Nas anotações avaliativas de Hipócrates, intitulado por muitos como o “Pai da Medicina”, está registrado o primeiro uso do termo “commotio cerebri” no Ocidente, designado para agitações significantes no cérebro. No século X, o médico persa Abū Bakr al-Rāzī distinguiu as lesões cerebrais entre fatais e imperceptíveis. Centenas de anos depois, as repetidas colisões encefálicas são pautas nas associações vinculadas ao futebol americano, sobretudo no que se refere à Encefalopatia Traumática Crônica (ETC).
Os exemplos mais conhecidos são de atletas de futebol americano, como os episódios de Mike Webster e Aaron Hernandez. Estes casos, retratados em produções cinematográficas — no filme Um homem entre gigantes e na minissérie A Mente do Assassino: Aaron Hernandez, respectivamente — alertaram a comunidade neurológica sobre os riscos dos impactos na cabeça, além de servirem de estopim para estudos aprofundados na segurança da prática dos esportes.
O que é a Encefalopatia Traumática Crônica (ETC)?
A Encefalopatia Traumática Crônica (ETC) é uma doença degenerativa causada por lesões no cérebro e concussões repetitivas, comumente encontrada em soldados veteranos, atletas e outros indivíduos com um histórico de trauma cerebral. Esse progressivo dano ao encéfalo, estrutura principal do sistema nervoso central, resulta, a longo prazo, em sintomas ligados ao processo cognitivo-comportamental.
A fragilidade do cérebro humano, mesmo sob o envoltório cranial, permite que as repetitivas lesões pela ETC ocasionem sintomas comuns, como: perda de memória recente, desorientação, dificuldade no raciocínio e alterações repentinas no comportamento. Esses traços manifestam-se com uma gradativa intensidade no decorrer do tempo e podem ser revelados com sinais de depressão, ansiedade e disartria — a perda da formulação normal das palavras, provocada por distúrbios neurológicos.
Para o Doutor César Andraus, neurocirurgião e diretor do Instituto de Neurologia Deolindo Couto da UFRJ: “No ponto de vista neuropatológico, a encefalopatia traumática crônica decorre da deposição da proteína Tau hiperfosforilada, que cria emaranhados neurofibrilares nas regiões subcorticais, áreas subpiais e perivasculares. Essa deposição causa alterações comportamentais e déficits cognitivos, como perda de memória recente e a perda das funções executivas motoras”.
A proteína Tau é a responsável pela regulação do dinamismo, estabilidade e funcionamento dos microtúbulos, elementos de formação das estruturas neuronais, como os axônios e dendritos. A hiperfosforilação da proteína — adesão máxima de grupos fosfato na molécula de Tau —, causada pelas contusões nas regiões do cérebro, gera uma progressiva reação de cadeia caracterizada pelo aumento na resistência à passagem intracelular de nutrientes, a exemplo dos neurotransmissores. Tanto os danos nos neurônios como a redução no tráfego dos neurotransmissores têm impacto direto no panorama comportamental-cognitivo do atleta.
“O processo degenerativo do tecido é um quadro progressivo de atrofia por perda neuronal na região subcortical e cortical, que promove a deposição de placas beta-amiloide — nome dado ao aglomerado de proteínas Tau — as quais prejudicam a memória, por exemplo”, esclarece o Dr. Andraus. “A perda da memória é um elemento chave das síndromes demenciais. Você só é o que é por causa da memória, que demarca os relacionamentos e experiências. Você perde a sua individualidade”.
A descoberta da ETC
No final da década de 1920, a “síndrome do boxe”, descrita pelo Dr. Harrison Martland ao examinar o comportamento de boxeadores, marcou o início da documentação da patologia, embora ela ainda não fosse totalmente compreendida. A também denominada “demência pugilística” permaneceu por décadas sem estudos aprofundados, apesar de serem cada vez mais recorrentes os casos de falta de memória ou alterações inadvertidas de comportamento. Com a expansão da cobertura midiática nos ringues e a evolução patológico-científica, as lesões dos atletas ganharam destaque para a orientação de dicas de prevenção e as causas principais.
Contudo, a demência pugilística foi ligada ao mundo do futebol americano a partir de 2002, ano em que a autópsia realizada pelo Dr. Bennet Omalu teve como resultado a Encefalopatia Traumática Crônica. É majoritariamente das necropsias – jargão popularmente conhecido como autópsia – de atletas que provém o estudo sobre a ETC, uma vez que são eles os principais provedores de material encefálico para análise em laboratórios de pesquisa.
As múltiplas partidas com uma elevada quantidade de colisões intensas sem a proteção devida dos equipamentos converteram no falecimento de uma ex-estrela da National Football League (NFL) — liga esportiva profissional de futebol americano dos Estados Unidos: Mike Webster. Sob os holofotes da imprensa, a liga americana teve de lidar com circunstâncias inéditas no que remete à segurança dos atletas em campo, considerando a característica agressiva instituída na criação da modalidade.
Os estudos do Dr. Omalu revelaram que ao contrário dos cérebros de boxeadores, comumente atrofiados e nitidamente machucados: o de Webster encontrava-se completamente intacto. Para encontrar evidências da patologia, a autópsia não deveria seguir o procedimento habitual e, assim, seria necessária uma análise microscópica.
Pesquisa divulgada sobre a ETC em jogadores de futebol americano falecidos
Em 2017, uma pesquisa realizada pela Dra. Ann McKee, neuropatologista na Escola de Medicina da Universidade de Boston, estudou os cérebros doados de 202 atletas de futebol americano falecidos. Entre jogadores do pré-high school, high school, universidade, ligas semi profissionais, Canadian Football League (CFL) e NFL , o exame encontrou 177 casos da doença, no que pode ser diretamente relacionado à intensidade e período de exposição aos choques.
“A ETC não é uma doença aguda, ela é progressiva. Para um atleta brasileiro, é muito difícil desenvolvê-la pelo período e intensidade física nos jogos, diferentemente do elevado nível na NFL, por exemplo”, comenta Lucas Viezzer, tight end e Diretor de Esportes do Coritiba Crocodiles. A pesquisa da Dra. McKee diagnosticou a ETC em 110 dos 111 profissionais atuantes na liga americana, indício de um obstáculo na saúde dos atletas.
O caso Aaron Hernandez
Aaron Hernandez foi um tight end que formou dupla com Rob Gronkowski no New England Patriots, de Tom Brady e Bill Belichick, entre 2010 e 2012. Mesmo ao disputar o SuperBowl XLVI, Hernandez recebeu destaque da mídia devido a um acontecimento inusitado: o camisa 81 do New England Patriots esteve envolvido em um assassinato, participando de um processo de julgamento ferozmente coberto pela imprensa. A acusação pelo homicídio de primeiro grau de Odin Lloyd e outros quatro crimes ligados à posse ilegal de armas rendeu a pena de prisão perpétua sem liberdade condicional, apesar da ausência de uma motivação para tais delitos.
Cinco dias depois da condenação, Hernandez foi encontrado morto em sua cela, no que, posteriormente, foi confirmado como suicídio. A dificuldade em encontrar o que o instigou a participar do assassinato de Lloyd e o seu suicídio levantaram suspeitas sobre os verdadeiros motivos de seu comportamento alterado.
A Universidade de Boston, então, solicitou a doação de seu cérebro para conferir a possibilidade do diagnóstico de ETC e a equipe da Dra. McKee encontrou cavidades características da doença encefálica. O cérebro de Hernandez estava tão obstruído quanto o de um jogador idoso e coberto pela proteína Tau no córtex pré-frontal, amígdala e hipocampo — responsáveis pela tomada de decisões, controle de emoções e memória, respectivamente. A ETC não foi declarada como a causa principal da conjuntura, embora seja um fator que possa ter contribuído para o caso.
Os caminhos para a proteção dos atletas
Diante da preocupação com a segurança dos competidores, a NFL alterou regras e estabeleceu parâmetros de punições para as faltas cometidas. O “Protocolo de Concussão” criado pela liga designa cinco etapas de checagem para o retorno à prática em caso de sinais de concussão e já interveio na participação do quarterback Patrick Mahomes nos playoffs. “Quando a gente fala de traumas repetidos, além da ETC, existe a Síndrome do Segundo Impacto, na qual o agente está em estágio de vulnerabilidade e não pode se submeter a um novo impacto se estiver sintomático. O importante é a prevenção”, explica o Dr. Andraus.
Além do regulamento, os equipamentos de segurança também são endereçados, em especial o capacete. Segundo Viezzer, o capacete, além de proporcionar a proteção física quando há um choque na cabeça, absorve o impacto. “O atleta sente o contato, mas o cérebro recebe um bem menor. Por isso, o desenvolvimento de tecnologias na produção dos capacetes tem sido incentivado a reduzir o impacto recebido pelo jogador, considerando a exposição e a intensidade, para proteger os atletas”, finaliza.