Noite chuvosa, menininha desperta, castelo imenso e rico… O filme inicia-se como um conto de fadas, um “Era uma vez…” que chega a lembrar o início da versão de Tim Burton de Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland, 2010). Se tão somente a noite não fosse tempestuosa, a criança não estivesse com medo, o castelo não fosse uma casa. Julie Bertucci, diretora e roteirista do longa A Última Loucura de Claire Darling ( La Dernière Folie de Claire Darling, 2018), adapta a novela americana de Lynda Rutledge Faith Bass Darling’s Last Garage Sale para uma produção francesa que entrelaça realidade e fantasia de forma sutil, delicada e sensível.
Claire Darling ( Catherine Deneuve), já com saúde mental precária na velhice, acorda, em uma manhã, certa de que aquele dia seria o último de sua vida. A premonição leva-a a vender boa parte de seus pertences, a enorme coleção de raridades acumuladas de gerações em uma venda de garagem ou vide-granier no próprio jardim. O feito, além de chamar a atenção de inúmeros possíveis compradores, causa espanto em amigos e familiares, que encaram a atitude como apenas mais uma das alucinações e loucuras resultantes da condição da Sra. Darling.
Em entrevista, Bertuccelli revela que o livro de Rutledge possui temas com os quais se identifica, “como o complexo de relacionamento entre mãe e filha; como os mortos nos assombram; objetos e móveis que nos engolem e agem como substitutos da memória; mentiras; segredos e coisas não ditas na família, distorcendo nossos relacionamentos; nossa morte iminente; a memória que construímos, que nos aprisiona e nos sufoca; e ser esquecido, o que nos deixa tristes, mas também nos liberta”. Todos eles, de fato, são retratados com muito primor do início ao fim do longa; nenhuma cena, cenário ou personagem foi construído ao acaso: houve o cuidado, por exemplo, “de não entrar no esteticismo e garantir que os objetos estivessem entrelaçados com a história”. Tudo no filme narra.
Animais empalhados, livros antigos, pinturas, fotos, bonecas, autômatos, relógios, bichos de pelúcia decoram o longa e atuam nele enquanto objetos que remetem a uma determinada lembrança, que, unidos em cenário, abrem porta para que outros tempos venham às telas juntar-se ao presente. A diretora afirma sobre a seleção desses que “…foi quase como escolher o elenco!”, dado o capricho que se teve com a coleção, que, inclusive, contou com a participação de artigos de Julie Bertuccelli.
Como protagonista e coadjuvantes, entre as lembranças materializadas, o relógio de elefante com o encantamento de fazer dormir, as bonecas do século 19 que se mexiam, o anel de pedras brilhantes do “Amor Eterno”,o quadro de “Monet” e o casulo de borboleta abandonado dentro da redoma de vidro decorativa do falecido filho de Claire.
Cada um deles, porém, apenas ganha vida sob as diferentes óticas dos outros personagens; os humanos relacionam-se, criam pontes e vivências que ou assombram ou deliciam a memória depois de passadas. A partir da protagonista, ramificam-se as histórias de sua filha Marie (Chiara Mastroianni) , o filho Martin ( Simon Thomas), os amigos deles de juventude Martine (Laure Calamy) e Amir (Samir Guesmi), o padre Georges (Johan Leysen), o marido Claude (Olivier Raboudin). E de todas essas narrativas, surgem as discussões de relacionamentos humanos, do quanto um indivíduo é capaz de marcar e moldar a história do outro, de amor e rancor.
A família Darling carrega conflitos desde a relação de Claire e Claude até a do núcleo familiar como um todo; apesar da construção do marido como personagem ter deixado a desejar, são muito claros os impasses no entendimento do outro na comunicação do casal. As mágoas, palavras não ditas, intenções não compreendidas que permeiam esse “Amor Eterno” criam um ambiente tóxico que afeta, sobretudo, o vínculo mãe e filha, um dos mais intensamente retratados no filme por Mastroianni e Deneuve, que compartilham da mesma ligação de sangue na vida real.
E, todavia, a singularidade da família continuou a cativar aqueles com os quais se relacionava. Martine preserva vivas as memórias de infância das visitas à casa da amiga, o encantamento que todas as brincadeiras, os objetos, o cuidado da mãe de Marie ao introduzi-la aos fantásticos autômatos, o deslumbre com o relógio de elefante… Tão marcantes lhe foram essas experiências que ela, quando adulta, torna-se uma antiquária.
Amir não foi retratado como um frequentador da casa; contudo, o carinho resultante de uma amizade entre ele e os irmãos Darling, que se estendeu à família, é perceptível pelas constantes visitas à protagonista, quando essa via-se acompanhada apenas por suas antiguidades na casa. À respeito desse personagem, Bertuccelli diz ter tido a cautela de não “escorregar na caricatura” do trabalhador e seu uniforme, o que foi possível graças à atuação suave, pelo jeito natural, “sensível e sempre em movimento” do ator Samir Guesmi. É questionável, porém, o fato de Amir ser o único não branco do elenco juntamente ao de estar representando uma classe trabalhadora menos abastada, abrindo margem para certa estereotipização.
Com a participação de renomados atores do cinema francês, direção atenta a detalhes e caprichos, A Última Loucura de Claire Darling trata de indivíduo, memória, história e relacionamentos. Como descrito pelo poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade no poema Dissolução:
”Escurece, e não me seduz tatear sequer uma lâmpada. Pois que aprouve ao dia findar, aceito a noite.” (Carlos Drummond de Andrade- Claro Enigma)
a chegada da maturidade na velhice conduz à reflexão, à aceitação da vida, dos dilemas, de tudo que se passou; na produção francesa, a mesma lírica ressurge sob a última “loucura” de Claire Darling.
O longa tem estreia prevista para o dia 6 de junho no Brasil. Confira o trailer: