tal qual o futebol, basquete, tênis de mesa e xadrez. E, como já visto, esse fenômeno não deixou de ocorrer no Overwatch.
A ascensão
Para ajudar a contar sobre o percurso do cenário sul americano de Overwatch nos últimos anos, o Arquibancada entrevistou alguns dos principais nomes que fizeram parte da história do jogo no Brasil. Dentre eles, o único representante da América do Sul na história da liga profissional de Overwatch (Overwatch League), Renan “Alemão” Moretto e um dos jogadores e produtores de conteúdo mais populares do cenário, Gabriel “Nitro” Gaspar.
O ano de 2016 marcou a gênese de um novo mundo fictício, colorido e ainda mais distópico. Foi criado o Overwatch. Logo de imediato conquistou o público e tornou-se um sucesso absoluto. Era diferente, popular, produzido por uma empresa — até então — bem conceituada e com a sólida proposta de transformar um dos gêneros mais renomados dos jogos competitivos — o FPS — em uma experiência fluida, leve e dinâmica.
Pouco custou para que o Overwatch atravessasse a Linha do Equador e pudesse conquistar espaço no imaginário dos jogadores na América do Sul. Em pouco tempo, o precoce sucesso do jogo se estendeu para o cenário competitivo.
O ex-jogador Alemão, por exemplo, destaca, em letras maiúsculas, como o cenário em sua origem “era MUITO promissor” e complementa: “Na época, existiam várias empresas querendo investir no jogo via campeonatos e patrocínios para os times. Em 2016 tivemos o campeonato da NVIDIA na BGS (Brasil Game Show) e no ano seguinte um campeonato da Old Spice. Ambos presenciais, com uma boa premiação e — no segundo caso — excelente estrutura”, comenta.
Fora a positiva existência de investimentos externos, é preciso ressaltar que o cenário sul americano não carecia de jogadores — base para o desenvolvimento de qualquer cenário competitivo. Quem destaca esse ponto é o ex-jogador e atual produtor de conteúdo Nitro: “Logo no começo do game, vários jogadores [sul americanos] já apareciam entre o top 20 jogadores das Américas […] havia bastante gente muito boa jogando por aqui, não faltava matéria prima.”
O começo da queda
Entretanto, a história mostra que boa parte desse enorme potencial foi desperdiçado. Os motivos, mesmo que diversos, recaem sempre em um único nome: Blizzard Entertainment. Após trazer à luz sua obra-prima, a Blizzard preferiu não gastar os últimos anos em prol de seu jogo. Pelo contrário, pareceu lutar contra sua criação.
Os erros por parte da empresa não demoraram para aparecer e, logo no primeiro ano, já se pôde enxergar certos deslizes. O principal deles, ressaltado por Nitro, foi a má escolha dos jogadores para representar o Brasil na primeira Copa do Mundo de Overwatch, disputada presencialmente na Blizzcon 2016 — evento anual produzido pela Blizzard para divulgar suas produções.
A “má escolha”, segundo o ex-jogador, foi optar por escalar produtores de conteúdo ao invés de jogadores que apareciam, na época, entre os melhores da América. O resultado foi uma oportunidade perdida de demonstrar ao mundo a força do cenário competitivo que o Brasil cultivava.
No entanto, foi em 2017 — mesmo ano que caracterizado pelos entrevistados como o ápice do cenário sul americano — que os grandes erros estruturais começaram a ser tomados. O primeiro deles, mais abordado por Alemão, foi a intervenção da Blizzard no desenvolvimento de torneios e eventos competitivos ao redor do mundo. A empresa optou por restringir que companhias terceirizadas investissem diretamente no cenário e promovessem seus próprios torneios. Essa decisão limitou a verba e o engajamento que alimentaram mais fartamente a região sul americana, por exemplo.
Sobre o assunto, Alemão destaca: “Esse fator foi o que mais prejudicou o jogo. Colocar toda responsabilidade profissional em cima de uma única empresa aumenta o risco e os impactos de qualquer decisão que seja mal executada. Existe aquele ditado ‘nunca coloque todos os ovos na mesma cesta’ e foi exatamente isso o que a Blizzard fez. O resultado a gente já sabe”.
Path to pro e a dificuldade de chegar ao profissional
Porém, mesmo que contestada pelos jogadores, a intervenção da Blizzard na esfera competitiva do Overwatch tinha um fundo lógico. Era fundamentada no autointitulado “path to pro”. A ideia foi montar um sistema inspirado nas principais ligas esportivas dos Estados Unidos que sondam jovens nas escolas, selecionam os mais promissores para as faculdades e, por fim, através do chamado draft, escolhem os melhores para a liga profissional.
Neste caso, também haveriam três diferentes níveis de torneios — os chamados tiers. Eles iriam do amador até o profissional. Com essa estrutura, propunha-se que o bom jogador, independentemente de sua região de origem, poderia completar o chamado path to pro e caminhar do tier mais baixo até o mais alto. Em termos de Overwatch: da Open Division (torneio introdutório e aberto para qualquer jogador que se reúna em uma equipe) até a Overwatch League.
