No ano de 2003, a Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO) declarou como Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade o Día de Muertos, a festividade indígena celebrada no México.
A emblemática celebração mexicana tem atraído turistas do mundo todo, curiosos em conhecer essa tradição de recordar e homenagear os antepassados, que faz parte da identidade cultural do país. Aqui encontramos uma maneira muito diferente e particular de encarar a morte e os mortos, muito relacionada à ancestralidade. Vamos mergulhar nessa manifestação cultural tão rica e particular para entender um pouco sobre seus significados e permitir que essa tradição nos comunique algo novo. Abramos espaço para o envolvimento.
A origem da celebração
Eduardo Natalino, professor de História da América Pré-Hispânica do Departamento de História da FFLCH-USP, conta que na chamada Mesoamérica, uma grande região cultural indígena e que posteriormente foi chamada de México, já existiam festas dedicadas aos mortos. “Mais do que uma festa, um dia, era uma temporada de celebrações. Tinha-se uma série de festas que marcavam um pouco a passagem das estações, o sistema de calendário, de organização social. Entre essas festas, tinham aquelas dedicadas aos mortos.”
A ligação entre a celebração e o calendário agrícola ainda existe, o que demonstra a permanência das origens da tradição. A celebração acontece depois da colheita, em agradecimento aos ancestrais, que estavam ali intercedendo por todos e proporcionaram a abundância, como acreditam. Essa relação afetiva é algo que perdura até hoje.
O caráter festivo da celebração também é uma herança da maneira asteca de cultuar os mortos, como lembra Julia Batista Alves, doutora pela UNESP, mestre pelo programa de pós-graduação em Integração da América Latina na FFLCH e atualmente docente da área de Letras e Linguística da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila).
A celebração de Dia dos Mortos, como vem sendo realizada, desde a colonização, é fruto da mistura entre duas culturas. Por isso, é possível notar também elementos da tradição católica. Para além disso, é necessário considerar os longos processos culturais. “A cultura é viva, é dinâmica. O mundo muda e a maneira de celebrar, enxergar a festividade também vai mudando. Novos elementos vão sendo incorporados, algumas práticas vão sendo reinventadas. Mas, também há o resgate das tradições indígenas”, diz Julia. A matriz indígena dessa festividade é o maior símbolo da identidade cultural mexicana.
A prática de cultuar os mortos, na verdade, é universal. Em cada cultura os mortos são cultuados de uma maneira particular e podemos encontrar alguns elementos em comum. Julia destaca que uma das mudanças perceptíveis, em decorrência da imposição do catolicismo à celebração ancestral indígena, está relacionada à duração da celebração. A festividade dura agora alguns dias, no máximo três e, como visto, as celebrações indígenas originalmente duravam meses e se iniciavam muito antes de outubro.
Eduardo Natalino destaca que essa não é uma mistura muito equilibrada. “Apesar do feriado ser cristão, seu conteúdo, seu significado está muito relacionado às matrizes indígenas.”
A festividade, os rituais e seus símbolos
A celebração de Dia dos Mortos é uma manifestação de identidade cultural muito peculiar. Cada região mexicana apresenta suas particularidades no festejo. Acontece nos dias finais de outubro e nos primeiros de novembro, a duração pode variar. Mas, de uma maneira geral, popularmente se dá nos dias 01 e 02 de novembro. Acredita-se que, nessa época, as almas dos parentes que já faleceram retornam ao mundo dos vivos.
No sul do México, onde se concentram a maioria dos grupos indígenas, a celebração é mais forte, está mais viva. Julia define a celebração como “um festival de cores, sabores, texturas, sons e imagens”. As oferendas destinadas ao culto dos ancestrais contam com elementos simbólicos, como altares, comidas dos mais diversos tipos, bebidas, flores, velas, incenso e muitos outros.
Esses elementos todos são reunidos nos altares, que podem ser considerados o item mais emblemático da celebração. Eles estão presentes em todos os lugares, públicos e privados. Nas casas são montados altares, há concursos de altares nas ruas e nos estabelecimentos. As comidas destinadas aos mortos de cada família são escolhidas de acordo com o gosto de cada um dos parentes falecidos. Nos altares infantis, são deixados bastante doces e é proibido colocar bebidas alcoólicas. O senso de coletividade dos povos originários é algo muito importante que ainda vive. As pessoas vão caminhando pelas ruas e as casas ficam todas abertas. Elas podem entrar, conversar e compartilhar todo o banquete.
Os altares são organizados em níveis. Muito comuns são os de três degraus, representativos dos planos do céu, terra e inferno da tradição católica. Existem também os altares de nove níveis, que representam os níveis do inframundo, o mundo dos mortos para os astecas. Para os indígenas, seu destino após a morte não é determinado pelo seu comportamento em vida, não existe toda a questão da moral e culpa cristã. O que importa é o tipo de morte que você tem – esse é que determina para qual nível do mundo dos mortos você iria. Se você era um guerreiro que morreu em combate ou uma mãe que morreu no parto, você iria para determinado nível. Se você morreu afogado, se morreu criança, você iria para outros distintos. Há povoados em que cada dia da festividade é destinado para um grupo específico de parentes mortos, de acordo com a morte que tiveram.
Os caminhos de pétalas de flores, as velas e os incensos servem para guiar as almas pelo olfato e pela visão às suas casas, para que estejam ali presentes com seus entes queridos também. Eduardo Natalino ressalta que a relação é de que o morto continua sendo um parente com quem você conversa. Existe também a tradição da visita aos cemitérios para levar oferendas, enfeitar os túmulos, passar um tempo com os parentes mortos. Nos altares, também são dispostas fotografias desses entes queridos para que sejam recordados; a água está sempre presente, como elemento que purifica.
A caveira, símbolo muito popular da festividade, não tem aqui uma significação mórbida. As pessoas brincam com a morte, fazem piada dela, fantasiam-se de caveiras. Além disso, são feitos os chamados pães de mortos, especificamente para esses dias, e docinhos em formato de caveiras. Essa devoração simbólica da morte tem um significado forte de que a morte é, sim, temida, mas não mais que a própria vida.
Aos olhos de uma brasileira
Nathalia Oliveira vive no México há cinco anos. A princípio, ela foi ao país fazer um intercâmbio pela faculdade, cursava Comunicação Social. Eram apenas seis meses, que se tornaram mais seis e duram até hoje. No fim do ano ela recebeu uma proposta de emprego e decidiu ficar no país que a conquistara.
Em 2015, seu primeiro ano por lá, ela viveu sua primeira experiência na celebração de Dia dos Mortos. “Eu não sabia muito o que esperar”, conta. “Antes de morar aqui, eu sabia que era uma celebração, um festival muito grande, muito importante pro país, mas pra mim se resumia muito às caveiras mexicanas coloridas. Eu não entendia nada, achava muito bonito, mas nunca tinha pesquisado muito a fundo”.
Na época, ela estava estagiando em uma empresa que organizava viagens culturais para intercambistas e fez muitas viagens pelo país. A preparação de toda festa se inicia muito antes do dia 2. Mas, Nathalia partiu junto ao grupo para passar justamente o feriado em um pequeno povoado. “A gente foi pra um lugar muito tradicional de celebração dessa festividade. Eu moro na Cidade do México e aqui a gente vê muita coisa, mas mais pra turista, digamos assim. Dessa vez eu fui pra uma cidade muito pequena e vi coisas muito tradicionais, muito reais, familiares mesmo”.
Nessa viagem, Nathalia conta que viu as cidades muito enfeitadas, os altares por todos os lados, as comidas típicas. No dia 2, as pessoas, geralmente, saem às ruas, vão para praças comer. “Não é festa, nem balada. As pessoas vão para passar um tempo ali”, diz. Na pequena cidade que visitou, os moradores iam para os cemitérios passar a noite com os falecidos e ela também foi. “Estava tudo iluminado de velas, um cheiro muito característico de incenso. O cemitério estava cheio de gente. Lá eles sentam, comem, jantam com eles, levam música. Isso pra mim foi muito marcante”. Em meio às famílias sentadas e às luzes de velas, ela notou os mariachis tocando. As músicas favoritas dos respectivos entes queridos mortos iam sendo tocadas ao longo da madrugada.
Nathalia conta que sua primeira participação como espectadora foi muito interessante. “Eu não esperava isso. Lembro de ouvir a música animada, de festa e pensar ‘meu Deus, eu estou num cemitério e isso está acontecendo’, é uma coisa totalmente diferente do Brasil”. Ela compartilha que a atmosfera não é mórbida e também não é de festa, mas sim de encontro familiar, de reunião de pessoas queridas. “Eles acreditam que na madrugada do dia 1º para o dia 2 de novembro, os mortos vêm à terra. Falam que o véu entre os mundos fica mais fino e os mortos ficam presentes para celebrar com os familiares, para ter esse encontro.”
Nos anos posteriores, ela passou a data na Cidade do México. Ela conta que já pintou o rosto algumas vezes e que a princípio tinha receio de estar se apropriando de algo que não faz parte de sua cultura, mas depois quis participar e se sentiu muito acolhida. “Eles são muito acolhedores. Contam a história, o porquê, acreditam muito nisso”. Ela costuma visitar os altares mais famosos pela cidade. Na praça central, constroem altares gigantes sempre com uma temática. O museu da Frida Kahlo, por exemplo, tem um altar enorme pra ela e as pessoas vão visitar. Seu namorado é mexicano e fez para ela um poema típico, chamado calaverita. “É uma história engraçada sobre como você morreu. Ele contava como eu morri de acordo com minhas características. Essa é uma maneira de burlar-se da morte, rir na cara da morte. Eles dão risada mesmo. Levam para esse lado mais leve”, relata.
Nathalia conta que fica ansiosa esperando pela festa e que essa é uma data incrível para conhecer o México. “Tem comida boa, festa, cultura, história, receptividade. Talvez para vir e tentar ir nesses lugares mais tradicionais, não ficar só na Cidade do México. Vale muito a pena vir com a mente aberta para entender, para aprender sobre o que eles acreditam”, diz. Segundo ela, você se convence de que essa é a melhor maneira de viver esse luto. Não é que eles não fiquem tristes com a morte, mas nessa festa a sensação é mais feliz do que triste. “Eu quero ser lembrada assim um dia, apesar de eu não ser mexicana”, finaliza.
“Viva – A Vida É uma Festa”
A aclamada animação da Pixar Animation Studios – que chegou no Brasil, em 2018, como Viva – A Vida É uma Festa (Coco, 2017) – é contextualizada no México em tempos de Dia dos Mortos. De uma maneira bem lúdica, os diretores Adrian Molina e Lee Unkrich conseguem retratar bem essa diferente perspectiva da morte.
No filme, em meio a todo o contexto e símbolos característicos da data, conhecemos a história do protagonista Miguel, que é apaixonado por música. A trama toda se desenrola com uma grande mensagem por trás da festividade: a importância da memória ancestral.
O filme foi lançado em 2017 com o nome de Coco nos Estados Unidos. A animação musical foi um sucesso e venceu a cerimônia do Oscar nas duas categorias em que concorreu. Ganhou Melhor Canção Original com Remember Me e Melhor Filme de Animação. Certamente, a animação popularizou a celebração mexicana.
A princípio, o filme se chamaria Día de Los Muertos. Surgiu uma grande polêmica em torno desse primeiro nome, que fora posteriormente mudado. A Walt Disney Company tentou patentear – registrar como marca – o nome da festividade mexicana em 2013, e foi duramente criticada.
Situação semelhante aconteceu com a frase “Hakuna Matata”, do filme O Rei Leão (The Lion King, 1994). Nesse caso, o registro de patente chegou a se concretizar. A expressão faz parte do dialeto suaíli, falado em alguns países do continente africano. Mais recentemente, no ano de 2018, a empresa foi acusada de colonialismo e apropriação cultural por esse ato e levantou-se uma petição online sobre a causa, que contou com muitas assinaturas.
Para além de toda a insensibilidade em questão, a medida imperialista da empresa norte-americana, que visava apenas lucrar às custas da tradicional festividade mexicana, colocava em risco muitos comerciantes do México que trabalham com produtos relacionados ao Dia de Mortos. Não fosse a luta, o filme não teria o valor enorme que possui hoje.
Conservação da tradição
São muitos os desafios encontrados quando pensamos na transmissão de tradição e na garantia de sua sobrevivência. A professora Julia Batista lembra que memória é história e é também resistência. Ela acredita que por meio da memória, da história, é que se mantém viva essa celebração. Para que aconteça todos os anos, é necessário que se saiba quais são as origens, que se tenha consciência do caráter indígena da celebração.
Julia conta que, em 2011, quando participou da celebração em um povoado mexicano, entrevistou o historiador Ricardo Reis em uma visita a um museu local. Segundo ele, é muito importante que uma criança saiba quem foram os avós dela, os bisavós, seus ancestrais. Nessa prática coletiva de montagem do altar, que acontece em cooperação nas famílias, a memória é passada para as crianças. Dessa maneira, enxergando quem foram seus antepassados, elas podem entender quem elas são.
O reconhecimento da celebração como um patrimônio cultural da humanidade pela Unesco já é um grande passo de conservação da celebração. Mas, a professora alerta para a necessidade de criação de política públicas por parte do governo para fortalecer essa preservação, principalmente nas grandes capitais, onde o fluxo cultural é mais intenso.
Muitos mexicanos repudiam o Halloween, que tem sido incorporado pelo mundo todo, por considerarem que é uma ameaça à tradição, à identidade nacional do Dia dos Mortos, como lembra Julia Batista. Compreendemos esse repúdio quando observamos a relação do México com os Estados Unidos, ligada diretamente com o tratamento imperialista dos EUA direcionado ao país. O Halloween é tido como um grande símbolo do imperialismo norte-americano. Assim, as duas celebrações se transformaram em metáforas das relações entre o México e os EUA.
A globalização e o imperialismo implicam em inúmeras questões culturais, mas também políticas e econômicas, que influenciam a relação dos mexicanos com a celebração. A lógica do capital interfere e limita alguns aspectos da tradição e isso é bem maior do que os indivíduos. A questão da essência, do não apagamento das origens merece muita atenção para que as gerações futuras tenham conhecimento da essência da celebração.
O turismo cultural
A popularidade do Día de Muertos implica em grande procura turística. Para Julia Batista, essa alta do turismo é uma ameaça à essência da celebração do Dia dos Mortos. Já em 2006, o estudioso Hiriart-Pardo teceu algumas reflexões sobre a ameaça do turismo cultural e, hoje, podemos pensar que isso se potencializou.
O autor diz que o turismo, da maneira como vinha se estruturando, de forma desmedida e com toda a pressão comercial, contribui para que aconteça a banalização da celebração. Sua essência pode cair no esquecimento. Ele também alerta para a questão das política públicas, já que muitas acabam por privilegiar o turismo. Essas últimas contribuem para que a identidade se torne item de consumo puramente.
Julia alerta para a estereotipação da celebração de Dia dos Mortos. Algo que acontece com o Carnaval brasileiro, por exemplo. “Muitas pessoas vão ao México nesses dias e encaram a celebração considerando apenas o aspecto da festa, da curtição e acabam caindo nessa questão”. O mexicano encara, sim, a morte de uma maneira mais bem humorada, como vemos nas calaveritas literárias, que brincam com a questão da morte. Ele tem uma relação diferente com a morte e com seus mortos, mas não quer dizer que ele não chore aqueles que se foram. Não se trata de uma simples festa, um simples concurso de fantasia, de altares. A essência por trás do resultado dessa celebração é a vontade dessas pessoas de estar em comunhão, da espiritualidade e de poder recordar os seus antepassados, junto dos vivos. Nesse recordar, se entende suas próprias origens e sua própria identidade.
O turismo massivo incentivado, nessa época, faz com que várias atividades complementares às atividades tradicionais sejam implementadas para satisfazer a demanda dos turistas. Após o lançamento do filme 007 – Contra Spectre (Spectre, 2015), implementou-se na Cidade do México um desfile de Día de Muertos. O desfile que tinha sido pensado e criado apenas para o filme chamou a atenção dos espectadores e a busca por algo parecido se iniciou. Esse caso mais recente ilustra bem essa questão, ainda que seja cedo para julgar seu impacto.
Ao mesmo tempo em que a celebração pode servir como um atrativo para economia local, também traz essas implicações negativas, dependendo da maneira como é administrada. Nathalia conta que no desfile “tem carros alegóricos, muitos patrocinadores. Mas, em um ambiente bem familiar, não de festa, balada”. Julia diz que “enquanto houver um resgate da essência das tradições originárias, podemos considerar que esse tipo de celebração não cairá no esquecimento. Essas reinvenções e incorporações de elementos novos é natural”.