Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Quem sou eu? – Testes da internet e a busca por autodefinição

O que o sucesso dos testes do Buzzfeed podem dizer sobre a construção de nossa identidade

Prestes a abrir mais uma guia no navegador, paro e percebo a situação em que me encontro: já deve ser o oitavo teste do Buzzfeed que respondo em sequência. Fecho a página e tento lembrar do que estava fazendo. Noto que havia se passado meia hora desde que abri um texto que deveria ler para a aula de economia. Como fui parar aqui, tentando descobrir se sou uma deusa, uma louca ou uma feiticeira? Estava procrastinando. E, não minto, é uma das minhas atividades de procrastinação favoritas. Tento organizar na cabeça quais testes eu havia respondido dessa vez e percebo que a maioria se iniciava com uma pergunta comum:

Quem é você…?

O mais curioso é que sempre busco por esse estilo de teste quando acesso o site. É divertido e engraçado, claro, mas não é só isso. Parece que virou parte do meu cotidiano tentar descobrir quem sou através de referências a algum personagem, música, animal… E em seguida compartilhar em alguma rede social o resultado. Mas só se eu gostar dele de verdade.

À procura da identidade

Letícia Cangane (20) é estudante dos cursos de jornalismo e audiovisual, e costuma fazer testes do Buzzfeed toda semana, como passatempo. Gosta dos assuntos abordados, que englobam coisas que estão em pauta na internet e no mundo, da criatividade e criticidade empregada em muitos deles. “Acho que o processo de fazer o teste é divertido”, contou quando conversamos sobre esse formato quem-é-você. “Já me fez refletir bastante. Não pelo resultado, mas por fazer o teste. Mesmo que seja uma pergunta boba, você acaba pensando mais sobre como você se enxerga.”

Para o curso de audiovisual, Letícia fez um trabalho  justamente sobre a busca pela identidade e seus mecanismos. O grupo pensou em como as pessoas fazem testes inconscientemente procurando respostas para perguntas internas, e formulou uma caixa, enfeitada com perguntas engraçadas e memes — a pergunta quem é você também estava lá. Na parte de dentro, um espelho mostrava que “você é você (risos), e não importa as definições e os rótulos que vão te passar, não é onde você vai encontrar as suas respostas”.

Assim como eu, Gabriella Sales (18), estudante de jornalismo, brinca que os testes são uma “ferramenta de procrastinação”. Não faz com tanta frequência, normalmente compartilha a atividade com amigos. Ela aponta que são mais inovadores do que os tradicionais testes de revistas adolescentes, por exemplo, que existem há tempos. “Têm perguntas que me vejo sem saber responder. ‘Como você acha que seus amigos te definiriam?’, te faz pensar um pouco, ou perceber coisas sobre si que antes não pararia para pensar.”

Nessa brincadeira de fazer testes para passar o tempo, meu inconsciente, talvez, esteja procurando alguma explicação, algo que não consigo definir por mim mesma. Ou, ainda, algum tipo de consolo. Lembro que, em 2018, o tipo de teste em alta era outro: quantos % tal coisa você é? Eram vários, e via meus amigos constantemente compartilhando-os nas redes sociais. Quantos % trouxa, quantos % treteiro, azarado, preguiçoso, eclético, bom partido… Parece besteira — e às vezes é mesmo —, mas alguns resultados têm certo impacto. 

“76% trouxa”, o teste dizia. “Seus níveis de trouxice são bastante elevados. Talvez seja hora de refletir um pouco”. É rir para não chorar.

Quantos %? Quem sou eu? Perguntas diferentes, proposta parecida. Definir. Identificar. 

[Imagem: Vecteezy]

A psicóloga Marisa Abujamra define esses testes de personalidade como lúdicos. É uma brincadeira que busca definir personalidades através da “associação com símbolos, personagens, heróis, bichos, objetos, e suas características, qualidades e valores”. Para Marisa, o primeiro ponto a se considerar, nessa tendência de fazer testes, é o individualismo, que vem de uma questão histórica.

A partir dos séculos XVII e XVIII, o iluminismo alterou a forma de pensar predominante no mundo ocidental, colocando o homem como centro das coisas através do chamado antropocentrismo. As noções de liberdade, razão e individualidade passaram a ser valorizadas. Desde então, permanecem fortes em nossa sociedade. Em escala mais particular, “nós buscamos essa ideia da nossa individualidade, de quem somos; tentamos o tempo todo nos diferenciar do outro, e sentir que somos seres únicos”, explica a psicóloga.

Por que essa preocupação tão grande em nos definir? Diante meus questionamentos, o próximo ponto levantado por Marisa parte da psicanálise. “Todo indivíduo, para se tornar sujeito, precisa de um modelo de identificação.” Isso acontece porque, quando nascemos, temos uma relação inicial com nossos pais que é narcísica e de completude para com eles. É o ideal do eu. Com o tempo isso muda e o indivíduo percebe a falta e tenta colocar algo no lugar, para recuperar aquele estado de perfeição. “Trata-se do ideal de ego, a instância secundária do que a gente deve ser. Substituímos esse olhar (antes direcionado aos pais ‘perfeitos’) por alguém, uma ideia, outras figuras, outra coisa”. É dessa forma que vamos construindo nossa identidade.

