No domingo (30), Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República e irá cumprir o mandato pela terceira vez. Essa foi a eleição para presidente mais acirrada da história, com uma diferença de aproximadamente 2 milhões de votos, menor do que entre Dilma Rousseff e Aécio Neves nas eleições de 2014, que até então era a mais acirrada. O atual líder do executivo, Jair Messias Bolsonaro, perdeu nas urnas e se tornou o primeiro presidente em exercício a não se reeleger desde que essa possibilidade foi instaurada, em 1997.
Lula tomará posse no começo do ano que vem, vinte anos depois do início do seu primeiro mandato, mas receberá o Brasil em uma situação bem diferente. Segundo Hugo Fanton, doutor em Ciência Política pela Unicamp, “Lula conseguiu construir uma política conciliatória que envolveu amplos setores ao longo dos seus dois primeiros mandatos, mas no cenário atual é mais difícil produzir esse tipo de conciliação, porque a sociedade está dividida, com uma força opositora muito enraizada e organizada”. Em seu discurso após a vitória, Lula declarou que vai governar para 215 milhões de brasileiros, e não apenas para aqueles que votaram nele, pois não existem dois Brasis.
As anormalidades nas eleições se iniciaram ainda no domingo de votação, quando foram relatados casos de operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) que impediam, com blitzes, que eleitores fossem votar. Essas operações ocorreram em todo o país e se concentraram na região Nordeste, onde Lula tem seu maior eleitorado. Segundo dados do O Globo, foram mais de 500 operações.
Outras dificuldades se levantaram também após o anúncio do resultado. Jair Bolsonaro, atual presidente, passou mais de 45 horas sem realizar seu pronunciamento. Enquanto isso, algumas manifestações iniciadas por caminhoneiros eclodiram pelo país, por meio do fechamento de rodovias, provocando congestionamentos e desabastecimentos. Eles contestavam o resultado eleitoral e, em alguns casos, pediam um golpe militar para impedir a posse de Lula. Diante disso, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar se empresários ligados ao governo estão por trás do financiamento e organização desses atos.
Apenas na terça-feira (1), Bolsonaro se pronunciou, sem reconhecer a vitória de Lula diretamente, mas autorizando o ministro da Casa Civil Ciro Nogueira a seguir com o processo de transição, que é previsto por lei e não depende do aval do presidente em cargo. A atitude tomada por Bolsonaro se aproximou ao que Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, fez após a vitória de Biden.
Na quarta-feira (2), em vídeo, Bolsonaro pediu aos manifestantes que desobstruam as rodovias: “O fechamento de rodovias pelo Brasil prejudica o direito de ir e vir das pessoas. Está lá na nossa Constituição e nós sempre tivemos dentro dessas quatro linhas, tem que respeitar o direito de outras pessoas que estão se movimentando, além do prejuízo a nossa economia”. Em 2018, no entanto, o presidente estimulou a paralisação dos caminhoneiros, o que afetou completamente a disponibilidade e preço dos combustíveis.
Apesar das manifestações contestando o resultado, a maior parte dos poderes reconheceu a vitória de Lula, até mesmo aliados, como Arthur Lira, Sérgio Moro e Hamilton Mourão. Tudo isso aponta para um possível isolamento institucional de Bolsonaro, o que dificultaria a orquestração de um “Capitólio brasileiro”, em referência à invasão do Congresso dos EUA para impedir a posse de Biden em 2021. Atualmente, Bolsonaro cogita sair do país para não passar a faixa de presidente para Lula.
Os protestos contra o resultado das eleições não têm se restringido, porém, a lugares abertos, como as rodovias. Alguns exemplos ocorreram no interior de São Paulo, onde uma equipe de reportagem que cobria o atropelamento de alguns manifestantes foi agredida por bolsonaristas. Alunos do interior também foram agredidos por eleitores do Bolsonaro após fazerem gestos pró Lula. Contudo, mesmo com muitas manifestações, o número de pessoas que se mobilizaram não foi expressivo. No segundo turno, Bolsonaro recebeu aproximadamente 58 milhões de votos, e isso não significa que todos esses eleitores apoiam as reivindicações das manifestações.
Os desafios para o novo governo e a permanência da extrema direita
A campanha petista contou com uma grande frente de apoio, que reuniu partidos e forças tanto da direita quanto da esquerda do espectro político. Antes ou depois do primeiro turno, diversas personalidades se posicionaram a favor de Lula, como Simone Tebet, candidata à presidência da República, que participou ativamente da campanha lulista para o segundo turno, João Amoêdo, fundador do Partido Novo, Miguel Reale, autor do pedido de impeachment da Dilma, Armínio Fraga, um dos mais conhecidos economistas defensores do liberalismo, Neca Setúbal, herdeira do Itaú e FHC, ex-presidente do Brasil.
Hugo Fanton ajuda a explicar esse largo movimento de apoio ao petista: “Em 2018, a elite política e econômica apoiou amplamente Bolsonaro, mas principalmente a partir da gestão desastrosa do atual governo na pandemia, muitos setores do grande capital passaram a se afastar dele”. Com isso, após a eleição, a equipe de transição do novo governo está se organizando para aumentar ainda mais essa base de apoio e garantir a governabilidade. Partidos como União Brasil, PSD e MDB já estão no centro de negociações e fazem pressão por ministérios.
No setor da economia, o cenário favorável, como a diminuição na taxa de desemprego e alta no PIB, é explicado por estímulos temporários. Isso significa que o cenário será afetado no ano de 2023. O menor desemprego se dá principalmente pela retomada de atividades presenciais e pela criação de vagas de baixa qualidade. Já o aumento do PIB se apoiou, principalmente, no “boom” de exportações, impulsionado pelo conflito da Rússia e Ucrânia. Em razão disso, muitos especialistas afirmam que haverá uma desaceleração na economia, também para poder liquidar os gastos do governo com a campanha eleitoral, que visava “bombar” a economia no período das eleições.
Outro desafio são os 10,1 milhões de brasileiros desempregados e os 33,1 milhões passando fome. A equipe de transição do presidente eleito, liderada por Geraldo Alckmin, já está em negociações com o Congresso para decidir a viabilidade das suas propostas sociais, levando em conta os limites do Orçamento de 2023. Está em tramitação uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que retiraria do Teto de Gastos despesas consideradas essenciais para o ano que vem, como a manutenção do Auxílio Brasil em 600 reais, a política de valorização do salário mínimo e retomada dos investimentos na Farmácia Popular.
Para Hugo o cenário econômico global desfavorável pode ser uma grande dificuldade para o futuro governo Lula, o que torna menos provável que os ciclos de crescimento que o país verificou em seus dois primeiros governos se repitam. “Se não houver uma melhoria na qualidade de vida e na conquista de direitos, o presidente eleito enfrentará grande dificuldade e o bolsonarismo pode se fortalecer de novo.”
O cientista ressalta que o fenômeno da extrema direita vai muito além de Bolsonaro e é algo global. “Nós temos Trump, nós temos a nova primeira-ministra da Itália, que flerta com o fascismo de Mussolini, ou seja, é um fenômeno que está presente em diversos países”. Nas manifestações que ocorreram após as eleições no Brasil, bolsonaristas reivindicaram até mesmo intervenção militar e, em Santa Catarina, um grupo foi filmado fazendo símbolo nazista enquanto cantava o hino nacional.
“Nós estamos falando não só de um movimento político, mas de algo muito enraizado socialmente. Isso só será vencido com uma mobilização e organização da sociedade civil, disputando valores e ideias. Uma atuação que vai além da política meramente institucional que é travada ali no Congresso Nacional e no dia a dia do governo”, completa Hugo.
Disputa política: a importância da comunicação nas redes sociais durante a campanha
As eleições de 2018 ficaram marcadas por algo inédito na maneira como as campanhas se relacionam com seus eleitores. Historicamente, os grandes meios de comunicação sempre foram algo central no processo eleitoral. No entanto, naquele ano, Bolsonaro e seus aliados, tendo direito a um tempo muito pequeno de rádio e televisão, saíram vitoriosos. E souberam usar as redes sociais e as plataformas digitais a seu favor, o que surpreendeu muitos analistas.
Nas eleições deste ano, com o maior reconhecimento desse novo papel que as mídias sociais desempenham na sociedade, a campanha petista procurou se integrar a esses meios, majoritariamente utilizados por bolsonaristas. Campanhas na internet se tornaram ainda mais difundidas, com figuras públicas declarando apoio e participando ativamente das discussões que envolviam os candidatos.
Principalmente após o segundo turno, alguns influenciadores se engajaram na campanha para o Lula. Figuras como Felipe Neto, André Janones e Patricia Lelis conduziram o conteúdo com estratégias novas para a esquerda. O youtuber Felipe Neto, por exemplo, gravou diversos vídeos rebatendo mentiras e dados falsos levantados por bolsonaristas. Janones, com lives inéditas, atuou trazendo especulações sobre a campanha bolsonarista. E especialistas, como Sabrina Fernandes, foram essenciais para o debate e análise sobre o governo de Bolsonaro. Alguns deles causaram tanta repercussão que chegaram a ser citados pelo atual presidente em algumas entrevistas.
Essa disputa não ficou só nas redes. As campanhas tanto de Lula quanto de Bolsonaro, pelo caráter mais acirrado do primeiro turno, passaram a apelar para a difamação do outro candidato. Em razão disso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entrou com ações que proibiam dados falsos ou equivocados. Janones também teve suas postagens limitadas nas redes, assim como Nikolas Ferreira, deputado de Minas Gerais pelo PL, partido de Bolsonaro.
Para Hugo, esse tipo de comunicação precisa ser usado de forma responsável por ambos os lados, para que o uso das fake news não se banalize, especialmente entre o lado anti bolsonarista, que diz combater tais práticas. “É possível que utilizando inverdades o candidato tenha algum ganho eleitoral imediato. Mas nós não podemos esquecer que a luta política vai muito além das eleições e só com esse cuidado com os fatos que nós poderemos ter um debate público salutar e resolver os nossos problemas coletivamente”.
Imagem de capa: Reprodução/ Wikimedia Commons