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O público fantasma dos filmes brasileiros + guia para iniciantes explorarem um cinema nacional esquecido

Não é de hoje que as produções norte-americanas vêm dominando as telas dos cinemas brasileiros. A tendência se manifesta desde 1914, em que se apresentaram as primeiras baixas dos longas nacionais em face da incursão estadunidense. Em 2016, dos 10 filmes mais assistidos, apenas um é brasileiro — Os Dez Mandamentos, embora tenha tido bilheteria …

O público fantasma dos filmes brasileiros + guia para iniciantes explorarem um cinema nacional esquecido Leia mais »

Não é de hoje que as produções norte-americanas vêm dominando as telas dos cinemas brasileiros. A tendência se manifesta desde 1914, em que se apresentaram as primeiras baixas dos longas nacionais em face da incursão estadunidense. Em 2016, dos 10 filmes mais assistidos, apenas um é brasileiro Os Dez Mandamentos, embora tenha tido bilheteria manipulada já que muitas sessões esgotadas estrearam com as salas vazias. A dominação hollywoodiana faz com que muitos longas nacionais encontrem dificuldade para atingir grandes contingentes da população, principalmente devido ao pouco espaço de exposição que esses recebem, à pouca verba que lhes é repassada e à divulgação não suficiente.

Segundo a Ancine (Agência Nacional de Cinema), em 2016, o país produziu um total de 143 filmes. Agora, pense um pouco e tente citar cinco desses longas. Difícil, não? A desvalorização do cinema nacional torna-se cada vez mais preocupante e o acesso cada vez mais restrito. Pinta-se, então, um cenário no mínimo desolador: uma enorme quantidade de filmes de alta qualidade que não encontra público para assisti-los.

Por estarem fora do circuito Globo Filmes, a maioria tem dificuldades de se manter no mercado, não encontrando bilheteria suficiente para sobrepassar os custos de produção, como diz Roberto Moreira, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). “Esse jogo do mercado é super arriscado. Ninguém tem garantia, você não consegue antecipar o que as pessoas vão gostar”, explica.

Entretanto, a dificuldade em aumentar o número de espectadores de filmes brasileiros não se dá só pelo baixo lucro. O professor ainda aponta que a tendência do mercado cinematográfico é seguir a teoria da “Cauda Longa”, termo cunhado pelo jornalista britânico Chris Anderson. O número de vendas que certos produtos alcançam é proporcional ao seu grau de popularidade. Assim, o chamado “mercado de massa” é mais difundido, já que os produtos são mais genéricos e, portanto, têm maior alcance. Por sua vez, o “mercado de nicho” é concernente a interesses mais particulares e específicos, composto por produções que apresentam menor procura, como os filmes independentes e os documentários.  

A intensificação da “Cauda Longa” também se dá pela pouca diversificação de gêneros. Evidencia-se um padrão de consumo nas bilheterias: as comédias, os dramas e as ações policiais. Essa trinca constitui o “mercado de massa”. Daqueles 143 filmes, apenas 22 deles tiveram público acima de 100 mil. Por outro lado, a comédia Minha Mãe É Uma Peça 2 (2016), acumulou aproximadamente 9 milhões de espectadores vale pontuar que, com essa marca, atingiu o recorde de terceiro filme brasileiro mais visto da história.

“Nossa performance é baixa. Na estrutura atual do incentivo fiscal a gente não consegue produzir, não tem dinheiro pra fazer. A gente está condenado às comédias porque a gente só pode usar orçamento baixo, e comédia é custo baixo”, explica Roberto. “É um mercado onde poucos ganham muito. The winner takes all [o vencedor leva tudo], chama-se em inglês. E o resto fica embaixo.”

O professor aponta que mesmo o sucesso que essas comédias atingem é insuficiente. “A gente tem menos de 10% de market share no mercado”, ele explica. Em outras palavras, considerando tudo o que é investido, a porcentagem da participação da cinematografia brasileira no mercado em relação às vendas é muito pequena. Segundo ele, deveria girar em torno de, no mínimo, 25%.

A questão da concentração do mercado em torno de filmes de gêneros e temáticas similares poderia ser resolvida com uma ampla divulgação dos longas de menor respaldo. O professor Humberto Neiva, coordenador do curso de cinema na FAAP, corrobora, considerando essa questão como “fundamental para que haja uma boa visibilidade do filme”. E completa: “a ousadia dos filmes independentes, com temáticas fortes, atores desconhecidos, ou até não atores, infelizmente não consegue um número razoável de público por não ter uma verba grande designada para sua divulgação”.

Então, o dinheiro designado para a produção e exibição de filmes nacionais é não só insuficiente, mas também irregular. Sobre a concentração das verbas de exposição, o ator e diretor Domingos de Oliveira, em entrevista ao O Globo, diz que “o fato de 143 filmes brasileiros terem sido lançados no ano passado tem uma significação que chega ser embaraçosa: são fruto de uma política de financiamentos sem eixo ou estratégia”.

Nos últimos tempos, até a própria Ancine tem frisado a importância de distribuidoras e exibidoras apostarem mais em títulos independentes e autorais. O professor Humberto ainda afirma que essa não divulgação é encontrada na maioria dos países, devido ao “grande massacre dos blockbusters americanos”, que dominam as salas de cinema. Apesar disso, há perspectiva de melhora: no final do ano passado, foi definida a Cota de Tela para 2017 nada mais é que uma tentativa de expandir o acesso à produção audiovisual brasileira, tendo sido estabelecido um número de dias para a exibição de diversos títulos nacionais ao longo do ano. Assim, é garantido que um mesmo filme não domine todas as salas de um cinema por apresentar maior procura e maior lucro, possibilitando ao público ter contato com uma grande diversificação conteudista.  

Além de tudo isso, é claro, tem o fato de que a temática e o estilo predominante nos cinemas norte-americanos costumam reverberar até aqui e influenciar os filmes autenticamente nacionais, criando um estilo de rede em que parece que estamos assistindo sempre à mesma coisa. A necessidade de reconhecimento de longas externos ao circuito Globo Filmes é imensa, para acabar, de uma vez por todas, com o senso comum de que cinema nacional é ruim. Como poderíamos fazer esse tipo de julgamento de valor quando só conhecemos uma parcela minúscula que nos é destinada?

Há muito além no cinema nacional. E está mais do que na hora de ampliarmos nossos horizontes. Abaixo, estão recomendados alguns filmes brasileiros que, como muitos, deveriam ter maior respaldo do público. Fica sugerido, então, este pequeno guia para iniciantes molharem os pés em tudo o que esse cinema pode nos oferecer.

 

Por onde começar?

O que se pretende fazer aqui é um convite para a experimentação de um cinema nacional esquecido, para expandir o olhar sobre esse universo pouco explorado e, se bem sucedido, para conquistar novos admiradores da nossa Sétima Arte que pouco se assemelha à hollywoodiana, mas nem por isso perde seu valor.

Fica de sugestão, também, um compilado da  Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) que reuniu uma centena de longas considerados os melhores dentre os nacionais. A lista, que pode ser acessada aqui, contém os mais diversos anos de produção, gêneros, diretores e formatos.

Confira abaixo, então, um guia para quem pretende começar a explorar o além-mar do cinema nacional.

 

Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodanzky, 2001)

Não foi nada, eu não fiz nada disso e você fez um bicho de sete cabeças. (Bicho de Sete Cabeças, Zeca Baleiro)

Indignação. É impossível não se sentir indignado, inconformado após assistir à Bicho de Sete Cabeças. A autobiografia de Austregésilo Carrano contada em Canto dos Malditos (1990) é interpretada nesse longa pelo talentosíssimo Rodrigo Santoro. Apresentando a realidade nos manicômios do Brasil, numa espécie de denúncia, conta-se a história de Neto (Santoro), internado à força pelos próprios pais — com os quais tinha uma relação conflituosa —, num hospital psiquiátrico por porte de maconha. Retratando as atrocidades cometidas dentro desses hospitais, a falta de higiene, o controle por meio de sedativos, e o tratamento de choque, o filme se torna incômodo ao trazer uma realidade muitas vezes esquecida, sendo preferível fingir que não existe a pensar em maneiras de mudá-la. O mérito é inteiro de Santoro que, na atuação do colegial perdido e confuso, nos faz sentir na pele a agonia de estar sucumbindo à insanidade, definhando na impotência, como que deixado para morrer.

 

Estômago (Marcos Jorge, 2007)

Coxinha, cerveja no copo americano, pastel, carne de panela com batata. Da culinária típica dos bares do centro da cidade de São Paulo, emerge Raimundo Nonato (João Miguel). Paraibano, Nonato é contratado como faxineiro num desses botequins, e acaba descobrindo seu talento para cozinha. Da ascensão à queda, o longa nos mostra a trajetória de Nonato, que utiliza de suas habilidades culinárias para conseguir sexo e poder, levando ao pé da letra o dito popular de “conquistar pelo estômago”. Usando do vocabular e costumes tipicamente brasileiros, o filme nos envolve em imagens bonitas e no carisma do personagem principal. Os grandes destaques ficam para João Miguel, surpreendentemente bem e muito distante da impessoalidade do seu personagem na série 3% (2016), e para o roteiro original e bem construído, que diverte e horroriza, nos deixa tensos e faz rir.

 

O Lobo Atrás da Porta (Fernando Coimbra, 2013)

De fotografia bonita e atuações louváveis, o filme transcorre através de depoimentos prestados em uma delegacia no Rio de Janeiro. Cada uma das personagens conta uma versão diferente da história do desaparecimento de Clarinha, filha pequena de Sylvia (Fabíula Nascimento) e Bernardo (Milhem Cortaz). Com edição inteligente, que envolve o espectador no suspense, vai-se desvendando o mistério ao mesmo tempo em que expõe-se uma intensa rede de amor, mentiras e traições. Inspirado em fatos reais, o longa apresenta um desfecho surpreendente, que nos deixa atônitos e incrédulos por alguns segundos.

 

Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013)

“A indecência, a luminosidade, o pecado. A práxis do improvável junto à epifania da desordem” (Clécio).

Por ser um dos raros filmes nacionais de temática LGBTQ, Tatuagem já se destaca dos demais ao trazer essa temática. Apresentando os contrastes entre a liberdade sexual e a opressão dos quartéis no período militar, o filme mostra o grupo teatral de Clécio (Irandhir Santos), que inunda suas apresentações de cantos e nudez. Com a chegada do militar Fininha (Jesuíta Barbosa), o cotidiano do grupo é estremecido, devido ao relacionamento que esse trava com Clécio. Provocativo, divertido e alto astral, o longa cria um ambiente íntimo e leve, que aquece o coração e enche os olhos de beleza artística. Libertário como o musical Hair (1967), e utilizando-se do mesmo quê setentista desse —  compondo, então, uma explosão de cores e um espetáculo de luz —, trata-se de uma ode ao corpo nu, à liberdade, ao preenchimento da alma e aos sentimentos intensos. A beleza estética é arquitetada sobre os cenários paradisíacos recifenses e na ambientação bem construída, apoiada num constante jogo de luzes coloridas. Cheio de música, poesia, diálogos inspiradores, sensibilidade homoafetiva e questões quanto à homofobia, Tatuagem une as relações homossexuais à beleza visual e filosófica dos anos 70.

 

O Som Ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012)

Definitivamente uma produção que se destaca da cinematografia brasileira em geral. Marcando a estreia de Kleber Mendonça Filho nos longa metragens, o filme é um retrato cru da realidade brasileira, através do bairro de Setúbal, um microcosmo em Recife. Agraciando-nos com uma experiência auditiva rica, seu título é intuitivo: todos os sons da cidade ganham intensidade, desde os latidos dos cachorros até o barulho dos pneus do carro, em uma narrativa qualquer coisa menos melodiosa. Assim, fica garantida a fidelidade ao representar a classe média recifense, seus costumes e habitat, seus anseios e preconceitos. Para traçar o cotidiano com maior exatidão, o filme não se prende a protagonistas, e diversas histórias são desenvolvidas simultaneamente, não perdendo de maneira nenhuma a coesão. As questões da classe média ascendente também são cenário de outro filme de Mendonça, Aquarius (2016), ambos aclamados pela crítica internacional. Trazendo diálogos tão ordinários quanto cheios de significados, pode-se dizer que o diretor prioriza lançar um olhar sobre a vida sem idealismo e sem moralidade, nos fazendo ver de uma forma nova a cotidianidade tão intrínseca ao brasileiro.

 

por Giovanna Jarandilha
giovannajarandilha@gmail.com

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