Por Carlos Ferreira
O sol era brando naquela manhã de domingo, mas o Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (CEPEUSP) fervia; era dia de competição. Dia de BichUSP, torneio dedicado aos calouros e, provavelmente, o primeiro contato dos ingressantes com o universo do esporte universitário. Após duas semanas de treinamento, estávamos lá em um torneio de atletismo — muitos dos competidores, assim como eu, não estavam familiarizados com o esporte e suas modalidades. No país do futebol, você não precisa ir muito longe para encontrar alguém com o sonho de ser um jogador de futebol profissional. Agora, encontrar uma criança que sonha em se tornar um velocista profissional… é uma tarefa complicada.
O relógio marcava pouco mais de 10h, a organização pedia para os atletas irem se preparando, a primeira modalidade a ser disputada seria os 100m rasos (masculino). Foram nove tiros, seis raias, 54 atletas ao todo. 12 segundos e 23 milésimos foi a marca cravada por Pedro Rangel, estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU). Por uma diferença de exatos sete milésimos, o calouro da FAU garantia o ouro.
Simultaneamente à prova de pista masculina, acontecia o salto horizontal feminino. A torcida dividia sua atenção e seus gritos entre as diferentes modalidades. Palmas ritmadas marcavam o trote das atletas rumo ao salto. Todos os ruídos, berros e clamores fundiam-se ao silvo de largada: nascia a sinfonia perfeita. E com a mesma maestria que a batuta rege a Orquestra Imperial, o compasso das palmas da Associação Atlética Acadêmica Politécnica (AAAP) conduziram Natalia Aline ao pódio. 3,99m foi a marca de Natalia… sim, três metros e noventa e nove centímetros. Horas depois, a politécnica subiria ao pódio, receberia sua medalha de ouro e ficaria sabendo que Graziely de Souza, medalha de prata, havia atingido 3,98m. Encerrada a prova de campo, as atletas se dirigiram à pista, os homens faziam suas marcações na raia de salto e o cansaço já fazia parte da disputa.
As provas foram se sucedendo, às 14h o sol estava a pino e o CEPEUSP mais quente do que nunca. Todos os participantes já haviam competido em alguma modalidade, todos já haviam escutado seus nomes sendo rasgados nas bocas dos torcedores, todos já haviam sentido o peso e orgulho de vestir uma camisa; de carregar as cores, o brasão e a tradição de suas respectivas faculdades.
Ao final da tarde, o clima se normalizava, e a única coisa que continuava a correr pelas pistas e campos do Centro de Práticas Esportivas era uma brisa leve, enquanto os atletas — exaustos ao chão — eram banhados pelos ventos de outono. O céu se alaranjava ao pôr do sol, os competidores seguiram para a cerimônia de premiação. Os participantes que subiam ao pódio foram recebidos aos gritos e cantos por suas atléticas. Com o encerramento do BichUSP, os ingressantes estavam iniciados ao universo do esporte universitário. Alguns seguirão competindo e, quem sabe, se tornarão destaques, atletas de alta performance. Outros já tiveram suas carreiras encerradas na manhã de segunda-feira.
“O esporte universitário é um esporte de formação, cuja função principal é social, visando o bem estar do estudante universitário. É impossível negar a contribuição do desporto acadêmico para aproximação do ser humano, de seu relacionamento, do incentivo ao coleguismo, ao espírito de coletivismo e também ao incentivo à formação de novas lideranças”. – COELHO, S. L. 1984; FEDERAÇÃO UNIVERSITÁRIA PAULISTA DE ESPORTES 1° Livro de atas do Conselho de Representantes da FUPE.
Por trás do esporte, história.
Londres, 1829. Charles Merivale, estudante de Cambridge, e seu amigo Charles Wordsworth, aluno de Oxford, fizeram uma aposta que deixaria seus nomes marcados na história do esporte universitário: uma disputa de remo. No dia 10 de junho daquele mesmo ano, os amigos se enfrentaram no rio Tâmisa. Wordsworth venceu, trazendo para Oxford o título do que viria ser a primeira competição universitária reconhecida pela Federação Internacional do Desporto Universitário (FISU). Hoje, a regata de remo entre as duas renomadas universidades é uma das mais tradicionais competições do gênero.
Do outro lado do Atlântico, nas terras tupiniquins, o esporte universitário não poderia nascer de outra forma que não fosse pelo futebol. O provável berço do desporto acadêmico, no Brasil, foram as “peladas” da Faculdade de Medicina e Cirurgia, localizada na Praia Vermelha (Rio de Janeiro), e da Universidade Presbiteriana Mackenzie — ou Mackenzie College, até então —, na cidade de São Paulo. Em 1900, além de outros esportes, a Mackenzie já disputava campeonatos de futebol, mas é somente no ano de 1916 que começariam as primeiras disputas interestaduais envolvendo as universidades de São Paulo e Rio de Janeiro. No mesmo período, times como Flamengo, Fluminense e Botafogo tinham grande parte de seus elencos compostos por estudantes universitários.
Desde sua origem, no final do século XIX, até os dias atuais, o esporte universitário vem sofrendo transformações. Um aparato burocrático foi criado para garantir a prática das atividades esportivas nas Instituições de Ensino Superior (IES), sendo o Decreto/Lei 3617, de 1941, um marco decisivo. As IES passaram a ser obrigadas a constituir e montar centros esportivos. A partir disso, foram criadas as Associações Atléticas Acadêmicas (A.A.A.s), a Confederação Brasileira de Desporto Universitário (CBDU) era oficializada e os Jogos Universitários Brasileiros (JUB’s) instituídos.
Cabe reforçar, também, que o desporto universitário brasileiro não é uno, mas, sim, plural. Pode ser dividido em três: esporte de rendimento, reservados aos atletas de alta performance, que disputarão às competições inter-universidade e os campeonatos oficiais; esporte de participação, praticado por qualquer estudante — podendo ele participar de torneios ou não — com o objetivo prático de integração na vida social, promoção da saúde e da educação; esporte educacional, realizado por meio da educação física curricular.
Por trás da história, resistência.
Resistência. Não há substantivo melhor para definir o modelo brasileiro de esporte universitário. Apesar da institucionalização, o desporto acadêmico encontra dificuldades muito parecidas com a de sua gênese. Todos os mecanismos burocráticos criados para assegurar as atividades esportivas nas IES atuam somente de maneira superficial. Não havendo amparo real por parte do Estado ou da CBDU, as bolsas de estudo esportivas são ínfimas e o financiamento, praticamente, inexistente.
Diante desse cenário, o esporte de rendimento acaba sendo o maior afetado, pois é, justamente, o que exige maior incentivo por parte das instituições de poder. O governo pouco faz para atender suas necessidades, seja para manutenção ou organização de competições. Surge daí a importância das A.A.A.s, principais entidades de organização do esporte universitário, muitas vezes, sem nenhum tipo de apoio financeiro, sendo totalmente autogeridas pelos estudantes.
As atléticas são o sustentáculo do esporte universitário brasileiro. Feitas por estudantes, para estudantes, elas são responsáveis pelo cotidiano dos atletas e pelo desenvolvimento de centenas de torneios por ano. Tais competições são denominadas “inter’s”, e, embora não sejam oficializadas pela CBDU, são o principal mecanismo de manutenção do desporto acadêmico.
Por trás da resistência, paixão.
Se a resistência é o elemento basilar do esporte universitário brasileiro, é a paixão seu combustível. O que motiva os estudantes a conciliarem suas vidas acadêmicas com a esportiva dentro das IES, quando não há nenhum tipo de benefício ou incentivo para tal? O que acontece para eles se auto-organizarem em associações a fim de coordenarem os treinos e competições? Algumas perguntas como estas só encontram suas respostas fora do escopo da razão.
O que compele os universitários a seguirem, apesar das adversidades, é a paixão pelo esporte. É a sensação inefável de vestirem as cores de suas universidades, de subirem no pódio carregando o brasão e a tradição do lugar que os acolheram. É a loucura de ficarem acampados dias durante algum inter, é algo pouco lógico. Apesar dos muitos obstáculos que o esporte universitário enfrenta para continuar existindo, sua maior qualidade é a resiliência, e, a cada queda, ele se levanta mais forte.