Jornalismo Júnior

logo da Jornalismo Júnior
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Neve na manhã de São Paulo: a controversa cidade do início do século XX

Foto de Capa: Beatriz Gomes Neve na manhã de São Paulo é um romance de não ficção de autoria de José Roberto Walker. Foi lançado este ano, após uma extensa pesquisa baseada nos arquivos da cidade de São Paulo em memória a Oswald de Andrade e outros que, em 1922, dariam início a tão conhecida …

Neve na manhã de São Paulo: a controversa cidade do início do século XX Leia mais »

Foto de Capa: Beatriz Gomes

Neve na manhã de São Paulo é um romance de não ficção de autoria de José Roberto Walker. Foi lançado este ano, após uma extensa pesquisa baseada nos arquivos da cidade de São Paulo em memória a Oswald de Andrade e outros que, em 1922, dariam início a tão conhecida Semana de Arte Moderna, responsável por mudar os rumos e história da cidade ainda pequena.

A história é narrada em primeira pessoa por Pedro, personagem criado pelo autor, que é uma fusão de figuras que realmente existiram e conviveram com Oswald. Os acontecimentos se passam entre 1917 e 1919, o que permite ao leitor acompanhar toda a trajetória do grupo boêmio – do qual o escritor fez parte e viveu paixões avassaladoras – desde que quando foi formado, até quando os amigos deixaram de frequentar a garçonnière onde se encontravam diariamente.

A maior parte das histórias narradas ao longo do romance se passaram na Rua Líbero Badaró, centro de São Paulo, no terceiro andar de um prédio escondido. Lá, Oswald e sua roda de amigos, sempre “embriagados pelo futuro”, como é dito no livro diversas vezes, sonhavam com um tempo em que a pequena São Paulo se tornaria uma grande cidade à modelo das europeias, onde atingiriam a fama através de seus poemas apaixonadas e romances fantasiosos.

O livro não apenas traz narrativas desconhecidas sobre a vida pessoal de Oswald, como também oferece ao leitor a oportunidade de conhecer como era a vida na pacata cidade paulista da primeira metade do século XX, quando São Paulo ainda não era refúgio de grandes indústrias e de milhões de habitantes.

Maria de Lourdes, Daisy ou Miss Cyclone e o retrato da mulher na antiga São Paulo

Daisy, como costumava ser chamada pelos boêmios da garçonnière, era estudante da Escola Normal da Praça da República, umas das mais prestigiadas da cidade. Conheceu Oswald por acaso, que instantaneamente se encantou, atraído pelo modo único como a moça se comportava e pensava.

A normalista, aos poucos, passou a frequentar a garçonnière e logo tornou-se parte do grupo de rapazes e amante de Oswald.

No início do século, a mulher tinha um papel quase que invisível na sociedade paulista. Eram proibidas de andar sozinhas pelas ruas, vestiam-se cobertas da cabeça aos pés, o acesso a certos locais era restrito e cursar ensino superior era praticamente impossível. Grande parte das moças casavam-se cedo, tinham filhos, deixavam os estudos de lado e enterravam os sonhos que um dia tiveram.

Mas Daisy era diferente. Era uma leitora assídua, com ideias e opiniões firmes, não tinha nem um pouco de interesse em viver a vida que as outras garotas que conheciam viviam. Sua presença no Retiro dos jovens boêmios passou a ser indispensável e transformou-se em uma das maiores alegrias daqueles jovens.

A menina, entretanto, nem sempre era compreendida. Ela e Oswald brigavam constantemente pelos motivos mais diversos, mas principalmente por ciúmes por parte dele. Se por um lado o escritor valorizava ideias revolucionárias e libertárias e era um grande crítico dos valores morais da sociedade da época, por outro, tinha um pensamento em relação às mulheres tão atrasado quanto o de uma sociedade colonial. Cyclone, como foi apelidada pelo amante, queria ser tratada da mesma maneira que os amigos se tratavam, queria ter os mesmos direitos, a mesma liberdade para se expressar e agir e ter controle de si mesma. Suas atitudes contestadoras eram consideradas excessivas e incompreensíveis até mesmo para aqueles rapazes “modernos”.

Um retrato da São Paulo provinciana

Na década de 1910, São Paulo estava alcançando seus 500 mil habitantes. A economia da cidade e de boa parte do país eram estruturadas e organizadas a partir da produção agrícola, principalmente do café. Esse grão foi um dos grandes responsáveis por propiciar o surgimento de uma elite extremamente rica que ditava as regras na cidade. Foi nesse momento também que as principais ruas do centro começaram a ser modificadas dando espaço a largas alamedas que abrigavam os casarões das famílias ricas que, aos poucos, iam expulsando as camadas com menor poder aquisitivo para regiões mais periféricas.

Mesmo com esse significativo crescimento, para a roda de amigos, mas principalmente para Oswald – que já havia viajado para Europa e conhecido o que ele considerava o verdadeiro desenvolvimento – São Paulo era ainda uma cidade colonial atrasada, não apenas no sentido tecnológico, mas em relação aos valores morais que a sociedade carregava.

Mesmo com suas limitações, a população experimentava vestígios de modernidade no que se diz respeito à indústria. Esse setor da economia, ainda muito tímido no sudeste do país, era responsável por empregar uma enorme quantidade de imigrantes das mais diversas nacionalidades que chegavam ao país a todo momento.

1917, o ano em que a cidade parou                                                                                                                                     

1917 foi o ano em que, até então, ninguém nunca tinha visto nada parecido. Greve geral. As indústrias pararam, o comércio abaixou as portas, carros e bondes pararam de circular, a iluminação foi cortada.

A essa altura, grandes nomes de industriais como Matarazzo, Crespi, Gamba e Street já estavam mais ricos do que imaginaram que um dia estariam. A classe operária e os, por outro lado, enfrentava momentos difíceis: longas jornadas de trabalho, baixa remuneração, nenhum benefício que garantisse estabilidade financeira e uma alta de preços, que assustava todos os cidadãos comuns.

Esse cenário foi o estopim para o início de uma greve que rendeu algumas mudanças ao operariado e que significou, para muitos, o marco de intensas mudanças pelas quais a cidade ainda iria passar.

Neve na manhã de São Paulo

Em uma manhã do ano de 1918, parte do estado de São Paulo amanheceu branca, coberta por uma considerável camada de gelo. Para alguns foi motivo de deslumbramento, para outros, o anúncio de uma tragédia. Naquela época a economia do estado ainda era altamente dependente da exportação do café e uma forte geada era sinal de queda nas exportações e uma possível crise.

No mesmo ano, São Paulo e outros estados foram tomadas por uma forte epidemia de gripe espanhola que surgiu nas trincheiras entre os soldados durante a primeira Grande Guerra. Os relatos mostram que a cidade nunca mais foi a mesma.

À essa altura, a garçonnière já não era aquilo que prometia ser quando foi criada: Daisy havia se mudado para o interior, grande parte dos frequentadores do Retiro foram pegos pela grave doença e alguns morreram, o grupo de jovens sonhadores já não era mais o mesmo e já havia tomado outros rumos.

O desfecho da obra se dá entre 1918 e o início de 1919. Ao final, após o leitor ter criado certa afeição aos personagens e, principalmente à Cyclone, a nostalgia com que os acontecimentos são narrados são capazes de invadir quem lê, torcendo talvez por um final feliz, mas sabendo que uma história dessas, com tantas reviravoltas e controvérsias, mas não pode terminar como uma história infantil.

Arquivos históricos e o diário da garçonnière

Às vezes, momentos históricos e personagens ilustres podem parecer ao público tão distantes e alheios a realidade que é difícil encará-los como cidadãos que, um dia, foram considerados normais, que amaram, foram criticados, criticaram, criaram e produziram.

A obra de Walker, entretanto, parece romper com essa impressão de uma maneira muito inteligente e atrativa. É comum encontrar no meio da narrativa, trechos de cartas trocadas em Miss Cyclone e Oswald de Andrade, trocando confidências. As manchetes retiradas dos grandes jornais que circulavam na cidade e região, como Gazeta e Estado de S. Paulo, não deixam mentir sobre os eventos narrados. Eventualmente, são colocadas passagens do diário que fazia parte da garçonnière, onde eram anotados os mais simples ocorridos.

A leitura fluida, com uma linguagem simples e acessível permite ao leitor adentrar e se surpreender com a história dessa figura tão importante para história do país. O romance de José Roberto tem um importante valor histórico, pois facilita o acesso da população a um período histórico do estado de São Pauloa partir de uma visão difícil de ser encontrada em outros veículos. A exposição dos valores que moldavam a sociedade do início do século XIX, do machismo que ainda rodeava as mesas de bares mesmo daqueles que se consideravam com um pensamento avançado,  e dos problemas sociais e as crises que dificultavam a vida dos mais pobres torna a narrativa muito mais rica e instigante.

Por Ana Carolina Cipriano
ana_cipriano@usp.br

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima