Com as roupas impregnadas de presídio e violência, duas mulheres anônimas se reúnem em uma dor compartilhada. Anônimas — porque o presídio além de roubar-lhes os filhos, também lhes rouba a identidade —, vivenciam os piores pecados na pele, sentem, como um cordão umbilical que nunca se rompeu, as dores de seus fetos já crescidos. E são compelidas ao silêncio: no presídio, quem denuncia é a primeira vítima.
Escondidas por trás de pseudônimos estão Renata e Cláudia, duas mães que gestam a dor de ter um filho no sistema carcerário brasileiro.
O coração pesado — e o bolso também
“As famílias madrugam na porta, mulheres na imensa maioria. São namoradas, esposas, irmãs, tias e a inseparável mãe, difícil de abandonar o filho, por mais crápula que ele seja. Em dez anos na cadeia, assisti a tais demonstrações de amor materno que, confesso, encontrei sabedoria no dito: amor, só de mãe.”
Dráuzio Varella, Estação Carandiru
A visita ao presídio não costuma ser um passeio agradável. Horas na fila sob um sol escaldante, revistas invasivas, gritos e tortura psicológica fazem parte da rotina das visitas. Nada disso impede Cláudia de querer visitar seu filho. Mas o dinheiro é um obstáculo quase intransponível.
A maioria das prisões fica no interior dos estados, longe dos centros urbanos, que concentram a maior parte da população. Por isso, é comum que as mães façam custosas viagens e atravessem fronteiras estaduais para reencontrar os filhos. É o caso de Cláudia, que mora na periferia de São Paulo e teve o filho transferido para o interior do Rio de Janeiro — a 400 quilômetros e 6 pedágios da capital paulista.
A viagem pesa no bolso de Cláudia: “pagando passagem, metrô e comida já dá uns 500 reais… e isso sem contar o Jumbo”. O Jumbo é um estoque de itens básicos que as visitas levam aos presos: comida, itens de higiene, roupas e cigarro. A passagem, a estadia, o almoço e o Jumbo somados dão quase 1.500 reais, e a matemática parece afiar as frustrações: “eu comecei a fazer as contas e vi que, depois de dois anos de visitas, dava um carro zero”, conta a mãe.
Para além dos muros do presídio estão os muros da pobreza. Tão intransponíveis quanto os de concreto.
Um olho fechado — e o outro bem aberto
O ônibus chega cedo e, antes das horas de visita começarem, Cláudia e Renata alugam um modesto quarto em uma pensão da cidade. Lá, arrumam os preparativos para a visita: vestem a farda e organizam a sacola plástica onde guardam o almoço, que será desfrutado junto com os filhos. Algumas descansam, outras fazem um lanche. Cláudia não encosta em nenhuma comida, tampouco bebe água. Tem medo de passar mal e perder o horário de visita ou ter que ir se aliviar no mato — única alternativa pela falta de estruturas sanitárias.
Na pensão, Renata fica sempre à espreita: “é só falar em polícia que eu fico tremendo.” Ela conta que vivenciou uma invasão policial na pensão: “eles jogam todas as roupas pelo chão, bagunçam a mala toda, bagunçam até a comida que a gente vai levar. As polícias femininas mandavam as mulheres tirarem a roupa e se agacharem para inspeção íntima”. Ela também tem medo que plantem drogas em seus pertences para incriminá-la. Por isso, Renata cuida da sacola como se fosse um filho, carregando-a no colo sempre que possível. Quando vai tirar um cochilo, amarra as alças com força e esconde a sacola dentro do pequeno frigobar.
A farda
Cabelo solto, calça legging, camiseta lisa e chinelo sem estampa. Não são só os presos que são submetidos ao uso de uniforme: a farda — como é chamada a exigência de vestimenta para visitas — é tão dura quanto a lei. Sutiã, saia longa, roupa transparente, decote, blusa com capuz e forro duplo, são só algumas das proibições estipuladas pelo presídio.
Em algumas prisões é proibido usar qualquer vestimenta que tenha costura, seja na manga da blusa ou na bainha da calça. Esse é o caso do presídio em que o filho de Renata foi encarcerado: “a gente descostura a roupa em casa. Tem umas que vão na costureira passar overlock pra ficar bonitinho”, conta a mãe.
Em outras, o uso de meias é terminantemente proibido. “ As crianças entram só de blusinha e sem meia, num maior frio”, conta Cláudia. Alegam que as rígidas exigências são apenas para garantir a segurança do presídio, mas Cláudia não se convence: “é pra aterrorizar você, para que você vá uma vez e não volte mais”.
A revista
“Os portões se abrem às sete, quando a fila já está enorme.
É obrigatório passar pelas baias de Revista.
A dos homens é mais superficial; as mulheres são revistadas por funcionárias que olham até dentro da calcinha e, quando desconfiam, mandam que a revistada a tire e se agache, para verificar se há corpo estranho na vagina”.
Estação Carandiru, Dráuzio Varella
“Fica quieta, sorri e diz ‘muito obrigada’.” Esse é o lema que Cláudia repete para si quando gritam e acusam-na de ser uma mãe ruim. “A senhora tá reclamando do que? Eu não trouxe seu filho pra cadeia, a senhora que não soube educar ele.” Ouve as acusações em silêncio, com um sorriso doído. O agradecimento nunca fez tanto sentido: Cláudia, de fato, se sente obrigada. E é com um sorriso doloroso que agradece depois de ser barrada na revista.
Após a fila, todas as visitas são encaminhadas para um scanner, que realiza uma radiografia do corpo inteiro — até mesmo dos órgãos. Nessa etapa, é comum que as visitas sejam barradas sem justificativa aparente. Laudos “inconclusivos” e “corpo estranho” são só algumas das nomenclaturas abstratas que impedem o reencontro entre mãe e filho.
Corrente de sangue
Um dos objetos identificados como “corpo estranho” é o absorvente íntimo. As visitas que o portarem são instruídas a trocá-lo na frente de oficiais da polícia, em um procedimento relatado como invasivo, e muitas são impedidas de adentrar a unidade prisional. Com medo de serem barradas, muitas mulheres optam por não utilizá-los — correndo o risco de manchar a farda e verter ainda mais sangue sobre o terreno do presídio. A alternativa às roupas manchadas e à humilhação perante a polícia, é o uso não prescrito de remédios que atrasam a menstruação e são altamente prejudiciais à saúde da mulher, aumentando o risco de enfarto, trombose, derrame e câncer.
Algumas mulheres acusadas de portarem um corpo estranho relatam terem sido levadas para o pronto-socorro e submetidas a procedimentos de parto ou de lavagem estomacal, para expulsar o suposto corpo. Muitas vezes não encontram nada, e a mulher é conduzida de volta para a fila do presídio — mas já no final do horário de visita. Outras mulheres são mandadas para casa por terem engordado poucos quilos, sob alegação de não coincidir com o raio X anterior.
Mesmo com todos os defeitos, o scanner representa um avanço significativo nos métodos de revista do presídio. Antes de sua implementação em 2015, o procedimento era significativamente mais violento, como conta Cláudia: “você tirava a blusa bem devagarinho e colocava em cima da mesa. Tirava o sutiã, e colocava em cima da mesa. Depois a calça e a calcinha, e a funcionária analisava peça por peça.” Depois de completamente despida, a visita era obrigada a sentar em um banquinho e levantar a pelve, “para a funcionária olhar bem dentro de você.” Como procedimento final da Revista, as mulheres eram instruídas a virar de costas e abrir o ânus com as mãos, para garantir que não havia nenhum “corpo estranho”. Algumas mulheres relatam procedimentos semelhantes hoje em dia, mesmo com a implementação do scanner.
E não são só os corpos que são revistados, mas a comida também. Durante uma das visitas ao filho, Renata começou a conversar com uma mulher jovem, bonita, que aguardava na fila para ver o namorado. Orgulhosa, a moça lhe mostrou com cuidado o que trazia na sacola: um bolo caseiro decorado com a frase “Quer casar comigo?” em glacê. Segundo Renata, era um bolo lindo. Nervosa quanto à resposta do namorado, ela compartilhava seus anseios com as demais mulheres da fila, que logo se viram investidas na história de amor. Ao chegar na revista, porém, o bolo foi barrado e a mulher teve que deixá-lo do lado de fora. “Todo mundo passava e via aquele bolo ali no muro, derretendo debaixo do sol”, conta Renata, de coração partido.
As visitas têm medo de denunciar os abusos, pois os funcionários dos presídios podem suspender a carteirinha de visita ou mesmo punir os presos dentro da cadeia. [Imagem: Reprodução/Facebook/AMPARAR]
AMPARAR
Em 1998, Railda, Miria e Cida se conheceram na fila da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Febem) do Tatuapé, enquanto esperavam para visitar seus filhos. Unidas pela insatisfação, as três mães se juntaram e começaram a cobrar os dirigentes, exigindo melhores condições na Febem. “A gente não tinha medo, a gente ia pra dentro da Febem, a gente dormia dentro da Febem”, conta Cida. A atuação delas, que começou na Fundação, logo se expandiu para o sistema carcerário em geral: “a gente começou a perceber que os meninos que saíam da Febem ingressavam direto no sistema prisional”.
A partir de uma conversa casual na fila do presídio infantil, as três mulheres se uniram em uma arriscada jornada de denúncia. A Associação de Amigos e Familiares de Presos, AMPARAR, surge a partir desse encontro, com o objetivo de oferecer ajuda jurídica e psicológica a familiares e amigos de presos; sempre denunciando as condições desumanas do presídio. “Eu passei por isso. Na época, quando aconteceu com meu filho, eu não sabia de nada, eu não tinha apoio, não conhecia ninguém; todo mundo me criticava”, conta Cida. O AMPARAR ecoa a voz das milhares de mães e parentes de presos silenciadas por todo o Brasil e luta pelo direito mais primordial de todos: o direito à luta.
“Até sair aquele cheiro de cadeia… tem que tomar muito banho”
Renata