Jornalismo Júnior

logo da Jornalismo Júnior
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

O Inferno dos Outros (e de mim mesmo)

Toda vez que ouvimos falar de um comediante que se suicida ou que sofre de depressão, nos questionamos como pessoas que ganham a vida fazendo os outros rirem podem ser tão infelizes. Robin Williams, em 2014, e Fausto Fanti, o Renato do Hermes e Renato, também em 2014, são só alguns dos exemplos mais recentes. …

O Inferno dos Outros (e de mim mesmo) Leia mais »

Toda vez que ouvimos falar de um comediante que se suicida ou que sofre de depressão, nos questionamos como pessoas que ganham a vida fazendo os outros rirem podem ser tão infelizes. Robin Williams, em 2014, e Fausto Fanti, o Renato do Hermes e Renato, também em 2014, são só alguns dos exemplos mais recentes. O que todos parecem se esquecer é de que acima de qualquer profissão, ambos eram seres humanos, e como tais, também estavam passíveis da dor e sofrimento que pode acometer a qualquer outro. Será justamente nisso que David Grossmann – cotado, mas não laureado pelo prêmio Nobel de Literatura desse ano – se focará em seu O Inferno dos Outros (A Horse Walks Into a Bar, 2016, publicado no Brasil pela Companhia das Letras).

Na cidade israelense de Netanya, acompanhamos o show de stand-up do humorista já em fim de carreira Dovale. Embora a grande maioria das percepções e relatos que ouçamos seja a do próprio comediante, o autor desloca o espetáculo para o ponto de vista de Avishai Lazar,  advogado aposentado que, em inércia por três anos pela morte da esposa, recebe o telefonema do antigo amigo de infância para que o assistisse e julgasse sua perfomance. Inicialmente incomodado com o show, ele até pensa em sair, mas as piadas sujas, e muitas vezes ofensivas, começam a dar lugar a um relato íntimo e emocionado que relembra fragmentos de seu passado com Dovale. E dessa forma, a partir do contexto mais improvável, Grossmann compõe um forte estudo de personagem que delineará muito bem o supracitado dilema dos comediantes (e da humanidade, em geral).

Sem nenhuma marcação de capítulos e com parágrafos longuíssimos, o estilo adotado se assemelha muito a de um fluxo de pensamento – o que ainda pode ser constatado pela escolha de aspas para as falas, ao invés de travessões. Entregando as piadas conforme elas lhe surgem à cabeça, Dovale começa a mostrar insegurança frente a seu público. Engenhoso como é, ele consegue, no entanto, contornar isso contando a história de sua vida como se ela própria fosse uma grande piada. Rindo constantemente com e de si mesmo, ele traz seus espectadores para dentro de seu mundo particular, como Lazar mesmo comenta: “Como em tão pouco tempo, ele conseguiu transformar o público, e de certa forma até mesmo a mim, em habitantes de sua alma? Em reféns dela?”. Mas se o livro é descrito a partir desse último, tudo está passando não só por um filtro de julgamento e ordem do comediante, como o do próprio narrador. E é aqui que tudo se torna ainda mais complexo: adentramos o psicológico de Dovale, mas ele é também um artifício para compadecermos do psicológico do próprio Lazar?

E de fato, enquanto o amigo se abre a todos presentes, ele constantemente gasta linhas relembrando a mulher falecida, a demissão forçada e a solidão pela qual passa. Por mais que a tragédia seja a de Dovale, os holofotes estão sempre sobre as percepções de Lazar. De forma similar a do primeiro, ele encontra no leitor o seu espectador, e também se abrindo, ele encontra paz. Mas afinal, não somos também todos assim, protagonistas de nossos shows particulares? Ávidos para que algum transeunte possa partilhar seu tempo, ouvindo e levando consigo as mazelas que nos acometem? Assim como as piadas ofensivas de Dovale, não tentamos as vezes parecer mais do que somos, diminuir o outro – na maioria das vezes nem explícita, mas intimamente em nosso consciente –, para simplesmente nos sentirmos melhor?

Por outro lado, somos todos um pouco como Lazar, juízes da vida do outro. Como ele mesmo pontua, “não tenho dúvida de que já teriam se levantado e ido embora há muito tempo, ou até mesmo enxotado Dovale do palco com assobios e gritos, não fosse essa tentação difícil de resistir: a tentação de espiar o inferno dos outros”. Juízes sedentos por apontar os erros do outro, mas temerosos de que o mesmo nos seja feito. Independentemente da história que cada um carrega consigo, defrontar os próprios medos, inseguranças e erros pode ser pesaroso, mas com certeza é a melhor saída do inferno privado.

Como uma risada, o caminho para a felicidade é longo, mas uma vez alcançada, a manutenção dela demanda ainda mais devoção, e nem todos – sejam eles militares, estudantes, advogados ou comediantes –, estão preparados para tal. E não é nenhum capricho que eles sofram, muito menos se humilhem frente ao show da vida. Mas quando o fazem, eles são dignos dos mais entusiasmados aplausos.

Por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima