Por Carol Oliveira (carollfts@gmail.com) e Matheus Sacramento (matheussacrame@gmail.com)
O esporte brasileiro tem sido muito criticado recentemente. Alguns maus resultados em Olimpíadas e principalmente na Copa do Mundo (os doídos 7×1) levantaram questionamentos sobre o que está se fazendo de errado. Não só sobre os atletas, que são a ponta do iceberg, mas também sobre aqueles que administram todo esse negócio apaixonante: os dirigentes. A Jornalismo Júnior investigou o assunto e agora te explica um pouco mais sobre a estrutura de poder velha e nada eficiente do esporte, um dos principais motivos que atrapalha nosso desempenho esportivo.
A estrutura vertical das instituições esportivas
A especialista Katia Rubio, professora da Escola de Educação Física e Esportes (EEFE/USP), diz que os problemas começam já na estrutura do Comitê Olímpico Internacional (COI), o órgão mais importante do esporte mundial. Segundo a pesquisadora, o COI se organiza numa “democracia reversa”, pois seus membros não são eleitos, mas indicados por quem já está no cargo. “Tudo começou lá com o [Pierre de] Coubertin [francês fundador do COI]: ele chega, convida meia dúzia de amigos e eles montam um comitê olímpico. E estruturaram o seguinte: só entra aqui quem for convidado a ser recebido”.
Tal organização de poder, quando da fundação do COI em 1894, visava a estabilidade da instituição numa época em que a Europa passava por grande instabilidade. Porém, mesmo diante das mudanças políticas do século XX, a estrutura anti-democrática do COI permaneceu intacta. Katia aponta que a Carta Olímpica – documento que rege as diretrizes do COI e dos esportes olímpicos no mundo – pouco foi alterada de 1894 para cá. “A carta olímpica é um dos instrumentos mais longevos que existe, e que atravessou o século XX sem transformação”, diz ela.
E o mesmo ocorre com outras entidades esportivas. Análogo ao COI no Brasil, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) possui todas as confederações esportivas subordinadas a ele, exceto a de futebol. Diferentemente do que ocorre no COI, no COB os mandatários são eleitos. Porém, apenas as confederações têm poder de voto, sem qualquer participação direta de atletas ou entidades menores.
Concentração de poder nas gestões esportivas
Apesar de eletiva e aparentemente democrática, a escolha dos mandatários do esporte está longe de ser competitiva. As eleições são resultado de um amplo jogo de interesses que gira em torno de contatos, troca de favores e até mesmo esquemas de corrupção. O que ocorre no esporte mundial é que cartolas se perpetuam no poder. No Brasil, por exemplo, a maioria dos presidentes de confederações esportivas já ocupam o cargo há anos: o atual presidente do COB, Carlos Arthur Nuzman, está no poder desde 1995; o presidente da Confederação Brasileira de Natação e Desportos (CBDA), Coaracy Nunes, desde 1988.
A estrutura engessada, viciada e pouco democrática das confederações faz com que a má gestão e a corrupção sejam notícias frequentes no meio esportivo.
A Confederação Brasileira de Voleibol (CBV), por exemplo, teve algumas de suas “maracutaias” desvendadas no escândalo de corrupção que envolvia o Banco do Brasil, empresas de ex-integrantes do órgão e membros da Federação Internacional de Voleibol (FIVB). O presidente licenciado da CBV e atual presidente da FIVB, Ary Graça Filho, estava envolvido nos atos corruptos que envolviam contratos milionários, como foi documentado na série de reportagens Dossiê Vôlei, do jornalista Lúcio de Castro, ao site da ESPN.
A FIFA (Federação Internacional de Futebol Associado), entidade máxima do futebol, é outro exemplo de má gestão e falta de transparência. É quase impossível ter acesso a certos documentos da federação, protegidos pela lei suíça, onde é sediada. A entidade frequentemente está envolvida em casos de corrupção, como compra de votos para escolha de sede da Copa e para eleição do presidente da FIFA; venda ilegal de ingressos da Copa e concorrência desleal pelos direitos de imagem e marketing da Copa. As denúncias foram relatadas no livro Jogo Sujo, escrito pelo jornalista inglês Andrew Jennings.
Ainda assim, Katia afirma que, no Brasil, duas confederações se destacam por uma boa gestão: a Confederação de Rugby e a Confederação Paralímpica. “São duas instituições hoje com gestões sérias, transparentes, que estão mostrando resultado em muito pouco tempo”, diz ela.
É justo que as confederações esportivas não ouçam a sociedade?
As confederações esportivas são entidades privadas. Por esse aspecto, poderiam gerenciar o esporte da forma que bem entendessem, assim como acontece em uma empresa. A população não teria legitimidade nenhuma para questionar ou tentar ser ouvida. No entanto, apesar de independentes do governo, as confederações recebem dinheiro público. A Lei Agnelo Piva, por exemplo, repassa ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e ao Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) dinheiro das loterias esportivas federais. Dessa forma, a gestão de confederações como entidades alheias à sociedade é questionável. “No caso do Brasil, o esporte não vive sem o poder público”, pontua Katia. “As federações e confederações elegem quem elas bem entendem e não tem que prestar contas à sociedade? Não é assim. Se eu estou pagando a estrutura que eles usam, é claro que eles têm que nos dever satisfação. É o meu imposto que está lá pagando a estrutura que eles montam e o sistema corrupto que eles reforçam.”
Existem ainda outros motivos, além do financeiro, que legitimam uma participação maior da sociedade nos órgãos de comando do esporte. Um deles é a dependência que as confederações têm do próprio país. Não existe COB sem a bandeira do Brasil, não existe CBF sem futebolistas brasileiros. É diferente de uma empresa, por exemplo, que pode sair de seu país de origem e usar mão de obra de outras nações. “A relação do esporte com os estados nacionais é muito próxima, porque nenhuma competição internacional aceita atletas avulsos. Eles são sempre representantes de um país, atrelados às instituições e às estruturas esportivas desenvolvidas nesses países”, ressalta a professora.
Dado o legítimo direito da sociedade de conhecer os gastos das instituições esportivas, a transparência torna-se uma pauta fundamental. O COB disponibiliza em seu site os “Boletins Olímpicos”, documentos que mostram as ações realizadas pelas confederações no último trimestre. Já no futebol, os gastos dos clubes e federações ainda são bastante obscuros; como a CBF e suas federações subordinadas não recebem recursos do COB, estas não são “oficialmente” obrigadas a prestar contas.
Lei de 2013 estimula democratização do esporte
A democratização do esporte recebeu um impulso recentemente, após a aprovação da Medida Provisória 620. Transformada em lei no ano passado, a MP determina que presidentes de confederações e entidades desportivas não poderão permanecer no cargo mais do que oito anos, se quiserem continuar recebendo dinheiro público. Agora, o mandato máximo é de quatro anos, com direito a uma reeleição. É o fim das gestões inacabáveis, como a do já citado Coaracy Nunes, presidente da CBDA.
A lei também estabelece maior participação dos atletas na gestão das entidades. Eles terão representação no conselho de direção, além de poder de voto nas eleições. Outra medida é a garantia de transparência nas gestões desportivas, inclusive nos gastos e receitas. As direções serão obrigadas a tornar públicos documentos importantes, como valores de contratos e patrocínios.
Participação dos atletas nas instituições
A verticalidade das estruturas e falta de diálogo com os outros setores da sociedade é um dos maiores problemas das instituições brasileiras (não só das esportivas). Recentemente, a discussão sobre maior participação dos atletas na gestão do esporte vem ganhando força. Em 2013 surgiu o Bom Senso F.C., uma associação de jogadores profissionais que luta pela democratização e melhor administração dos clubes e da CBF. Apesar de recente, o movimento já conta com mais de 70 mil jogadores, que vão desde nomes importantes como Paulo André (ex-zagueiro do Corinthians) e Alex (meia do Coritiba), até anônimos que atuam por clubes praticamente desconhecidos. “Propomos que a CBF, que conta com apenas 47 votos em sua Assembleia Geral, incorpore a voz e a visão de atletas, treinadores, árbitros e executivos do futebol”, diz o texto que acompanha a petição do Bom Senso na internet.
Ainda antes do surgimento do Bom Senso, os atletas olímpicos criaram, em 2006, a associação Atletas pelo Brasil, que além de lutar pelos direitos dos atletas em si, visa fomentar junto ao governo e à sociedade medidas que incentivem o esporte. Entre os participantes do movimento figuram nomes como a ex-jogadora de vôlei Ana Moser e o ex-jogador de futebol Raí.
Embora tenha uma série de problemas neste quesito, desde 2009 o COB já conta com uma Comissão de Representação dos Atletas Olímpicos, que visa ampliar o diálogo com os atletas e aumentar a participação destes nas decisões. O atual presidente é o jogador de vôlei de praia Emanuel, enquanto a vice é Hortência, famosa jogadora de basquete.
Para Katia Rubio, tais movimentos de atletas são importantes para a democratização das instituições, mas ela ressalta a dificuldade em conseguir mudanças: “É claro que isso tudo leva a uma possibilidade de transformação concreta, mas é uma estrutura que já tem mais de 100 anos, e que não será entregue facilmente (…) Porque quem se instalou no poder, e conhece as benesses [benefícios] do poder, não vai abrir mão disso tão fácil.” Para que transformações realmente aconteçam, Katia defende que não só os atletas, mas outros setores da sociedade, também se engajem nesta luta. “Não dá para a gente esperar que apenas o ministério, o governo ou uma instituição resolvam tudo. O esporte é um patrimônio social, cultural, ou seja, ele é da humanidade”.