Ana Luiza Cardozo
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“Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”. A célebre frase shakesperiana resume bem a mais nova obra de Wagner de Assis, Kardec (2019). Nela, somos apresentados a León Rivail (Leonardo Medeiros), o cientista e educador francês mundialmente conhecido por codificar a Doutrina Espírita, usando o pseudônimo Allan Kardec. O filme conta a história de todo o processo de investigação dos fenômenos inexplicáveis que não saiam da boca da população parisiense, até o lançamento de “O Livro dos Espíritos”, que abala as estruturas de uma Europa católica.
León é um professor cético que observa o mundo pelo viés lógico, guiado pela luz da razão, até que recebe um convite para testemunhar as manifestações paranormais de que tanto se falava, tratadas com grande desdém pelo intelectual. Relutante, porém intrigado com o que presenciou, decide pesquisar esses eventos extraordinários e se aprofundar na espiritualidade, tudo com a ajuda da esposa e fiel companheira Amélie-Gabrielle (Sandra Corveloni).
O momento no qual o cientista decide dar uma chance ao misticismo é representado em uma cena sem falas, ele e sua mulher se comunicam apenas pelo olhar, por tilintar de talheres e batidinhas na madeira da mesa de jantar. A passagem mostra sutileza e cuidado, uma tentativa bem-sucedida de tratar a progressão do filme e dos personagens fugindo da artificialidade. O esforço para que a transformação de Rivail em Kardec não soasse brusca também é perceptível na atuação muito competente de Leonardo Medeiros, que imprime carisma e naturalidade ao papel, passando por dois extremos sem nunca perder a essência analítica, típica de um amante da ciência.
O destaque imbatível do longa – e uma prova do que o cinema nacional é capaz – é sua excelente qualidade visual. Ponto para a equipe de arte, comandada por Cláudio Amaral Peixoto e Helcio Pugliese e para o time de fotografia, dirigido por Nonato Estrela. A estética do filme chama atenção do início ao fim. Vemos cores sóbrias e tons escuros, que ajudam a construir o ar de antiguidade pretendido numa trama de época. A reconstituição histórica também impressiona, podemos notar grande atenção aos detalhes, desde os figurinos impecáveis até os cenários deslumbrantes e os objetos que os compõem.
Outro quesito marcante é a superação do imenso desafio de apresentar visualmente uma Paris do século 19. Somos levados a uma viagem no tempo com as cenas externas, produzidas por ótimos efeitos especiais, que oferecem ao espectador um retrato consideravelmente fiel e belo da cidade.
Em contrapartida, algumas figuras e situações são pouco exploradas, como o desentendimento entre Kardec e a médium Ruth-Celine (Julia Konrad), após a publicação de “O Livro dos Espíritos”. A diferença de ritmo também é perceptível, já que, a partir desse ato, o desenrolar da história é acelerado, passando brevemente por episódios relevantes com o objetivo de chegar ao seu fim.
Também percebe-se que o conflito com a Igreja Católica decorrente do lançamento do exemplar, que traz as conclusões que viriam a lançar as bases do espiritismo, é desenvolvido de forma um pouco apressada e superficial. Apesar disso, a abordagem da narrativa é bem diferente do que estamos acostumados a ver em filmes que falam sobre espiritualidade, incluindo os de autoria do mesmo diretor. Ela se concentra especialmente em rigor científico e método, unindo um processo lógico de pesquisa à fé, o que atribui originalidade ao roteiro.
Kardec vem com uma perspectiva interessante e é um prato cheio para os olhos. O longa tem estreia marcada para o dia 16 de maio e o trailer pode ser assistido aqui: