Ruben Stone (Riz Ahmed) e Lou (Olivia Cooke) vivem um romance à lá punk metal na estrada, mergulhados na rotina de shows explosivos e no dia a dia dentro de um RV Bus. O diretor Darius Marder entrega ao espectador um filme barulhento e aventuresco, que certamente irá enquadrar a história do baterista contracenando com as guitarras e vocais de Lou, certo? Não.
O clima trash de O Som do Silêncio (Sound of Metal, 2020) e as expectativas do espectador são rapidamente afogadas em um drama intimista e cada vez mais silencioso, cujo enredo anda sob a perspectiva de Ruben – o jogo de câmeras over the shoulder revela o filme pelos seus olhos, então é evidente que não existam cenas em que Ruben não esteja presente.
Prestes a iniciar uma turnê com sua namorada, Ruben sente seus ouvidos taparem, abafando todo o som do ambiente – neste momento e em vários que se seguem, bons fones de ouvido colocam os espectadores na pele de Ruben, em uma experiência auditiva angustiante. O designer de som Nicolas Becker trabalhou minuciosamente nos sons, realizando experimentos como acoplar microfones dentro de crânios e capacetes, a fim de causar a sensação de que Ruben nos emprestou seus ouvidos.
Devido à uma doença autoimune ou mesmo aos anos de música exageradamente alta, o baterista passou a ter menos de 30% de audição nos dois ouvidos. Vendo sua vida pautada e guiada por sons desmoronar, Ruben cai num terrível sentimento de desespero e nos arrasta com ele.
“Mas que humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu não ouvia nada! Esses incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência”. Estas falas não são de Ruben, mas de Beethoven, um dos mais importantes compositores da música ocidental de todos os tempos. O músico enfrentou um severo quadro de depressão e desenvolveu tendências suicidas após não captar mais os sons essencialmente como antes.
O protagonista de O Som do Silêncio felizmente não é arrebatado pela depressão durante o enredo, tendo então mais chances de lidar com sua nova vida. As causas que levam à surdez são muito difíceis de serem determinadas e o longa deixa essa dúvida no ar. No caso de Beethoven, as coisas só foram melhor explicadas em 2020, mais de 220 anos depois de seus primeiros sinais de perda auditiva. O músico não perdeu 100% de sua audição, assim como Ruben, e as pesquisas apontaram que ele parou de ouvir progressivamente ao longo dos anos devido a envenenamento por chumbo – um metal, quase uma ironia com o título original Sound of Metal.
Beethoven, porém, não teve a sorte de encontrar uma comunidade de surdos como a que acolheu Ruben e que sem dúvidas o ajudou a evitar um possível colapso. Convencido por Lou, Ruben aos poucos se entrega às atividades propostas pelo grupo, mas em constantes estados de incômodo e impotência – as conversas em línguas de sinais e os momentos em que outros personagens falam ao telefone não são em nenhum momento traduzidos, fato que deixa os espectadores igualmente confusos e perdidos durante esses momentos.
A comunidade se esforça para ensinar a Ruben que a surdez não é algo a ser consertado, remendado ou curado, e, embora não haja uma discussão profunda sobre como a condição do ex-baterista é vista pela sociedade, há um ensinamento sobre como os surdos escutam o mundo com os olhos e com as mãos. Diane (Lauren Ridloff) ensina língua de sinais às crianças da comunidade e passa a conviver com Ruben, momentos em que o protagonista dá os seus primeiros passos na comunicação por sinais.
Qualquer espectador atento teria certeza de que Diane e Ruben iniciariam um romance e parece que o enredo dá certa abertura para este tipo de interpretação. Entretanto, devemos quebrar a tendência que existe nos filmes de que os personagens só reencontram a felicidade, quando conhecem um novo par afetivo. É importante salientar que a comunidade de surdos auxilia na busca por felicidade em grupo, mas primordialmente na busca pela felicidade de se estar consigo mesmo.
Mesmo com todos os estímulos dados pela comunidade, Ruben não consegue se adaptar à sua nova condição e pensa em diversas formas de pagar pela sua cirurgia de implante coclear, o que custaria dezenas de milhares de dólares. Neste ponto do filme, estamos todos acostumados com o silêncio e qualquer som brusco se torna incômodo, uma inversão de sensações acontece sem que percebamos, já que o silêncio que era disruptivo no início do filme passa a ser o novo normal e os sons mais altos passam a ser levemente invasivos.
A surdez de Ruben o amarra em sua própria introspecção, finalmente embebido do silêncio que nunca havia sido oferecido a ele. Os pilares de sua vida são chacoalhados e sua visão sobre fatores-chave como o amor, a comunicação, a empatia, a dependência emocional, a solidão, o autocontrole, o toque e a música são remodelados.
Com o tempo, a angústia de Ruben é silenciada, como o restante do barulho, e sua percepção de mundo se torna muito mais aguçada. Ruben passa a dar ouvidos a si mesmo quando é obrigado a não dar ouvidos ao caos sonoro que o rodeava. O filme deixa muitas interpretações abertas e também um questionamento: o espectador que goza de sua plena audição escuta as coisas da vida tão bem quanto os surdos?
O Som do Silêncio está disponível para todos os assinantes da Amazon Prime Video. Confira o trailer:
*Capa: [Imagem: Divulgação/Amazon Prime]