Por Gabriela Cecchin (gabrielacmr@usp.br)
A porcentagem de crianças brasileiras de 7 a 9 anos que ainda não sabem ler ou escrever dobrou após a pandemia de Covid-19. É o que aponta o relatório da Unicef sobre a pobreza multidimensional na infância e na adolescência, com base em dados disponibilizados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Andressa Leme, doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que a impossibilidade das crianças frequentarem a escola resultou na interrupção da função histórica dessa instituição. “Essa função consiste em instruir e promover a socialização das crianças, tanto com o professor quanto com seus pares da mesma idade, em um ambiente organizado para essa finalidade. Os danos desse impedimento tornaram-se ainda mais visíveis quando, mesmo diante dos esforços dos professores, muitas crianças, por falta de acesso à tecnologia, não puderam assistir às aulas”, ela completa.
O filme A Chegada (Arrival, 2016), dirigido por Denis Villeneuve e roteirizado por Eric Heisserer, apesar de ter sido lançado quatro anos antes da pandemia, aborda algumas questões que podem ser utilizadas para compreender os problemas resultantes do isolamento. No enredo, doze naves com alienígenas aparecem em diversos lugares da Terra, e os seres humanos precisam aprender a se comunicar com eles. Para essa tarefa, os militares dos Estados Unidos chamam a linguista Louise Banks (Amy Adams), conhecida por ter traduzido documentos persas alguns anos antes.
Necessidade do contato direto
Em uma das primeiras cenas da obra, um coronel estadunidense é designado para comunicar Louise sobre a proposta de trabalho. Ele traz um áudio capturado na nave dos sons que as criaturas estavam emitindo, e pede para que a linguista traduza. Ela afirma que não conseguiria aprender uma língua apenas com um áudio sem contexto — precisaria ir até a nave para ter contato direto com os alienígenas.
“Posso dizer que é impossível traduzir a partir de um arquivo de áudio. Eu precisaria estar lá para interagir com eles.”
Louise Banks (personagem de ‘A Chegada’)
Um dos motivos para o déficit de aprendizagem das crianças na pandemia, além das questões financeiras e emocionais, foi o distanciamento dos alunos com os docentes durante a alfabetização. Andressa Leme reforça que é imprescindível que haja uma interação entre quem aprende e quem ensina nesse período escolar. “O professor não apenas orienta as crianças sobre como cumprir uma tarefa, mas também ensina como segurar o lápis e respeitar as margens do caderno, por exemplo”, diz ela.
Marcia Souza, professora doutora da Faculdade de Educação da USP, afirma que as metodologias específicas dessa fase de escolarização surtem melhor efeito quando aplicadas presencialmente: “Há também a necessidade de atenção individualizada às crianças, sabemos que elas aprendem de formas diferentes e em seus tempos”. É preciso se aproximar do aluno para analisar seu estágio de desenvolvimento, ensiná-lo a desenhar letras e ouvir sua tentativa de leitura. “Fica evidente que o distanciamento com as aulas online não permitiu este ‘cuidado’ e atenção”, reitera a doutora.
Paciência para prevenir ambiguidades
Perto da metade do filme, o Exército estadunidense começa a pressionar Louise para se comunicar com os extraterrestres de maneira mais rápida. Eles alegam que a protagonista estava aprendendo palavras que não seriam necessárias para as informações que os Estados Unidos buscavam, mas ela justifica que precisava entender primeiro o vocabulário básico dos alienígenas, para depois formular frases complexas.
“Preciso disso para que a gente não interprete errado algo lá dentro. Do contrário, levará dez vezes mais tempo.”
Louise Banks (personagem de ‘A Chegada’)
A doutoranda Andressa Leme diz que todo ato educativo requer paciência, independentemente do ciclo escolar: “Contudo, acredito que a prevenção da ambiguidade e da confusão durante a alfabetização exige objetividade. Quando as crianças elaboram perguntas, é preciso ter consciência de que elas já formularam algumas suposições que as fizeram chegar até ali. Desse modo, considero problemático que o educador responda à criança com outra pergunta ou deixe a responsabilidade de esclarecer a dúvida do aluno para o restante da classe. Além de confundir o aluno que lança seus questionamentos, essa prática descaracteriza a função docente: ensinar de forma sistemática e intencional, o que inclui corrigir e conduzir diretamente todo o processo de ensino.”
Participação dos pais
A Chegada mostra a protagonista interagindo com sua filha em diferentes fases do seu desenvolvimento. Por vezes, a criança ou adolescente pergunta para a mãe sobre o significado de alguma palavra ou o termo certo para determinada ideia. A presença dos pais é de grande importância para que o ser humano em formação consiga aprender mesmo fora da sala de aula.
De acordo com Andressa, os pais podem contribuir de maneira positiva no processo de alfabetização de seus filhos ao incentivá-los no denominado letramento. “Isso significa incentivar a curiosidade das crianças em relação à leitura e à escrita fora do ambiente escolar: práticas como ler para as crianças, permitir que elas explorem diversos materiais escritos, encorajá-las a escrever e expressar sua compreensão das letras são bons exemplos disso”, sugere a doutoranda.
Já Marcia afirma que a escola é responsável por orientar os responsáveis em como apoiar a aprendizagem das crianças e obter bons resultados: “Devemos ter claro que, no contexto das escolas públicas, em que as famílias têm poucos recursos financeiros e materiais e que pais e mães na maioria das vezes trabalham o dia todo, nem sempre é possível dar o apoio necessário para suas filhas ou filhos. Logo, a escola é quem deverá suprir essa falta”.
A língua para a inclusão social
Um dos elementos principais do longa estrelado por Amy Adams é a ideia de que a linguagem relaciona-se diretamente com as diferentes visões de mundo e formas de observar o espaço e o tempo. É citada a Hipótese de Sapir-Whorf, conhecida por estabelecer uma interdependência entre linguagem e cultura. Isto é, afirmar que a população compreende a realidade através das categorias gramaticais e semânticas de sua língua, ao mesmo tempo que o idioma é construído com base em sua forma de viver.
Por exemplo, no português, o passado é entendido como algo que está atrás, enquanto o futuro está à frente. No entanto, idiomas como o mandarim têm metáforas de tempo verticais, e compreendem que o passado está embaixo e o futuro em cima. Já a língua indígena latina Aimará entende que o passado está à frente, porque podemos enxergá-lo, e o futuro para trás, onde não podemos vê-lo.
Relacionado a Hipótese de Sapir-Whorf, o aprendizado de uma nova língua, ou mesmo de formas diferentes de se comunicar em um mesmo idioma — no caso, a escrita e leitura — é importante para que as pessoas sejam incluídas nos sistemas coletivos do país em questão. Principalmente em cidades urbanizadas, ler e escrever são habilidades indispensáveis para o pleno convívio entre os indivíduos, inserção no mercado de trabalho e até mesmo a busca por direitos como cidadãos.
Andressa afirma que as crianças que não dispõem da alfabetização em uma sociedade letrada provavelmente enfrentarão dificuldades de aproveitamento nos ciclos de ensino subsequentes e na vida. “Essa condição agrava as desigualdades sociais, colocando-as em desvantagem em relação às outras que dominam a leitura e a escrita”, afirma a doutoranda.
Marcia reforça que as outras formas de comunicação também são relevantes, como a linguagem não-verbal por imagens. “A alfabetização tem importância, mas não é tudo”, diz ela. “Entretanto, a sociedade ‘exige’ de todas e todos que consigamos não somente ler, mas também interpretar e elaborar textos, entre outras tarefas que exigem a alfabetização. A educação escolar, para ter qualidade, deve ter como principal objetivo emancipar os sujeitos. Isso passa pela alfabetização, pelo entendimento de seus direitos e pelo engajamento na luta pela democracia”, completa a professora.