Avenida Paulista, nº 2073. No Conjunto Nacional, fica a maior e primeira loja da Livraria Cultura. O espaço conta com um acervo imenso de livros, CD’s, DVD’s e vários outros produtos. Mais importante: está sempre cheio de leitores e clientes. Em uma quinta-feira à tarde, é inviável contar quantas pessoas se espalham pela livraria, imersas na sua leitura da vez. Para quem vai ali, é difícil acreditar nos que dizem que a leitura está morta, ou que os livros de papel vão desaparecer.
Entretanto, a realidade, Brasil afora não é essa. Uma pesquisa do Instituto Pró-Livro, de 2015, indicou que 44% dos participantes declararam não ter lido nenhum livro nos três meses anteriores à pesquisa. Dados de anos anteriores apresentam porcentagens semelhantes. A pesquisa também incluiu a pergunta “o que você gosta de fazer no seu tempo livre”, e as respostas demonstram que 73% das pessoas costumam assistir televisão, contra 24% que preferem ler.
De 2015 para cá, o universo da tecnologia e do entretenimento mudou. A internet se populariza cada vez mais com as suas formas de conteúdo digital, e os serviços de streaming tomam conta do mercado televisivo, com destaque para a gigante Netflix. Isso certamente pode alterar o comportamento das pessoas em relação a hábitos de leitura e entretenimento, já que é muito mais fácil ter acesso ao conteúdo desejado, quando desejado. Não se depende mais de horários demarcados pelas grandes emissoras de TV para assistir a uma série ou filme. Sequências e episódios podem ser acessados facilmente em uma busca rápida pela internet.
O Sala33 aplicou um questionário, em plataforma online, que contou com 203 respostas. 47,3% dos participantes disseram ter lido entre um a três livros no último ano e 72,4% afirmaram sentir que liam mais no passado. 43,8% das pessoas consideram que ler menos está relacionado com a aquisição de serviços de streaming, mas 53,2% não sentem grandes diferenças. Muitos relataram acreditar que outras ferramentas, como o YouTube e a internet, têm maior relação com a diminuição do ritmo de leitura.
A página em que estamos
João (nome fictício), vendedor da Livraria Cultura, declarou perceber grandes diferenças no hábito de leitura. “No vagão do metrô, vejo mais pessoas vendo um seriado do que lendo. Essa realidade era bem diferente há uns cinco anos. A quantidade de séries e o status de ‘maratonar’ um seriado levou a leitura a cair alguns degraus dentro da experiência de lazer.” De fato, a forma de assistir séries mudou nos últimos anos, e esse hábito tornou-se mais frequente, especialmente no cotidiano jovem. Mas a influência disso no hábito de leitura é bastante pessoal.
Uilma Melo é mestre em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH) e professora da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Ela considera que toda essa mudança tem a ver com um contexto maior: “Acredito que a relação dos jovens com a leitura mudou nos últimos anos, porque as mídias atuais, participativas e interativas, têm transformado a nossa forma de ler. Serviços como a Netflix aproximam os jovens das narrativas transmídia, fazendo com eles busquem se aprofundar nesse universo expandido, próprio da Cultura da Convergência.”
A Cultura da Convergência é um conceito criado por Henry Jenkins, que se refere à interligação de três fenômenos: uso complementar de diferentes mídias, produção cultural participativa e inteligência coletiva. Diz respeito ao fato de se consumir conteúdo em diferentes plataformas, de forma interativa e com a junção de diferentes conhecimentos. “Um jovem pode começar a ler um livro porque assistiu a uma série, ou pode fazer o caminho inverso, ver a série porque leu uma obra literária”, diz Uilma. “A convergência digital pode interferir no ritmo de leitura das pessoas. O leitor do século XXI é um leitor conectado e ativo, que se depara muitas vezes com hipertexto. Isso faz com que sua leitura seja descontínua, transversal e interrompida.”
A leitura, nos dias de hoje, é condicionada a esses aspectos. Mesmo um livro físico será lido e absorvido de forma diferente do que seria no século passado. As pessoas podem ler menos livros, mas não necessariamente significa que leem menos. “Atualmente, as comunicações cotidianas estão sendo realizadas através da escrita. WhatsApp, Facebook e Twitter são os meios e suportes digitais para se inteirar de notícias, expressar ideias, compartilhar pensamentos e, inclusive, fatos da vida diária”, declara Uilma. “Hoje, mais do que nunca, a leitura e a escrita têm um papel importante na sociedade. Por isso, ler é uma atividade fundamental na vida moderna.”
Uma troca desigual
É inquestionável que hábitos de leitura mudaram na sociedade moderna, condicionados aos novos modelos de mídia. João (nome fictício) acredita que, às vezes, a leitura pode ter dificuldade em acompanhar essas mudanças. “Tudo é consumido de uma maneira muito rápida e a leitura é um hábito mais lento. Percebo que a nova geração se afasta cada vez mais disso. Se não houver uma hiper estimulação visual, o jovem não quer consumir. O fator imaginação ficou em segundo plano.” Isso tem influências inclusive nas vendas das livrarias. É comum vermos em megastores uma grande variedade de produtos tecnológicos e de papelaria, que são o que muitos clientes procuram ao visitá-las. “Temos uma boa variedade de serviços e gadgets eletrônicos. Também temos cartões Netflix e Spotify, por mais irônico que pareça.”
Outros fatores levantados pelas pessoas como motivo para ler menos são o cansaço e falta de tempo, trazidos como desestímulo após trabalho e estudo. Assistir a alguns episódios de série é mais simples e confortável, porque o conteúdo chega até o telespectador com o mínimo esforço. Mas, “trocar a leitura por atividades que exigem uma mera atitude passiva, como por exemplo a de telespectador, significa abrir mão do desenvolvimento da capacidade de juízo, análise e espírito crítico. Falta usufruir da fantasia e desenvolvimento da criatividade, tão intrínsecos à leitura”, diz Uilma.
Ler menos ou mais pode ou não estar relacionado à popularização da Netflix e dos serviços de streaming. Não é possível traçar uma relação direta, até mesmo porque cada pessoa tem uma experiência particular com esses conteúdos. Mas é inevitável ter os hábitos de leitura afetados pela dinâmica tecnológica da sociedade moderna. Adaptar-se a isso pode ser difícil, porém, em muitos sentidos, necessário.
Pingback: Blogueiras de baixa renda e sua influência nas redes - Jornalismo Júnior