Mas a história nos conta que a recíproca não era assim tão verdadeira. Não para todos. A existência de jogadores que conseguiram traçar o percurso do path to pro até a Liga é fato. No entanto, a afirmação de que suas regiões de origem pouco importavam não se sustenta. O que vimos em quatro anos de cenário competitivo na América do Sul foi o surgimento de jogadores de altíssimo nível que, mesmo após conquistarem tudo o que tinham direito dentro da região, não obtiveram o devido reconhecimento e acabaram por desistir do jogo.
A culpa dessa problemática — que resultou numa segregação dos jogadores sul americanos — cai, novamente, sobre a Blizzard. Nitro destaca que um dos fatores cruciais que comprometeram essa situação ocorreu ainda em 2017. A decisão de proibir que times originários de uma região se inscrevessem na Open Division de regiões estrangeiras foi prejudicial para os jogadores do SA. Além de impossibilitar que pudessem evoluir ao lado dos melhores do mundo.
Tome como exemplo a seleção brasileira de futebol e a sua dificuldade em realizar amistosos contra seleções europeias — salvo poucas exceções, as melhores do mundo. A falta de disputas frequentes em alto nível faz com seja criado uma diferença técnica entre os times. Algo que ficou evidente nas duas últimas Copas do Mundo em que o Brasil participou (eliminado, respectivamente, por Alemanha e Bélgica).
Agora imagine o quão mais problemático seria se nem mesmo os grandes jogadores da seleção conseguissem disputar os campeonatos de alto nível. Como se Neymar e Marquinhos nunca pudessem jogar pelo Paris Saint Germain. Foi o que ocorreu com os melhores jogadores de Overwatch da América do Sul. A ação tomada pela Blizzard proporcionou uma catástrofe, ou melhor, fez do SA uma região insustentável e sem perspectiva para seus jogadores.
Nem a surpreendente contratação do brasileiro, Alemão, em 2018 para o time da Boston Uprising — da Overwatch League — foi suficiente para renovar as esperanças dos jogadores sul-americanos. A começar pelo fato de que a contratação não deveria ter sido surpreendente.
Alemão fez parte do time mais vitorioso da história da região SA, a BGH (Brasil Gaming House). De 2016 a 2018 ganhou tudo que estava ao seu alcance e perdeu apenas uma única partida. Representou a seleção brasileira em duas Copas do Mundo onde contou com boas atuações individuais. Mesmo assim, surpreendeu até a si próprio com a oportunidade de jogar a liga profissional. O jogador pretendia largar o cenário pouco antes de assinar o contrato com a Boston Uprising, algo que aconteceu com boa parte de seus parceiros de time.
O modelo Overwatch League
Esse foi o suspiro final de um cenário prestes a entrar em decadência. Muito disso por conta da própria Overwatch League. O modelo idealizado pela Blizzard torna-se falho, justamente, no topo de sua cadeia. E o fator que o tornou insustentável é sua principal incongruência com o utilizado no esporte tradicional estadunidense: a falta de um sistema que se assemelhe ao draft.
A Overwatch League, assim como a NBA e a NFL, é uma liga profissional que contém um número limitado e inalterável de times — ou franquias — que, independentemente de seus resultados, nunca serão rebaixados ou removidos do campeonato. Depara-se assim com um sistema estagnado que não possibilita uma natural ascensão de novos elencos. Para isso que se criou o draft, um mecanismo institucionalizado que assegura que novos jogadores possam atingir o profissional. E é justamente a peça que falta no modelo path to pro do Overwatch.
Tanto Nitro quanto Alemão não abominam a estrutura dos tiers 3 e 2 — Open Division (OD) e Overwatch Contenders (divisão intermediária que conta com os times profissionais separados por região), respectivamente. Segundo o ex-jogador da Boston: “A ideia de Open Division + Contenders não é ruim. Ajuda bastante a evoluir o cenário do tier 2 e 3, além de proporcionar uma oportunidade igual para todos os times na OD”. Nitro complementa: “Gosto muito do modelo da Contenders, o problema é não ter nada além. O problema é a existência da Liga. O evento maior deveria ser o Gauntlet (espécie de campeonato mundial entre os melhores times de cada região da Contenders), assim como acontece em outros jogos como o Valorant. Uma pena que ocorreu somente uma vez, em 2019”.
A impressão que fica é que a Blizzard, durante os anos de cenário, acabou por “torrar seu dinheiro” ao investir capital em ideias não sustentáveis, como é o caso da Contenders e a falta de perspectiva de crescimento para seus jogadores. Foi como nadar contra a maré. O erro da empresa foi tentar inovar a maneira como se entende o e-sports utilizando uma fórmula pela metade.
Por último, Nitro aponta mais uma questão quanto ao sistema de times-franquias nos jogos eletrônicos: “É difícil você manter esse espírito de representatividade por um time em um cenário que nasceu muito próximo de seus ídolos. Um cenário em que aqueles que assistem aos jogos de um time também assistem à livestreams de seus jogadores favoritos. Ninguém ama os times, amam os jogadores”.
A escassez de atualizações
Agora some todos os erros estruturais a mais um fator que comprometeu — e continua a comprometer — a longevidade do Overwatch não só como um cenário competitivo mas também como jogo em si. Está se falando da falta de atualizações frequentes.
Vive-se em um mundo onde as informações circulam rapidamente e envelhecem ainda mais depressa. Essa regra também vale para videogames. Não importa se um jogo competitivo for eleito o melhor de seu ano — como foi o Overwatch em 2016 —, se ele não contar com atualizações que o deixem em constante metamorfose, ele vai envelhecer. Em decorrência disso, será menos jogado, pouco assistido, até o momento que cairá no esquecimento do público. É isso que vem ocorrendo com o Overwatch desde que foi lançado.
Para que um cenário competitivo mantenha-se forte é preciso que o jogo cultive uma base de jogadores espessa e ativa. Caso contrário, não haverá “matéria prima” para participar e incentivar os campeonatos. Uma vez que a empresa responsável por um jogo abre mão de acompanhar e ouvir a comunidade, entregar atualizações de conteúdo e balancear seus personagens (tentar fazer com que todos os heróis, cada um de sua forma, tenham forças equivalentes dentro do campo de batalha), a produção está com os dias contados.
Para o público casual, a imagem que a Blizzard passou sob o comando do Overwatch foi a de um abandono. Ela parou de inovar em conteúdo após um ano de jogo, apresentou — e continua a apresentar — os mesmos eventos temáticos de 2016 e já está há quase dois anos sem anunciar um personagem novo.
Já para o público competitivo, a imagem passada foi a incompetência. Desde 2016, a única coisa que a Blizzard soube cultivar em sua produção foi uma sequência de maus balanceamentos. Sobre o tema, Alemão comenta: “Uma empresa que não escuta quem consome seus produtos está fadada ao fracasso. Um exemplo de que a Blizzard não escuta seus jogadores é que Brigitte (heroína adicionada ao jogo pela Blizzard em 2018) foi 100% parte do meta (composição mais forte possível de personagens para uma partida) por praticamente um ano, isso é inacreditável”.
Foi com a falta de novos conteúdos e a estagnação de um único meta — por conta de um mau balanceamento — que o Overwatch perdeu sua proposta fluida, enrijeceu, parou no tempo e começou a ser ultrapassado por outras produções. “Não que os outros jogos tenham feito algo de extraordinário, isso é o básico. A culpa é do Overwatch não os ter acompanhado”, ressalta Nitro.
E assim que em fevereiro de 2021 foi anunciado o desligamento oficial do cenário competitivo de Overwatch na América do Sul. Há quem diga que foi uma consequência direta da pandemia, mas acredita-se que foi somente a antecipação de algo inevitável.
Overwatch 2 e o futuro do cenário sul americano
Mas será mesmo que isso foi o ponto final? Ou ainda poderá existir, como nas artes, uma renascença? Seria 2022 o ano do Overwatch?
Todos estes questionamentos dependem, hoje, de um só fator: o lançamento do Overwatch 2. A sequência do primeiro jogo foi anunciada em 2019 e está com data de lançamento prevista para o ano que vem (2022). É, atualmente, uma das únicas fontes de esperança para os fãs que ainda sonham em ver o jogo da Blizzard em alta novamente.
Para o ex-jogador da BGH: “Existe uma pequena possibilidade (quase impossível) do cenário melhorar com o Overwatch 2, apesar de eu achar isso muito, mas muito difícil”. Segundo ele, a empresa deveria, em primeiro lugar, rever cada uma das decisões tomadas no Overwatch 1 “e fazer o oposto do que fizeram”. Para isso, Alemão sugere que a Blizzard escute mais a comunidade, principalmente os jogadores profissionais. A opinião final do ex-jogador foi que “se continuar da mesma forma, eu não indicaria ninguém para investir no cenário competitivo do jogo”.
Nitro, por outro lado, afirma que consegue enxergar uma renascença do cenário competitivo. Segundo o produtor de conteúdo: “Consigo porque o jogo é bom. Tem uma jogabilidade gostosa e carrega tudo que encantou o mundo lá em 2016”. Mas para isso, complementa, certos pontos precisam mudar com urgência: “De início, [os desenvolvedores] precisam trabalhar na divulgação, Overwatch 2 já não tem o mesmo hype (expectativa do público) que o seu precursor teve”.
Por conta dessa deficiência de expectativa, Nitro aponta como algo indispensável tornar o jogo gratuito. Este é o padrão seguido pelos grandes jogos competitivos, como o League of Legends (LOL), Counter Strike (CS) e Valorant. Por fim, torce para que a Blizzard “acerte a mão no modelo competitivo”, principalmente com a instauração de um modelo de liga que seja obrigatório recrutar jogadores.
O ano de 2022 pode não ser o grande momento do Overwatch, mas é um recomeço. O jogo não sairá voando e precisará ganhar seu espaço na indústria e no imaginário do público. Há muito a se reconquistar, mas se os devidos cuidados e ajustes forem tomados, tudo indica que há esperança.