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No olho da rua

Aspectos históricos da população de rua no sudeste brasileiro
Diógenes, por Jean-Léon Gérôme – 1860

 

As ruas da capital paulista recebem números cada vez mais alarmantes de pessoas desabrigadas. Para se ter ideia de quantos são e quem são, um levantamento encomendado pela Prefeitura de São Paulo apontou um salto de aproximadamente 4 mil pessoas em situação de rua entre 2015 e final de 2019 – a população passou a totalizar mais de 24 mil pessoas, número que pode ter aumentado com as derrocadas sociais agravadas pela chegada do novo Coronavírus. 

Na História, as pinturas, a literatura e as tradições orais cederam pouco ou nenhum espaço para representar e entender grupos de pessoas que, por algum motivo, desligaram-se de suas casas e de sua estabilidade: a população de rua. De forma muito mais intensa do que nos dias de hoje, a miséria generalizada pode ter sido o principal condicionante para que famílias inteiras fossem submetidas ao relento das esquinas em tempos mais remotos. A miséria fazia parte da filosofia de Diógenes de Sínope, o Cínico (405 a.C. – 323 a.C.), morador de rua em Atenas, e que teve destaque na literatura – polemicamente tendo sua conduta associada às virtudes dos cães: o Cínico, do grego “kynon” (cão), desprezava as convenções de seu tempo e não possuía quase nenhum bem; o cinismo renunciava elementos sociais como a luxúria e o prazer. Não fosse a figura socialmente superior de Alexandre, O Grande, que ajudou a divulgar a imagem do Cínico após cruzar seu caminho, o filósofo provavelmente seria apagado da história como todos os seus semelhantes enquanto grupo social desamparado.

 

Se Diógenes vivesse na São Paulo de 2017, teria seu barril tomado pela Guarda Civil Metropolitana a mando do então prefeito João Doria (PSDB). Na gestão anterior, Fernando Haddad havia proibido a retirada de pertences, como cobertores, após polêmicas envolvendo a morte de moradores de rua por hipotermia, mas o parágrafo que proibia o recolhimento dos pertences foi excluído do decreto. Doria afirmou que o texto “não ficou claro” e que “os guardas não estão autorizados a recolher os pertences porque seria uma desumanidade”, mas não explicou o motivo da exclusão do parágrafo. A Qualitest Ciência foi a campo para coletar dados sobre a população de rua no ano de 2019, atualizando os dados do último Censo realizado em 2015.

Dados do Censo da População em Situação de Rua 2019 realizado pela empresa Qualitest Ciência e Tecnologia LTDA [Imagem: Prefeitura de São Paulo]

 

O censo ainda colheu dados para tentar mapear alguns dos principais motivos que levaram as pessoas para as ruas, sendo eles a falta de trabalho e moradia, dependência de drogas, desavenças entre familiares e a morte destes. Dentre as porcentagens, talvez a mais gritante seja a que aponta que quase 70% das mais de 24 mil pessoas em situação de rua são negras.

Carlos de Almeida Prado Bacellar, doutor em História Social e professor do departamento de História da USP, explica que, ao contrário do que aconteceu na América do Norte, a alforria era muito comum na América do Sul. Os escravos libertos, muitos já idosos – sendo 50 anos uma idade muito avançada na época do Brasil Colônia –, não tinham acesso a nenhum tipo de mecanismo de amparo e não havia do que sobreviver, tampouco havia qualquer esforço de reinserção social para os alforriados, tornando muito altas as chances de mendicância. A nova população era legalmente proibida de se matricular em escolas, sendo assim analfabeta em sua maioria. Além da baixa escolaridade, persiste o estigma da cor. Segundo o professor, “não se fala em morador de rua na colônia, mas sim de ‘vagabundo’, ou ‘vaga mundo’, ociosos; a expressão ‘morador de rua’ não existia”.

A figura do “vagabundo” foi mais presente na segunda metade do século XVIII em São Paulo, quando, em 1765, um novo governador é enviado pelo Marquês de Pombal para realizar uma reforma na capitania – secundária e pobre, mas militarmente estratégica contra ataques aos portugueses. Morgado de Mateus, o novo governador, reunia pessoas em filas para cobrar impostos e selecionar recrutas para as tropas de defesa; ele se refere frequentemente aos “vagabundos” da região e solicita que cada vila localize esses indivíduos, que são enviados a força para fundar certos núcleos de povoamento em áreas estratégicas da capitania. “Piracicaba, por exemplo, foi fundada com a escória da sociedade: criminosos, vagabundos, ociosos, todos que, aos olhos do governador, não tinham valor algum para a sociedade”, afirma o professor. 

Naquele momento, grande parte da emergente população de rua era indígena, escravizada até meados de 1650 em São Paulo. Assim como nos dias de hoje, muitas pessoas tinham acesso à um domicílio, mas viviam do favor alheio, “eram mendigos, mas os censos coloniais apontavam esses indivíduos como residentes de uma casa.”

Largo e Matriz do Brás, em 1862 – Benedito Calixto, 1918


Os poucos documentos sobre essas pessoas não deixam claro se os critérios de mendicância daquela época eram os mesmos critérios dos dias de hoje. O fato é que já existia uma população de rua miserável, composta em sua maioria por negros e indígenas, que era usada pelo Estado insistentemente como contingente para a fundação de vilas. Segundo Carlos, quase 15 das 16 vilas que são fundadas nas décadas de 1760 e 1770 foram reiteradamente formadas por “retalhos” do Estado.

Após a abolição da escravatura, em 1888, a ausência de uma  proposta efetiva de assistência e destino para os ex-escravos, faz com que comecem a surgir as favelas como as conhecemos hoje. O professor frisa que “em momento algum se pensou no escravo, mas sim nas negociações entre Império e senhores de escravos que demandavam indenizações pela perda de produtividade e lucro”. O Sudeste era uma região totalmente rural, não existiam empregos cujos laços não fossem frágeis, além da realidade que perdura desde o século XVI: a terra concentrada nas mãos de poucos. Quem não tinha terras ou era expulso das lavouras cedidas pelos grandes proprietários tinha que viver de favor ou ir para as ruas.


A dinâmica dos centros urbanos no Sudeste se intensifica cada vez mais, assim como a população de rua. Para conter o avanço da varíola, o médico Oswaldo Cruz articulou meios para que o Congresso aprovasse uma lei que tornou a vacinação obrigatória, autorizando as brigadas a entrar nas casas para inocular a população. A truculência da campanha e a grave falha de comunicação com a população – até mesmo com membros da elite brasileira – instaurou a Revolta da Vacina, em 1908, com rebeliões, tiroteios, prisões e exílios compulsórios para trabalho forçado no Acre.

Cortiço na região central do Rio de Janeiro em meados de 1900 [Imagem: Augusto Malta/ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro]

Um dos principais planos de governo do presidente Rodrigues Alves era a reforma urbana na capital do Brasil, o Rio de Janeiro, que ainda tinha feições coloniais. Junto à reforma urbana, pretendia-se “higienizar” a cidade, extinguindo os “miasmas” como a peste bubônica, a febre amarela, a varíola, a tuberculose, os cortiços e a população pobre de forma geral, todos tratados de forma equivalente pelo Estado. 

Com as reformas, o centro do Rio de Janeiro deveria se parecer com Paris, e isso significava remover o que em tese estava barrando a passagem da carruagem da elite brasileira europeizada. Documentos da época apontam que mais de 14 mil pessoas ficaram sem teto em pouco menos de um ano, sem ter tido condições para, quem sabe, conseguir um outro lugar para morar. Expulsos do centro, a população migrou para as regiões periféricas do Estado, como morros e áreas de várzea, intensificando a criação de enormes favelas e a segregação espacial que existe até hoje no Rio de Janeiro.

Demolição de moradias para alargamento da rua Uruguaiana em 1905 [Imagem: Acervo Instituto Moreira Salles]

 

Formação de favelas no Rio de Janeiro em 1920, locais para onde migraram muitos dos desabrigados pela reurbanização [Imagem: Augusto Malta/ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro]

 

Favelas, população de rua e estratificação social

O professor Robert Sean Purdy, doutor em História das Américas, aponta que não existem favelas, como conhecemos no Brasil, na América do Norte. Aqui, as favelas são ocupações feitas por grupos de pessoas que constroem suas próprias casas em terras públicas ou privadas não usadas e com ausência de auxílio do Estado, com os recursos que estão disponíveis. Nos Estados Unidos, fenômenos muito semelhantes às favelas aconteceram na Costa Oeste em meados da década de 1930. Em sua grande maioria, o que se encontra são habitações públicas, ou seja, casas e apartamentos construídos pelo próprio governo e subsidiadas para a população pobre – é lá que se concentram os imigrantes, refugiados, e a população de rua de modo geral, que orbita essas regiões. 

“No Brasil, o Estado completamente ausente resulta em falta de hospitais, escolas e transporte público decentes, domínio por vezes total pelo tráfico de drogas, entre outros”, afirma Purdy. A possibilidade de existência de favelas e uma grande população de rua nos moldes brasileiros em território norte-americano é ainda menor quando consideramos que “ter um abrigo minimamente estruturado é uma necessidade, pois sem um revestimento nas paredes, durante, por exemplo, o inverno canadense, as pessoas simplesmente morrem”; as favelas norte americanas, quando existiram, se estabeleceram na Costa Oeste dos Estados Unidos, porque lá as temperaturas são mais altas.

Principalmente em São Paulo, a maior despesa do mês é, geralmente, a moradia. O desafio é ainda mais amargo quando a renda mensal não atinge sequer o teto de um salário mínimo. Os aluguéis podem estar acima dos R$ 900 mesmo dentro das periferias, enquanto as regiões centrais do estado são, praticamente e historicamente, inacessíveis para a população de baixa renda – ou nenhuma renda, no caso da população de rua. Esta não é representada nem sequer na pirâmide da estratificação social, comumente dividida entre classes alta, média e baixa.

Pessoas em situação de rua na Praça da Sé, região central de São Paulo [Imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil]

As pessoas em situação de rua são consideradas como parte da classe baixa, mas ainda assim não estão devidamente contempladas: uma pesquisa do Datafolha de 2013 apontou que as classes mais baixas da sociedade brasileira têm renda familiar de aproximadamente R$ 1350, valor de renda que consegue seguir um padrão, não sendo o caso de um cidadão que perdura na extrema pobreza. Isso acontece porque pesquisas feitas no Brasil são majoritariamente domiciliares, como as pesquisas do Datafolha ou do IBGE, que não entrevistam pessoas que não têm domicílio. O Censo do IBGE é alimentado por informações coletadas em setores censitários, que são aglomerados de 300 ou 400 domicílios, e cada recenseador percorre um setor aplicando um questionário para as pessoas que residem em domicílio. Ou seja, a população de rua fica excluída de antemão.


Controle social e população de rua

Controle social, segundo Sérgio Adorno, professor do departamento de sociologia da USP, é um amplo processo que estabelece o que é e o que não é permitido, estando presente em todas as sociedades desde o início das primeiras civilizações, sofisticando-se ao longo do tempo. O controle seria uma forma de adequar o indivíduo às normas de convivência social, ou internalizar nele os princípios gerais da convivência coletiva. Os estímulos para o estabelecimento de comportamentos que partem do Estado são chamados de controle legal, mas existem formas não oficiais e muito mais sutis que partem, por exemplo, da educação familiar. “O núcleo familiar ensina para seus membros, de alguma maneira, o certo e o errado, o que é aceitável e o que não é”, afirma o professor. 

Ao ler um jornal ou uma revista, o leitor é de certa forma conduzido a refletir sobre  qual é o comportamento mais adequado, como devemos agir em uma situação ou outra, e a isso também se dá o nome de controle social. Há também formas simbólicas de controle, como olhares, gestos, pequenas palavras; Sérgio exemplifica que “ao dizer ‘psiu’ para alguém que conversa durante uma sessão de cinema, estabelece-se uma forma de controle social, em nome dos demais ou de si próprio”.

Um morador de rua que está dentro de um restaurante, malvestido (de acordo com o que é considerado boa vestimenta no local), não necessariamente malcheiroso, mesmo tendo dinheiro para pagar a sua refeição, pode ser barrado ou expulso do local. Quando não banido, é constantemente retaliado pelos olhares. Situações como essa ocorrem porque o controle social também estabelece limites entre aquilo que seria tolerável ou não do ponto de vista de grupos determinados – nem toda sociedade adota o mesmo sistema, porém muitas áreas da vida social sim.

A especificidade do controle social está no fato de que ele é uma forma muitas vezes sutil de exercitar domínio de certos preceitos e de certos grupos sobre outros. Para determinado grupo social, por exemplo, existe apenas uma forma de viver a sexualidade –  como um casal heterossexual monogâmico – e o que escapa dessa concepção será sempre objeto de censura e de alguma imposição de limites.

Sérgio Adorno salienta que o problema não é o controle social, mas a forma como ele é exercido, se o é feito de forma autoritária, abusiva, impositiva, ou se é recebido como algo desejável para a convivência coletiva. “Se o Estado exerce o controle legal com muita violência, transgredindo direitos fundamentais, está se apoiando num controle que é abusivo.” Porém, ainda de acordo com o professor, se as pessoas são levadas a entender que toda ordem requer o mínimo de aceitação de certos princípios e compreendermos isso de maneira educada através das leituras, dos ensinamentos que nos permitem ser pessoas dignas e conscientes, significa que os controles legal e social podem ser legitimados, tomados como necessários. “Aceita-se o mínimo de ordem, porque viver no caos é insuportável.” 

 

*Foto de capa: [Reprodução/Fotos Públicas]

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