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‘30 poemas de um negro brasileiro’: a exposição do íntimo do preto no Brasil

A sensibilidade da experiência individual de um homem negro que abrange o coletivo de uma sociedade que ainda sofre com o passado escravocata

“É uma alegria imensa ter a oportunidade de ver os textos de Seu Oswaldo sendo os responsáveis por esta encantadora abertura de portas, que conduzirá uma nova geração de brasileiros a um encontro com si mesmos.”
Emicida

30 poemas de um negro brasileiro (Companhia das Letras, 2022), de Oswaldo de Camargo, demonstra, de maneira sensível, as questões mais íntimas das pessoas pretas na privilegiada sociedade branca brasileira. Com narrativas particulares de negros em situações cotidianas, o autor consegue expor os sentimentos profundos gerados pelo racismo estrutural que cerca o Brasil. 

Os poemas tratam dos protestos e angústias de uma população majoritariamente precarizada, com uma melancolia gerada pelos traumas e mortes, frutos do preconceito. A última produção do livro, A bala que matou Ninico, marca bem esse caráter lúgubre da obra:

“A bala…
chispou rumo a um espaço aberto
em que não estava ninguém,
raspou na trave de um campo,
apitando como trem,
seguiu, trombou com o vento,
entrou nele como alguém
que tem pressa na viagem,
e, zunindo, foi além
Ninico, neguinho preto,
ia, brincando com o encanto
de ser criança, cantava
olhando o dia espalhado
sobre o morro onde morava.
Levava pão, mortadela
para a mãe, que esperava, 
para a irmã, toda pequena, 
que, rindo, também esperava
e, como ele, cantava 
esperando o pão quentinho
e a mortadela; esperava.
A bala achou Ninico!
Era fria, dura, burra, 
cuspia raiva
quando Ninico passou.
E o dono dela gritava,
debaixo do dia aberto:
‘que fosse de encontro ao mundo!’,
fizesse acerto 
com tudo o que ele odiava.
A bala achou Ninico!
‘Mais um!’, o ódio cantava.”
– A bala que matou Ninico, Oswaldo de Camargo (pg. 115 e 116)

A produção de Oswaldo de Camargo também é marcada por uma forte celebração à ancestralidade das raízes africanas, que permanecem na história de cada indivíduo, como uma cicatriz. Ele faz muita referência ao Rio Nilo, localizado no Egito, e ao Congo. Esses fatores são visíveis nos poemas Oferenda, Festança e Meu grito

“Meu grito é estertor de um rio convulso…
Do Nilo, ah, do Nilo é o meu grito…
E o que me dói é fruto das raízes,
ai, cruas cicatrizes!,
das bruscas florestas da terra africana! […]”
– Meu Grito, Oswaldo de Camargo (pg. 43)

Os poemas também são fortemente influenciados pelo catolicismo, presente na vida do autor, principalmente pela sua formação acadêmica no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, no estado de São Paulo. Em Carta a Florestan Fernandes, agradecimento por Florestan compor o prefácio do livro, o autor expôs o motivo para o  caráter católico em suas produções. É possível perceber essa influência, ainda, no poema Á Senhora Aparecida

Além disso, um dos temas mais trabalhados pelo escritor em seus poemas foi a questão dos pensamentos íntimos da infância de uma pessoa negra na sociedade. Oswaldo trata muito de como as crianças se viam nessa dualidade entre dia e noite, os brancos e os pretas, respectivamente, como ele caracterizou algumas vezes durante a produção. 

O autor exibe em muitos momentos o descobrimento do adulto na sociedade racista e o desejo de voltar a inocência de ser criança para não perceber esse preconceito, como no poema Ronda. Entretanto, Oswaldo também expõe que nem a inocência infantil consegue esconder ou apagar certas marcas, como é visível em Fragmentos em prosa

“[…] Eu invejo agora o menino que fui.
leve, andando nas pedras de tantas montanhas;
e, porque me tornei tristemente um homem,
para breve serei uma sombra, só sombra. […]”
– Ronda, Oswaldo de Camargo (pg. 65 e 66)

A escrita de Oswaldo é reflexiva e leva o leitor a pensar sobre as marcas mais profundas que o racismo, no Brasil, pode acarretar no indivíduo, como a baixa autoestima e a imagem de próprio deturpada, sempre vendo a si mesmo com um aspecto negativo. No poema Presença, que expõe como a população branca vê o preto como um estranho, é possível visualizar os motivos dessa baixa estima

Oswaldo de Camargo apresenta uma habilidade de falar sobre temas muito sensíveis de uma maneira mais leve, sem perder o alerta da gravidade do assunto. O livro não contém um caráter tão crítico, mas sim reflexivo: ele tem o intuito de fazer seus leitores pensarem sobre os efeitos dos aspectos racistas que cercam a sociedade brasileira. 

Oswald de Camargo, autor de 30 Poemas de um Negro Brasileiro.
Oswaldo de Camargo já foi diretor de cultura da Associação Cultural do Negro e um dos nomes mais importantes da imprensa e do ativismo negro nos anos 1970 [Imagem: Divulgação/Twitter/Companhia das Letras]

Oswald defende uma revolução dos pretos, que seriam unidos pela ancestralidade em comum com as raízes africanas. Pela escrita do autor, é possível perceber que essa mudança proposta é mais interior de cada indivíduo. Em seus poemas, ele defende que é preciso  ignorar os estereótipos da branquitude e abraçar a sua cor, libertando-se da angústia causada pelo sentimento de inferioridade que foi construído ao longo da história escravocrata brasileira. Como é possível perceber no poema Grito de angústia

“[..] Eu conheço um grito de angústia,
e eu posso escrever este grito de angústia,
e eu posso berrar este grito de angústia,
quer ouvir?
‘Sou um negro, Senhor, sou um… negro!’”
– Grito da angústia, Oswaldo de Camargo (pg. 67 e 68)

Em um pouco mais de 100 páginas, Oswaldo de Camargo consegue despertar a empatia em seus leitores. 30 poemas de um negro brasileiro tira seus ledores de uma zona de conforto que o Brasil se encontra, seja ele branco ou negro. Para uma pessoa preta, o incômodo gerado ao ler o livro é claro: uma questão de reconhecimento com o eu lírico dos poemas. Já para uma pessoa branca, a indisposição gerada é resultado de uma compreensão dos sentimentos dos pretas, o que faz surgir a empatia. 

Em uma sociedade em que a branquitude é privilegiada, um poeta negro falar sobre o íntimo afetado pelo racismo é muito significativo. Oswaldo de Camargo inicia a revolução interior em seus leitores para que se quebrem essas amarras históricas. Por isso, a sua obra é muito recomendada para quem busca entender um pouco mais do conceito de negritude no Brasil.  

“[…] Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes
e seu grito: ‘bendita Liberdade!’
E ela sorri e se orgulha, de verdade,
do muito que tem feito!”
– Em Maio, Oswaldo de Camargo (pg. 111 e 112)

[Imagem de capa: Divulgação/Twitter/Companhia das Letras]

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