Este filme faz parte da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Parece impensável viver em uma cidade na qual as ruas não têm nomes. A premissa não é um mero modo de referenciação: trata-se da materialização da identidade do lugar, ainda que isso ocorra de forma controversa em alguns casos. Até 2010, entretanto, as ruas de Puerto Pirámides ― uma pequena cidade da Patagônia argentina ― não tinham nome. Apenas em 2004 surgiu o projeto que transformaria essa realidade, inspirando o filme As Ruas (Las Calles, 2016) ― o primeiro da diretora argentina María Aparicio.
O longa narra o desenrolar de um projeto de História Oral desenvolvido pelos alunos da Escola no 7710, a única de Puerto Pirámides. O objetivo é nomear as vias da cidade, e os alunos contam com o auxílio da professora Julia (Eva Bianco) para entrevistar os habitantes e chegar a uma compilação de nomes baseados na memória do local. Os relatos apresentados são os mais diversos. Ao mesmo tempo em que há um cidadão que fugiu de Buenos Aires pela ditadura militar, há outro que sempre viveu em Puerto Pirámides, relembrando os tempos em que apenas algumas vacas abasteciam a demanda de leite da cidade inteira.
As Ruas tem um ar documental em toda a sua extensão. O formato de entrevistas e as cenas em que as personagens contemplam a câmera, além da quase inexistente trilha sonora, constroem essa atmosfera. Tal percepção não está completamente equivocada: há apenas três atores, de fato, no longa. Eva Bianco, Mara Santucho e Gabriel Pérez. Tanto os alunos quanto os entrevistados são realmente habitantes de Puerto Pirámides, o que traz veracidade à narrativa, ainda que esta seja na essência ficcional. A sensação de verossimilhança é também propiciada pela presença de close-ups e planos detalhe, que evidenciam expressões e o manejo de determinados objetos. Em contrapartida, planos mais amplos mostram deslumbrantes paisagens da região, que contrastam lugares áridos a praias de uma beleza impressionante, denunciando a elogiável fotografia de Cesar Aparicio e Santiago Sgariatta.
Uma das entrevistas que mais dialogam com essa dinâmica é a de um casal que está na cidade desde 1986. Apesar de o fato de terem construído sua casa com as próprias mãos ser notável, a vida difícil proporcionada pela pesca e pela captação de frutos do mar ― típicos trabalhos da região ― da qual falam não é novidade ao espectador, já familiarizado com a questão por outros entrevistados. No entanto, a serenidade que o casal emana é pura poesia. Eles representam perfeitamente a atmosfera transmitida pelas frequentes paisagens do filme: a vida pode ser árida, mas também plena como o mar. Por fim, para materializar essa profundidade poética, a senhora olha para a câmera e recita um poema, proclamando a emblemática frase: “Golfo de San José, esperança de sal”.
O desfecho do filme é substancialmente interessante: os possíveis nomes das ruas, após o longo processo de entrevistas, são submetidos a votação popular. Mostrar esse ato de democracia direta é um acerto, considerando que a nomeação de ruas é tradicionalmente mediada pelo Estado. No entanto, As Ruas falha em mostrar a complexidade e a dimensão temporal inerentes ao projeto, quebrando, em certos momentos, uma linearidade narrativa importante à compreensão. Ainda assim, o filme de María Aparicio é de uma sensibilidade elogiável, aproximando o espectador da relação entre memória e identidade que perpassa fronteiras.
Confira o trailer
por Laila Mouallem
lailaelmouallem@gmail.com