Este filme faz parte da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no final do texto.
A conjuntura política e social do Afeganistão é um assunto praticamente inesgotável. O enfraquecimento do governo, a tomada do poder pelo Talibã, a revolução religiosa e no modo de viver seguem sendo estudadas mundo afora. Entretanto, o maior triunfo de Os Olhos de Cabul (Les Hirondelles de Kaboul, 2019) é justamente não tentar encontrar as razões e implicações da situação do país, e sim acompanhar a jornada de quem enfrenta essa realidade árida todos os dias.
O filme retrata o cotidiano de Mohsen (Swann Arlaud) e Zunaira (Zita Hanrot), um casal de intelectuais preso em uma Cabul ocupada pelo grupo radical islâmico Talibã. Cabul, que antes de diversas complicações sociológicas era uma cidade moderna, tornou-se cenário de guerra, execuções diárias e repressões religiosas. Zunaira, uma pintora progressista na arte e na personalidade, vê sua liberdade completamente retirada ao ter que se portar de acordo com as regras da Sharia, conduta esperada pela religião muçulmana mais ortodoxa e proibida de sair na rua sem cobrir-se por completo. A situação a revolta profundamente e a inquietação que sua impossibilidade de agir causa na personagem reverbera no público, em especial, o feminino. Ela é casada com Mohsen, um ex-professor universitário que é tirado de seu cargo após a destruição da Universidade de Cabul, que também sofre ao ser submetido à ordens machistas e subversivas para manter-se na sociedade.
Apesar do ambiente inóspito, eles ainda se mantêm esperançosos quanto ao futuro e acreditam na libertação da nação em que criaram suas raízes. Conforme o tempo passa e as pressões aumentam, ambos vêem seus sonhos cada vez mais abalados e distantes, consequentemente, seu relacionamento também enfrenta conflitos. A jornada desses personagens é comovente e bela. A forma com que enxergam a realidade apesar do clima terrível que os envolve é emocionante, o amor que eles têm um pelo outro é um suspiro de alívio entre o enredo pesado.
Além dos dois, o longa também mostra a jornada de Atiq (Simon Abkarian) e Mussarat (Hiam Abbass), um casal que adaptou-se ao sistema como forma de sobreviver. Atiq é carcereiro de uma prisão destinada à mulheres condenadas à execução e aliado do Talibã. Apesar de questionar-se sobre as atitudes que toma, ele cede frequentemente à pressão do regime por medo. Mussarat é sua esposa e está gravemente doente. Ela também é mais tradicional e deseja cumprir o papel de esposa submissa estabelecido pelas regras do radicalismo, porém sua doença muitas vezes a impede de realizar sua vontade. O relacionamento de ambos é antigo e desgastado, e o filme transparece muito bem o cinza que o regime estabeleceu em suas vidas.
Narrar como essas histórias se entrelaçam de forma delicada e sensível é o traço mais bonito do longa. O ar é pesado, como não poderia deixar de ser, porém há uma atenção aos detalhes que confere cor à narrativa. A maneira como a questão feminina é tratada aqui também é tocante. Dirigido por duas mulheres, Zabou Breitman e Eléa Gobbé-Mévellec, ele desenha a revolta e a dor profunda causada pelas imposições de um machismo monumental sobre a vida dessas pessoas.
Um dos grandes destaques também é o modo como ele foi produzido. Transformar uma temática tão carregada de sofrimento em animação trouxe enorme poesia para o longa. Além do traço dos desenhos ser belíssimo, os recursos criativos usados são encantadores e impossíveis de reproduzir caso fosse filmado em realidade. A narrativa ganha traços muito delicados e poéticos e abre espaço para interpretações mais profundas que apenas a realidade nua e crua de Cabul.
Os Olhos de Cabul é uma animação primorosa e tocante, que merece muita atenção de seu espectador. Sabiamente, a narrativa soube contar histórias carregadas de sofrimento com a arte que só alguém muito sensível e empático poderia desenvolver.
Confira o trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=OUlV-4E9-nk