Terminada a Guerra Fria, os Estados Unidos deixaram para trás o temido socialismo soviético e firmaram-se como a principal economia do planeta. Durante praticamente duas décadas as demais nações provaram da supremacia americana sem direito de resposta. Todavia, nos últimos anos, uma bandeira vermelha voltou a protagonizar os pesadelos da maior potência do mundo.
A guerra tarifária entre EUA e China tomou os noticiários do ano de 2019. Muitos ainda se questionam sobre como a economia de um país majoritariamente manufatureiro pode rivalizar com o gigante americano: “aliás, a China não era socialista?”. Talvez esta questão seja o segredo do sucesso. O Laboratório imergiu no socialismo de mercado chinês para explicar a emergência desta superpotência.
Socialismo x Mercado
A China, hoje dona do segundo maior PIB (Produto Interno Bruto) do planeta (12,24 trilhões de dólares), caminha a passos largos para alcançar o rival do Ocidente (19,39 trilhões de dólares). Segundo especialistas, se mantidos os índices de crescimento de ambos, até 2030 a China será a principal economia do mundo.
Enquanto os americanos possuem um modelo conhecidamente liberal, que prioriza decisões econômicas tomadas por empresas e indivíduos em detrimento do Estado e de organizações coletivas, os chineses encontraram um caminho diferente para alavancar seus resultados. Utilizando, simultaneamente, o Estado e o mercado como meio de gerar capital e realocar tais recursos, o país criou um sistema de grande sucesso: o chamado socialismo de mercado.
As surpreendentes 51 mil empresas estatais são responsáveis por cerca de 40% da receita chinesa, enquanto o restante resulta da iniciativa privada. Contudo, apesar dos altos valores envolvidos, a justa realocação de recursos, um dos focos do modelo econômico dito socialista, vem sido colocada em detrimento de tal ascensão.
Esse fato coloca em cheque, ao menos, o emprego do conceito “socialismo” na referência ao modelo chinês. Eleuterio Fernando da Silva Prado, especialista em teorias econômicas, pontua: “o termo é empregado de maneira errônea. Apesar de existirem muitas estatais, a realocação de recursos é mesclada entre Estado e mercado”.
Negócio da China
Socialismo ou não, a economia chinesa mostra-se bastante eficiente no aspecto quantitativo, e isso é resultado de características sociais e demográficas bastante específicas encontradas no país. Em primeiro lugar deve-se destacar a fartura de mão de obra disponível: a China possui população ativa de cerca de 900 milhões de pessoas (empregados ou procurando emprego).
A vasta demanda de trabalhadores (especializados e não especializados) faz do país um “paraíso empreendedor”. Empresários investem com a certeza de que terão mão de obra disponível a baixo custo para desenvolver seus negócios. Este aspecto é potencializado pela escassez de burocracias e leis trabalhistas. “Os investimentos implementam a economia chinesa ao custo do trabalho compulsório e desumano dos operários”, comenta Eleutério.
Outra característica importante a se destacar é a existência de um “Estado de partido único”. Resumidamente: o Partido Comunista Chinês (PCC), órgão central do Estado, é a única organização política legal no país; o secretário-geral do PCC, principal liderança da instituição, é automaticamente o presidente da China, ou seja, somente pessoas que fazem parte da entidade podem participar das “eleições”.
Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), Alexandre Uehara pontua que apesar da extrema centralização política imposta, a população apresenta alto grau de satisfação para com o governo. Isto devido ao alto poder de compra conferido a ela pelo sucesso da economia.
“Democracia é medida apenas pela possibilidade de votar em políticos? ou outros elementos precisam ser avaliados? Uma parcela significativa da população pode estudar no exterior, fazer atividades de lazer, consumir produtos”, sugere Alexandre sobre a satisfação popular.
O resultado disso tudo sob a economia chinesa é bastante simples, segundo Eleutério: “a centralização política, proporcionada pelo modelo de partido único, facilita a ação do governo, já que, sem oposição, os líderes conseguem tomar as decisões sem contestação”.
70 anos…
No dia primeiro de outubro deste ano a China comemorou os 70 anos da Revolução Maoísta. Há sete décadas, ascendia ao poder Mao-Tsé-Tung, líder do Partido Comunista Chinês. Adepto do marxismo (método que propõe o socialismo, em que as massas trabalhadoras possuem os meios de produção), ele visava construir um modelo político centrado nos camponeses — a classe proletária daquela China.
O Grande Salto para Frente, como era chamado o plano de Mao, consistia em industrializar a tradicional economia agrária chinesa. Para tal, foram implantadas medidas de cunho comunista como a criação de fazendas coletivas e a proibição da agricultura particular e da propriedade privada.
Tal coletivização não obteve sucesso: causou uma severa crise alimentícia no país. A fome foi responsável por matar cerca de 35 milhões de pessoas entre 1958 e 1962. Enquanto isso, ocorria a chamada Revolução Cultural, uma campanha de Mao contra indivíduos favoráveis ao capitalismo na China.
Apesar dos insucessos e das controvérsias do primeiro governante da China comunista, Alexandre Uehara pontua: “a mais marcante herança de Mao é a própria China comunista. Temos que lembrar que a República Popular da China, que é a China que conhecemos, nasceu em primeiro de outubro sob sua liderança”.
A grande virada no cenário econômico chinês ocorreu somente em 1978 (dois anos após a morte de Mao), quando Deng Xiaoping promoveu um programa econômico que ficou conhecido como “reforma e abertura”.
Em oposição à idéia anterior o plano propunha: liberalizar a economia, permitindo o ressurgimento do setor privado, e descentralizar o poder, deixando a tomada de decisão nas mãos das autoridades locais. “Desde Xiaoping, a China se aproxima mais do capitalismo”, define Eleutério.
Pautado em uma economia de mercado, este modelo foi nomeado “socialismo com características chinesas”. O sucesso deste formato resultou em um imenso crescimento da China — e tal desenvolvimento perdura há mais de três décadas.