A natureza do ser humano é fundamentalmente social. Mas, em tempos de pandemia e distanciamento causados pelo novo coronavírus, a capacidade de interação enfrenta fortes limitações. O compartilhamento de experiências, aprendizados e emoções, em muitos casos, se restringe à mediação da luz fria emitida pelos aparelhos eletrônicos, o que estende a sensação de distanciamento físico para o campo afetivo. A dificuldade em lidar com as emoções, contudo, não é característica exclusiva de períodos pandêmicos. É um desafio que perpassa toda a existência humana e que pode ser superado com a ajuda da literatura, seja por meio da leitura orientada ou por meio da escrita.
Quando pensamos em terapia, geralmente pensamos em um processo de cura pela fala. Mas a leitura também tem sido investigada por seu poder terapêutico desde metade do século 20, como aponta um estudo feito pela pesquisadora Clarice Fortkamp Caldin, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A prescrição e orientação de leituras como estímulo ao desenvolvimento emocional é a base da biblioterapia, prática utilizada no cuidado psicológico de pessoas em diferentes faixas etárias.
Uma experiência com muitas vozes
Um dos pontos fortes da biblioterapia é que a leitura diversifica as vozes no processo de compreensão e expressão de emoções. Ao acompanhar a trajetória de personagens, seus sentimentos e comportamentos, é possível reconhecer sentimentos próprios e nomeá-los.
Para a psicóloga e biblioterapêuta Cristiana Seixas, o livro pode ser uma forma sutil de espelho. “Na mitologia grega, existe a personagem Medusa, que petrifica quem olha diretamente para os olhos dela. Certos assuntos e traumas também são assim: petrificam as pessoas. Para olhar para a Medusa psíquica, é preciso utilizar um espelho, que pode ser o livro”, explica. A leitura, nesse caso, não é apenas entretenimento ou um estudo da obra, mas o ato de colocar a literatura a serviço da história do indivíduo.
A leitura também oferece novas perspectivas de como reagir a diferentes situações, uma característica que é comum à arte em geral. Além de dialogar diretamente com a subjetividade, a arte possibilita que as pessoas pensem e sintam de outros modos, para além da realidade em que vivem. Com isso, podem construir novas formas de superar os problemas e enfrentar condições de opressão internas (como o sofrimento psicológico) ou externas (como a desigualdade social).
Na biblioterapia, as indicações partem das experiências de quem vai ler o livro, seus estilos e autores de interesse. Do mesmo modo, o repertório do profissional que indica a leitura tem grande influência. “Essa é a arte da biblioterapia, é o que faz dela algo tão subjetivo”, destaca Cristiana. “Ela parte de um acervo dos livros que foram e são fundamentais para você, e é com ele que você pode começar a trabalhar, pois não posso levar ninguém aonde eu não tenha ido”. Esse caráter dialógico também permite que a pessoa que indica o livro faça suas releituras da obra e reforce seu autocuidado, ao mesmo tempo em que ajuda a cuidar do outro.
No Brasil, a biblioterapia começou a ser estudada na década de 1970 e hoje é praticada em hospitais, casas de repouso, escolas e também em espaços privados, como clínicas ou a própria residência da pessoa. Mas ainda há muito a se alcançar no processo de consolidação da prática. Segundo Cristiana, há muitos cursos de formação disponíveis para profissionais de diferentes áreas e o objetivo geral é que a biblioterapia alcance o patamar que a arteterapia tem hoje, com reconhecimento legal e adoção como Prática Integrativa Complementar no Sistema Único de Saúde (SUS).
Em outros países, como a Polônia, a prática se estabelece vinculada à atuação de bibliotecários em espaços variados, incluindo bibliotecas públicas, escolas, parques e centros de assistência social. Apesar das diferenças em relação ao Brasil, um aspecto compartilhado pelos dois países é o reconhecimento do caráter interdisciplinar da biblioterapia, que pode abranger campos da educação, da saúde e das ciências da informação, que incluem a biblioteconomia.
Livro como espaço seguro e transformador
No Brasil, uma pessoa lê em média apenas dois livros inteiros por ano, como indica a quarta edição do Retratos da Leitura no Brasil. O uso amplo da leitura como ferramenta de desenvolvimento emocional pode ajudar a transformar esse cenário, especialmente quando consideramos sua aplicação em espaços coletivos como comunidades, ONGs e escolas.
A psicóloga Vera Lucia Trevisan, que pesquisa Psicologia da Arte na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), desenvolve projetos com arte, incluindo literatura, em escolas públicas. Os projetos fazem parte de um modelo de pesquisa-intervenção, na qual uma equipe de pesquisa em Psicologia atende as demandas da escola, direcionadas para os afetos, as relações interpessoais e o cuidado psicológico dos jovens, muitos deles submetidos a condições de vulnerabilidade social.
Vera destaca que as atividades com leitura e contação de histórias têm um grande poder transformador. Além da oportunidade estética que o livro oferece enquanto arte, existe a ampliação do conhecimento dos jovens sobre diferentes formas textuais e a modulação do processo dialógico de fala e escuta, por meio do compartilhamento de impressões e experiências. Para isso, é preciso adotar estratégias que engajem os jovens nas atividades propostas, elegendo livros de acordo com o interesse do grupo.
Uma vez engajados, a leitura pode funcionar para esses jovens como um espaço seguro de viverem suas emoções. Ainda que os acontecimentos da história não sejam o que os estudantes vivem na realidade, as emoções dos personagens são vividas. Segundo Vera, “lidar com a violência de um vampiro ou com a perda de uma pessoa amada pelo personagem permite que os jovens vivam suas próprias emoções de medo, raiva ou luto de forma segura, porque intermediada pela ficção; a partir disso, eles podem elaborar as emoções sentidas no mundo real”.
Ao final das intervenções, muitas vezes os jovens estão mais dispostos às atividades de leitura em geral e passam a trazer e a escrever novas histórias. “Quando eles escrevem, ressignificam as histórias trabalhadas, invertem papéis de vilões e heróis e criam realidades que transformam suas próprias narrativas de vida. Eles decoram as histórias, desenham… fica lindíssimo”, conta Vera.
Do nosso interior para o papel
Colocar uma ideia no papel (ou em um arquivo digital) é uma forma de torná-la visível e mais palpável. Há milênios a escrita tem sido usada como forma de expressão, mas seus efeitos positivos na saúde psicológica só começaram a ser investigados recentemente, como a psicóloga Idonézia Benetti aponta em artigo publicado nos Cadernos Brasileiros de Saúde Mental. Uma das razões pelas quais a escrita contribui para o desenvolvimento emocional é a sua função catártica, de libertação de sentimentos muitas vezes reprimidos ou inconscientes. Outra razão é o incentivo à reflexão sobre as situações vividas pela pessoa que escreve ou pelos personagens que ela cria.
A jornalista e escritora Tamiris Volcean escreve desde criança e relata que escrever é uma forma de se encontrar. “É escrevendo que eu verdadeiramente existo, sem filtros sociais ou tentativas falhas de me encaixar aqui e ali. O hábito me permite organizar os pensamentos que, quando soltos, causam ansiedade”. Ela relembra o livro de José Saramago, O conto da ilha desconhecida, que traz a frase “É necessário sair da ilha para ver a ilha”. Tamiris afirma que “ler nossos pensamentos é uma forma de sair da ilha e, finalmente, tomada a devida distância, enxergar quem somos”.
Não existe um formato único para a escrita como forma de desenvolvimento emocional. Algumas pessoas mantêm diários, com relatos que não serão compartilhados com terceiros. Outras compartilham postagens de diferentes estilos em blogs e redes sociais. E há quem transforme em livros sua experiência com a escrita, abrindo espaço para o diálogo com um público amplo e majoritariamente desconhecido. O importante é experimentar e arriscar, descobrindo o que funciona melhor para cada um.
No caso de Tamiris, o gosto pelas escritas curtas a fez se lançar no mundo das crônicas. Ela conta que a escrita em seu primeiro livro, As pessoas que matamos ao longo da vida (Editora Reformatório, 2016), era bastante ancorada na literatura de autores como Rubem Alves, Manoel de Barros e Guimarães Rosa, mas que hoje seu repertório é mais diverso e as referências diluem-se em seu novo conjunto de crônicas. “É claro que a relação dialógica é inevitável, reconheço a intertextualidade existente em qualquer escrito. Mas, apesar disso, sinto que estou mais segura para arriscar”, diz.
Para muitas pessoas, no entanto, escrever não é uma tarefa agradável ou acaba reavivando traumas e emoções de forma muito direta. A maneira como cada indivíduo reage ao processo de escrita depende muito de características individuais e culturais. Segundo estudo realizado nos Estados Unidos com estudantes universitários, pessoas que são mais resistentes a falar sobre os próprios sentimentos tendem a se beneficiar menos dessa prática. O mesmo acontece com indivíduos inseridos em contextos culturais que não enfatizam a verbalização na construção de significados e resolução de problemas.
Mas isso não é um problema. Encontrar a forma de expressão emocional que melhor se encaixa ao perfil de cada um é uma tarefa que nem sempre é simples. No entanto, ela é necessária e existem vários caminhos possíveis. A experimentação e o acompanhamento psicológico profissional podem fazer muita diferença na identificação do que funciona melhor em cada caso.
De uma estante para a outra
A literatura como ferramenta de cuidado envolve o estabelecimento de um repertório de referências. Para incentivar o cuidar de si e do outro durante o período de quarentena, pedimos às entrevistadas que indicassem livros que ajudassem a lidar com as emoções nesse período.
Tamiris Volcean
“Nestes casos em que a ansiedade dá as caras, sinto-me injusta em indicar obras ou leituras complexas. Sei que a concentração de todos foi prejudicada pelo contexto em que estamos vivendo. Por isso, aconselho que, aos poucos e no ritmo próprio de cada um, as leituras sejam feitas do mais simples ao mais complexo. Há leituras para todo tipo de enfermidade, que funcionam como ótimos remédios e sem contraindicações na bula. Para ansiedade, Manoel de Barros. Para saudade, Rubem Alves. Para o medo, Lygia Fagundes Telles. Para aqueles que estão com dificuldade absurda de finalizarem um livro, indico leituras em pílulas, que podem ser feitas sem ordem ou cronograma definido, como a de Ostra feliz não faz pérola (2008), de Rubem Alves, que me ajudou a refletir, sem o peso das obrigações, sobre questões importantíssimas para minha construção enquanto ser humano”.
Vera Lucia Trevisan
“Um livro com o qual tomei contato não tem muito tempo é Kafka e a boneca viajante (2006), de Jordi Sierra. É uma história de muita simplicidade, sensibilidade e doçura, que retrata emoções que, a meu ver, estavam meio esquecidas antes da pandemia. O livro traz uma história contada pela última companheira de Franz Kafka, segundo a qual Kafka encontrou uma garotinha enquanto passeava em um parque, alguns meses antes de sua morte. A menina tinha perdido a boneca e estava chorando. Ele, então, se apresenta à menina como um carteiro que trará cartas da boneca, porque na verdade ela não está perdida, mas tinha planos de conhecer o mundo e viajou. E isso ele faz por semanas, escrevendo e entregando histórias de diferentes lugares por onde a boneca estaria. A história emociona justamente pela capacidade humana de se comover diante do sofrimento do outro. E nos ajuda a pensar no que nos comove, no sofrimento hoje e no que cada um pode fazer em relação a esse sofrimento”.
Cristiana Seixas
“Na Psicologia, eu sigo muito a linha junguiana, e o Jung fala dos arquétipos, estruturas que são comuns a todos nós. E existem histórias que também são de todos nós. Uma delas é A força da palmeira (2014), de Anabella Lopez. É um conto do Magreb, região do norte da África, que a autora adaptou em estética de livro infantil. É a história de uma jovem palmeira, que um dia foi machucada por um homem que colocou sobre ela uma pedra. Para lutar contra a pesada carga que lhe foi imposta, a palmeira expandiu suas raízes e se fincou determinada a crescer. A pedra acabou tornando-a mais forte. E quem não tem suas travessias, não é? Nessa história, cada um pode fazer uma releitura sobre suas próprias pedras e o que lhe fortalece”.
[Imagem de capa: Garota lendo, por Roderic O’Connor / Reprodução de Irish Times]