No dia 9 de agosto, o aeroporto internacional de Hong Kong foi ocupado por manifestantes descontentes com a atual situação em que se encontram. Os manifestantes se reuniram no local como forma de protesto às mudanças na lei de extradição e à violência policial. Tudo teve início com o caso de um honconguês que assassinou sua namorada enquanto estavam em Taiwan. Esse acontecimento gerou o início de uma discussão sobre uma mudança na Lei de extradição de Hong Kong.
A escolha do aeroporto como local de grandes manifestações é simbólica. Oitavo maior do mundo, ele recebe visitas diariamente de pessoas de toda parte. Os moradores de Hong Kong têm sede de visibilidade global, e qual melhor maneira de atingi-la senão causar uma catarse na vida de milhares de pessoas, de diferentes países? Vestidos de preto e carregando cartazes com dizeres como “Não há desordeiros, apenas tirania”, os manifestantes estamparam as notícias de todo lugar, fazendo com que o mundo se perguntasse, afinal, o que se passa por lá.
Antes de entender os protestos em si, é preciso entender o que é Hong Kong. Atualmente, Hong Kong é uma região administrativa especial da China. Com a Guerra do Ópio, essa região ficou sob domínio britânico, havendo um breve período durante a Segunda Guerra Mundial em que ficou sob domínio japonês. Em 1997, a Inglaterra devolveu Hong Kong à China, porém, durante um período de 50 anos, esse território teria autonomia administrativa, até que em 2047 ele finalmente se fundisse completamente à China. Atualmente, a província funciona sob o famoso lema chinês: um país, dois sistemas. Hong Kong adota um sistema capitalista, sendo berço de diversas empresas e possuindo um dos maiores fluxos de dinheiro do planeta, com grandes bancos e mercado de ações. Além da liberdade econômica, também preserva em certa medida a liberdade de expressão e de imprensa, e até uma espécie de democracia. Estar completamente subordinado ao governo de Pequim, significa uma perda expressiva de autonomia, e é deste ponto que partem as manifestações enérgicas da população.
Por incrível que pareça, tudo começou com um delito. Chan Tong-kai, um jovem nascido em Hong Kong é acusado de ter assassinado sua namorada durante uma viagem de férias em Taiwan, território sob o governo de Pequim. A partir desse evento, iniciou-se uma discussão sobre onde deveria ocorrer o julgamento do caso, levando em conta o fato de que Hong Kong ainda possui liberdade jurídica e administrativa. Isso resultou em um Acordo de Extradição, que determina a permissão de encaminhamento de cidadãos de Hong Kong para julgamento e punição em Pequim, aos invés de sua região de origem. Isso preocupou e enfureceu a população da província, pois representa uma ruptura na liberdade do local, uma interferência direta no que Hong Kong concebe como sua identidade: a independência.
O governo da China é conhecido na região por ser autoritário demais para os padrões da província, e os honcongueses estão apavorados com esta mudança legislativa. O Acordo pode representar punições que ferem a liberdade de expressão e levar ao julgamento de jornalistas, políticos ou qualquer um que se manifeste publicamente contra o sistema da capital em Pequim. Tirar os julgamentos das mãos do legislativo de Hong Kong significa que essas pessoas podem ser presas por razões “tirânicas”, como descrevem cartazes presentes nos protestos.
Manifestações não são incomuns na região, que nunca acatou completamente à ideia de ser integrada ao regime chinês, porém nunca possuíram tamanha força. Tudo mudou com a percepção de que Pequim finalmente está interferindo naquilo que considera sua propriedade, e os temores da população se tornam cada vez mais reais. O professor Alexandre Uehara, doutor em Ásia e pesquisador da Universidade de São Paulo, comentou sobre o momento atual: “Essa transição [de relativa independência até a incorporação à China Continental] não significa que seriam 50 anos sem modificações. É uma transição, então, de alguma forma, o governo chinês entende que uma transição significa que ao longo do tempo, algumas mudanças podem, ou devem, acontecer. E nesse sentido, o governo de Pequim tem sim interesse em ter uma consolidação do reconhecimento político da população de Hong Kong.”
Além do Acordo, outro sinal claro da presença crescente do governo de Pequim é a nomeação de Carrie Lam para liderar a província. Embora o acordo de 1997 dê autonomia administrativa à Hong Kong, a China ainda possui uma grande influência. O país tem o poder de nomear o chefe executivo por meio de uma votação realizada localmente. Essa votação é realizada por um comitê com cerca de 1200 pessoas, que na verdade são partidários de Pequim. Dessa forma, o chefe escolhido é sempre alguém que o governo chinês aprova. Eleita por este sistema em 2017, Lam é vista por parte do povo de Hong Kong como uma intrusa enviada pela China Continental para ampliar o poder da mesma na região, e depois das mudanças recentes nas leis jurídicas, a imagem da líder piorou consideravelmente.
Ela tentou recuperar pelo menos um pouco do apoio popular colocando a nova lei “para dormir”, porém, sem a revogar completamente e podendo trazê-la à tona em outro momento. Essa atitude desagradou ainda mais os moradores de Hong Kong e os protestos continuaram a crescer. Esse aumento da insatisfação não é infundado: o Acordo é apenas um sintoma do futuro iminente da região, e seus habitantes protestam não somente contra ele, mas sim para manter a independência que lhes é tão cara. “O ponto principal ali é a perda de liberdade, e a possibilidade de ter um governo sobre Hong Kong que restringe as liberdades e a situação de democracia, mesmo que parcial, dado que neste momento já não é a população de Hong Kong que decide diretamente pelo voto a sua liderança, mas a perda dessa liberdade, liberdade democrática, liberdade de expressão, liberdade econômica, eventualmente, isso faz com que as manifestações sejam mantidas.”, declara Uehara.
Os protestos em Hong Kong deixaram de ser apenas pelo cancelamento do novo Acordo de Extradição e agora possuem, ao todo, 5 reivindicações. A primeira é o desejo que esse projeto de lei seja extinto para sempre. Eles também pedem para que o governo deixe de chamar os protestos de “tumulto”, uma vez que esse termo possui um tom pejorativo e desconstrói a ideia de um protesto pacífico. A terceira reivindicação pede para que todos os manifestantes que foram presos sejam liberados e tenham as acusações retiradas. O quarto desejo é de que seja aberto um inquérito sobre a polícia de Hong Kong para investigar seu funcionamento. E por último os protestantes pedem pelo sufrágio universal, ou seja, pela chance de todos participarem na escolha de seus líderes.
Grande parte das exigências da população gira em torno do caráter e da imagem que as manifestações têm ganhado na mídia local e na internacional. A China já as descreveu diversas vezes como “atos terroristas” em discursos políticos e na imprensa estatal, única permitida em seus espaços. Observa-se também no restante do mundo imagens de protestos violentos e agressivos, mas esta é quase uma visão sensacionalista do que acontece: “Os protestos não são violentos. Eu sei que o que mostra na TV é sempre a parte mais violenta, mas isso é pra quem fica até muito tarde… A polícia é quem traz a violência, a polícia que começa batendo, que joga o gás dentro do metrô. É a polícia que cria a violência, não é o manifestante.”, diz Bárbara Tavernard, brasileira que vive há 13 anos em Hong Kong.
A agressividade policial contra os manifestantes é latente. Para que exista um protesto sem repressão de forças armadas, é preciso ter permissão do governo para manifestar-se, que claramente não compactuou com os levantes recentes. Com o saldo atual de mais de 900 presos, incluindo diversos ativistas com visibilidade internacional e até uma criança de 12 anos, nenhuma das partes parece pretender recuar e muito menos chegar a um desfecho.
É visível a indisposição da China Continental em flexibilizar o Handover acordado em 97. “A China não vai ceder, não vai fazer grandes concessões a Hong Kong em termos de maior autonomia e muito menos de maior independência. Porque, caso a China reconhecesse essa autonomia, outras regiões subordinadas à ela, outras províncias que desejam maior independência, como o Tibete, seriam motivadas a fazer reivindicações semelhantes, e para o governo de Pequim isso é inconcebível. Se a China começar a conceder essas autonomias, fazer as concessões solicitadas por Hong Kong, isso poderia ser visto como um enfraquecimento do governo de Pequim.”, diz o professor de Relações Internacionais.
E, por outro lado, é também irrisório pensar que o povo de Hong Kong abriria mão daquilo que deseja. Trata-se de uma mudança radical na vida de todos os cidadãos, que não é desejada e não está distante. As perspectivas para a população são amedrontadoras: “Eu sempre comparo Hong Kong com um sapo que está numa panela fervendo e não se dá conta que está morrendo. Mas aí, eu acho que o sapo percebeu que estava morrendo e resolveu lutar para não morrer. É isso que está acontecendo… as pessoas estão lutando com tudo o que elas podem contra o domínio chinês.”, diz Bárbara sobre o assunto.
Não há como determinar um lado mais certo ou coerente. Ambos possuem motivos fortes e compreensíveis e não há solução iminente para o impasse. Somente com o tempo e afastamento histórico será possível enxergar a conclusão do conflito. Por enquanto, apenas é possível observar.