Este filme faz parte do 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Após serem impedidos de filmar uma audiência em que policiais respondiam ao assassinato de dois garotos negros das favelas do Rio de Janeiro, a equipe de gravação recebe um representante dos réus: “Foi uma operação normal”. Quando segundos depois somos cortados para imagens aéreas dos mesmos policiais atirando a toda e qualquer pessoa que corresse pelas ruas, essa “normalidade” ganha traços sombrios.
Se num filme como Apocalypse Now (1979), a monumental cena em que os americanos exterminam os vietnamitas também dos ares já não nos roubava algumas lágrimas, a situação aqui se agrava: é tudo verdade! As gravações caseiras, tanto da população civil quanto dos equipamentos instalados nas viaturas policiais, mudaram a dinâmica com que a justiça e os atos públicos operam. Basta um passo além da legalidade que hoje tudo fica registrado. Prova única e clara de que a Polícia Brasileira tem cometido atrocidades contra a camada mais pobre do país, certo?
Errado! Se não selecionam o que publicar, alguns jornalistas só buscam o lado oficial da moeda para compor suas matérias. Bancados por superiores, policiais contratam os advogados mais retardatários, capazes de enrolar o processo até que ele prescreva. Tementes também que as câmeras das viaturas os incriminem, os agentes as desligam à torto e a direito. Para que tanta reserva se o que fazem é agir de acordo com a normalidade?
Alguns diriam que os direitos humanos impõem medo e pressão sobre o exercício da profissão. Só que, pelo contrário, a questão é simplesmente cobrar que nada ultrapasse a lei. Auto de Resistência (2018), da estreante Natasha Neri e do agora diretor, mas antes laureado diretor de fotografia Lula Carvalho ‒ de filmes como Tropa de Elite, (2007), RoboCop (2014), O Mecanismo (2018) ‒, tange tudo isso e vai além: nunca haverá uma solução, quando os protocolos repassados aos policiais já designam uma “conduta assassina”.
Oposto do que a mídia tradicional costuma apresentar. Falando em mídia, certamente existe um problema de linha editorial, mas ainda mais do que isso, talvez o maior problema seja a lógica mercadológica que o jornalismo tenha agregado. Se os que mais consomem, entenda por “dão dinheiro”, são os que o têm, nada mais justo que se escreva aquilo que esse grupo goste de ouvir. Aliado a isso, o fato de que a apuração é prejudicada pelos prazos apertados, tem-se quase sempre a veiculação de inverdades. Imagine, para contar apenas três histórias, os documentaristas levaram dois anos e meio; milênios comparados à pequena chamada que os jornais veicularam desses mesmos casos nos dias seguintes aos ocorridos.
Sendo a primeira impressão que chega a maioria dos brasileiros, é muito inteligente como o documentário inicia sua narrativa justamente pela mídia. Numa primeira cena, vemos dois cinegrafistas na frente de uma DP gravando o sofrimento de uma família. A sacada: o enquadramento é distante. Por isso, se eles antes capturavam a dor alheia, a posição meio de abutre os coloca como ridículos em quadro. Em outro momento, uma dezena de cinegrafistas vem se aproximando de uma fila de mães que protesta com cartazes, de forma a quase encurralá-las. Mais uma vez, o ridículo. O que por si só são situações bastante irônicas: jornalistas, como talvez os mais próximos fisicamente dessas vítimas, não poderiam estar mais distantes da verdade.
Alguns são menos sutis em se exporem ao ridículo. E aqui, o destaque é o policial que diz ter plantado o revólver na mão da sua vítima porque a arma poderia atirar sozinha. Logo, por precaução, por que não deixar com aquele que já estava morto mesmo? Outra advogada apela ao bom senso dos juízes em não acabar com a carreira de um policial pela “infelicidade que cometeu”. E o pior, constrange a vítima pedindo que ela se levantasse, para que a mesa pudesse concluir ser impossível que um corpo viril como o dele tivesse sofrido alvejamento no passado. “Sem falar na exposição do corpo negro objetificado, vemos que, mesmo num caso em que vídeos comprovem o contrário, a tal “legítima defesa” deixa, muitas vezes, a situação passar impune.
Outros são mais elaborados na argumentação, como é o caso do vereador Carlos Bolsonaro. De fato, os policiais também são vítimas. Mas não dos Direitos Humanos, como comenta, e sim de um Estado representado por figuras como ele próprio. Um Estado que defende a militarização. Um Estado que ensina a atirar antes e perguntar depois. Um Estado que já associa o negro ao meliante, ao traficante de drogas. Um Estado que condena o tráfico de drogas, mas atrapalha o debate em torno de uma legalização que colocaria fim a grande parte desses entraves. E por fim, um Estado que mata qualquer um que comece a incomodar o modus operandi do sistema ‒ e assistir a uma breve aparição de Marielle Franco antes de ser vereadora, e constatar que a comoção nacional em torno dela dificilmente valerá às dezenas de homicídios que acontecem diariamente, é triste.
Se ficássemos apenas na esfera temática ou política, Auto de Resistência já seria extremamente relevante. Felizmente, a obra ainda funciona cinematograficamente falando. Aplicando uma montagem que alterna audiências e atos públicos, o filme desenvolve uma narrativa rica em informação, mas nunca cansativa. Isso porque, se vemos a dor nos choros e protestos familiares, logo a seguir acompanhamos as tentativas jurídicas de resolver os casos.
E, de fato, é preciso parabenizar a montadora Marília Moraes. Frente a abordagem de Cinema Direto da dupla de diretores (sem entrevistas e com o mínimo de intromissão possível), a montagem se vê responsável por criar um fio condutor que una imagens caseiras das vítimas, cenas de reconstituição de crime, horas de audiência pública, offs de uma favela assustada com a presença de policiais, e planos-detalhe dos buracos de tiro nas portas de casas e carros.
Esse fio condutor também é criado a partir do som, ou melhor dizendo, pela ausência dele. Logo na cena inicial, talvez mais sufocante que esses planos-detalhes, que acompanhar o enterro de uma das vítimas, ou mesmo que a mãe que chora em frente ao DP, é não ouvirmos nada que os cerca. Tal como a sociedade o faz, o grito dessa população é silenciado, e o vazio sonoro que lhes resta só traz desamparo. No meio desse nada, basta ouvirmos o choro tímido dos que ficaram, e a angústia é redobrada. E que uma das cenas finais traga um protesto silencioso dessas mesmas mães com os braços cruzados sobre a cabeça é tocante. Que ele ainda seja durante uma audiência pública, em que júri se digladia aos berros, é de uma sensibilidade que nenhuma legítima defesa jamais conseguirá safar.
Trailer:
por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com