Marisa fala sobre a identidade ser mutável, algo que se constrói e transforma ao longo da vida, e não algo estático, como costumamos enxergar. Me pego pensando nas tantas e tantas vezes que tentei me enxergar como um ser decidido de todas as suas verdades e inabalável em suas convicções. Em como já tentei encaixar a mim mesma e aos outros em modelos, para depois perceber que tudo bem ser uma mistura de todos eles. Ou que eles nem existem. Por vezes, pensei na construção do eu como uma fórmula matemática.

“Nossa identidade vem daquilo que falta e pela diferenciação perante o outro”, explica Marisa. “É feita em cima de desejos, do que a gente não é e do que a gente quer ser, do que admiramos.” Aqui se demonstra o ideal de ego da psicanálise. Como não somos completos, tentamos colocar algo no lugar. Nesse sentido, os testes como o do Buzzfeed fazem sucesso, ao fornecer uma peça que falta num quebra-cabeças. Uma resposta para as partes que não conseguimos definir ainda.

“A gente foge do processo de autoconhecimento, porque é doloroso”

Quando perguntei se os testes já deram alguma resposta para questões internas, Letícia me contou que “na hora em que você faz as escolhas das respostas, você acaba por se conhecer melhor. Às vezes você não pensa muito nessas questões até que alguém te faça uma pergunta direta, e o Buzzfeed faz isso”.

De fato, há perguntas que me acertam em cheio. Por exemplo, quase nunca sei responder qual a minha melhor qualidade, mas, quando a pergunta é sobre meu maior defeito, a vontade é de marcar mais de uma opção. E isso diz tanto sobre tantas coisas que prefiro nem me alongar aqui.

“O processo de autoconhecimento é difícil”, diz Marisa. “Não é fácil olhar para dentro. Temos muitas dúvidas, às vezes não suportamos não saber exatamente do que a gente gosta, o que a gente quer… Então buscamos que alguém nos dê essa resposta.” Fugir desse processo angustiante e trabalhoso parece mais confortável há tempos, o homem busca por certezas através de oráculos, jogos de carta, cartomantes… A valorização da astrologia, ainda que alvo de muitas polêmicas, é outro exemplo. 

Para Carolina Laurenti, professora de psicologia da Universidade Estadual de Maringá, a busca pelo autoconhecimento é alcançada na relação com o outro e não no isolamento. “É com aqueles cada vez mais diferentes de nós que nossos valores, preconceitos, limitações, potencialidades são construídos e reconhecidos por nós mesmos.”

E por que nos decepcionamos tanto quando as respostas não são as que queremos?

Gabriella conta que já aconteceu de não conseguir um resultado desejado. Principalmente em testes que comparam a um personagem, “sempre tem aquele que você gosta mais e se identifica. Aí quando dá outro você fica meio triste, pensando ‘será que eu não sou nada do que eu tinha imaginado?’” Ainda que dure pouco, a decepção é relevante nesse contexto.

Criamos na nossa cabeça uma concepção do que seria perfeito e agradaria ao outro ou a nós mesmos, fantasiamos um ideal. “Queremos ser especiais na medida em que construímos uma ideia do que é especial dentro da gente, e se o teste não bate com o que desejamos, traz certa decepção”, diz Marisa. Ela afirma que a busca por definição é mais comum na juventude. Nesse período, estamos tentando compreender quem somos, logo, há “busca por um alento, porque é muito angustiante o processo de crescimento e de ficar a sós com nossos pensamentos”.

[Imagem: Vecteezy]

O pertencer também é uma questão. Quando o teste do Buzzfeed diz que sou determinado personagem, isso me coloca, indiretamente, em um grupo de pessoas que também obtiveram aquele resultado e têm as mesmas características. Supostamente, nos identificamos e, logo, há certa sensação de pertencimento. Marisa aponta que apesar de todo o individualismo marcante na sociedade, o ser humano é um ser social. Queremos ser únicos e especiais, mas também queremos uma tribo à qual pertencer. “A necessidade de pertencimento é algo muito forte, que nos atende no sentido de nos sentirmos protegidos, reconhecidos, representados. Esses testes também dizem a que tribo você pertence.”

Para Carolina Laurenti, sentimos necessidade de pertencer a grupos nos vários contextos da nossa vida porque “isso faz parte do que é valorizado e do modo de organização da sociedade da qual fazemos parte”. Ela aponta também que essa carência de pertencimento não é algo típico da juventude, mas faz parte de toda a vida. 

Em meio a essas contradições estamos buscando nos definir, a todo momento. Nos provar, a cada instante. Aparentemente, encontramos acolhimento em qualquer mecanismo que nos ofereça uma resposta, ainda que nem sempre gentil, positiva, ou de acordo com nossas expectativas. “É um ‘pseudo-autoconhecimento’, mas que cria uma fantasia, por um minuto, de que estamos tendo uma resposta sobre quem nós somos”, conclui Marisa.

Fecho as inúmeras guias do navegador que estavam abertas com testes a serem respondidos, e volto a focar nas minhas tarefas. Na próxima vez em que me encontrar nessa situação, provavelmente por estar procrastinando, talvez já tenha consolidada em mim uma noção maior de quem sou eu. Ou, talvez, ainda esteja tudo uma bagunça, e os testes possam me ajudar, oferecendo um breve acalento no meio do barulho que é a mente da gente.

4 comentários em “Quem sou eu? – Testes da internet e a busca por autodefinição”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima