Por Lívia Uchoa (livia.uchoa@usp.br)
As novelas são essenciais para a cultura brasileira. Elas retratam a sociedade e estão presentes na rotina do povo, além de influenciarem a moda e o comércio, serem polêmicas e emocionarem os fãs. Grande parte do sucesso dessas produções brasileiras ocorre por conta dos personagens, em especial, os dramáticos e cruéis vilões, que conquistam o público sendo amados, ou odiados, mesmo depois do fim da novela.
Belinha (Arlete Montenegro) de Ambição (1991-1992), , Nazaré Tedesco (Adriana Esteves e Renata Sorrah) de Senhora do Destino , Carminha (Adriana Esteves) de Avenida Brasil (2012) e Félix (Mateus Solano) de Amor à Vida (2013-2014), são alguns dos vilões que deixaram sua marca nas telinhas brasileiras. Seus personagens mataram, roubaram e até abandonaram crianças no lixo. Muitas atitudes cruéis foram interpretadas por vilões na história das novelas.
A violência contra a primeira vilã da TV brasileira
A atriz Arlete Montenegro interpretou Belinha, a primeira vilã brasileira, na novela Ambição de Ivani Ribeiro. A personagem era irmã de Guida (Lolita Rodrigues), considerada uma mulher doce que sofria as maldades da vilã. As duas tinham interesse no mesmo homem (Tarcísio Meira), porém Belinha queria apenas o dinheiro dele, enquanto Guida estava apaixonada.
Em entrevista para o Canal Viva, Arlete conta que era tão odiada que recebia cartas sendo amaldiçoada pelos fãs da novela, além de uma “energia ruim” que a deixava doente. As pessoas não separavam a atuação da realidade, o que resultou em uma agressão contra a atriz no supermercado.
“O povo acreditava que a novela era verdade”, declarou Arlete em conversa com a TV Cultura. Originalmente, na versão mexicana Cuna de lobos (1986-1987), Belinha se chamava Catalina Creel (María Rubio) e foi considerada por muitos como uma das maiores vilãs do México. Em 2019, devido ao sucesso da novela, foi produzido um remake dela pela produtora mexicana Televisa.
A loucura de Nazaré confusa
“Ela é, de fato, cruel e sanguinária”, declarou o noveleiro Peroba em entrevista para a Jornalismo Júnior. Ele está se referindo a Nazaré Tedesco, a vilã de Senhora do Destino, novela produzida pela Rede Globo. Na trama, a personagem era uma prostituta que fingiu ser uma enfermeira para roubar a bebê Lindalva (Carolina Dieckmann), filha de Maria do Carmo (Susana Vieira).
A vilã acreditava que roubar a bebê seria sua oportunidade para mudar de vida. A novela mostra que seu plano de fingir uma gravidez deu certo, uma vez que Nazaré obriga seu amante, José Carlos (Tarcísio Meira), a se separar de sua esposa. Posteriormente, a vilã o assassina, e finge ser mãe biológica de Lindalva, agora registrada como Isabel.
Em entrevista para o Canal Viva, Renata Sorrah, que interpretou a Nazaré mais velha, contou que fazer a produção “era prazeroso”. Para a atriz, o enredo, feito por Aguinaldo Silva, foi tão bem escrito que a equipe como um todo se entregou para a novela, o que a fez ser tão bem criticada.
“A Renata fez uma vilã com muita alegria, foi muito divertida”, comentou a noveleira Ana Nubia Brito
Apesar das maldades cometidas ao longo da trama, Nazaré conquistou o público com suas frases marcantes e cenas cômicas. A personagem fez tanto sucesso com suas loucuras e deboches, que até hoje é lembrada por fãs na internet através de memes que viralizaram, como o da “Nazaré confusa”, imagem compartilhada no mundo todo. Em conversa para a Uol, Renata conta que se divertiu com tamanha repercussão do meme: “Ai, que engraçado, como rende essa personagem!”.
A redenção de Carminha
Há 11 anos, Nina (Débora Falabella), Tufão (Murilo Benício), Carminha, Lucinda (Vera Holtz) e outros personagens memoráveis de Avenida Brasil estreavam no horário nobre da Rede Globo. Escrita por João Emanuel Carneiro, a novela conta a história de Rita (Mel Maia), que após ser abandonada no lixão por sua madrasta, Carminha, jura vingança a ela. Enquanto a menina sofre com péssimas condições de vida, a vilã vive bem com sua família após ter pegado o dinheiro do ex-marido (Tony Ramos) e se casado por interesse com o jogador de futebol Tufão.
No decorrer da trama, Rita cresce e passa a se chamar Nina para conseguir se infiltrar na vida de Carminha disfarçada como empregada. O enredo cheio de vinganças e reviravoltas garantiu o sucesso nacional e internacional da novela. Para Ana Núbia, a vilã foi uma das principais razões que fizeram a novela explodir: “Acho que a novela fez sucesso porque, além dela [Adriana Esteves] ser uma ótima atriz, a Carminha foi excêntrica e divertida”.
“Tenho a sensação de que foi minha maior entrega”, contou Adriana Esteves para o Canal Viva. Nina consegue sua vingança, entretanto a raiva contra a vilã é tanta que a mocinha acaba tendo atitudes semelhantes ao que tanto criticava. A vingança contra Carminha resulta em uma redenção da vilã para o público, o que fez a novela ter uma das maiores reviravoltas da TV brasileira.
A vilã mentia e manipulava para continuar com sua “vida perfeita” de família tradicional da elite carioca, sendo até perdoada no final da obra. Mas o que fez a personagem ser lembrada até hoje foram os bordões e surtos cômicos que são memorizados por meio dos memes na internet. Esses memes trazem o humor para as atitudes da vilã, que possui qualidades e defeitos assim como os telespectadores.
Félix e o primeiro beijo gay da TV
Premiado nove vezes pela atuação, Mateus Solano interpretou seu primeiro vilão em Amor à Vida de Walcyr Carrasco. Félix protagonizou diversas crueldades na trama, como o abandono de sua própria sobrinha, recém-nascida, em uma caçamba de lixo.
A tentativa de se livrar da bebê foi resultado da competição que o personagem tinha com sua irmã Paloma (Paolla Oliveira) pela herança do pai (Antônio Fagundes). A trama mostra a ambição do vilão que busca liderar o hospital da família, o que não é bem visto pelo pai, que expõe sua preferência por Paloma.
Apesar da intensa rivalidade com sua irmã, o personagem arrancava boas risadas dos telespectadores: “Amei o Félix, apesar da alcunha de maldades, ele me fez rir muito”, declarou Maria Cicera Oliveira, que acompanhou a novela. Esse alívio cômico, presente no Félix e em tantos outros vilões, faz com que o público tenha acesso a um personagem que oscila entre a simples dualidade do bem e do mal, de forma que suas atitudes não são tão condenadas pelo telespectador.
“Ele era um vilão muito divertido, que no final virou mocinho”, disse Ana Nubia. Durante a história, a crueldade contra sua sobrinha foi revelada, o que acarretou em sua expulsão da família. Sem alternativas, o ex-diretor do hospital se redimiu e foi vender hot-dog na 25 de março, perdendo o luxo que ele tanto queria.
Além das cenas inesquecíveis vendendo o “hot-dog do Félix”, o vilão viveu um romance com o chef de cozinha Niko (Thiago Fragoso), que o ajudou a ser uma pessoa melhor. Juntos, eles protagonizaram o primeiro beijo gay no horário nobre da TV brasileira. Em depoimento ao podcast Flow, Mateus afirma que o beijo aconteceu por “exigência do Brasil”. O ator também fala, em entrevista para o jornal Extra, que o personagem foi essencial para que o público revisse seus preconceitos, já que até mesmo os conservadores começaram a apoiar o casal, o que revela o impacto positivo desses personagens na construção da opinião do público.
As atitudes e piadas dos vilões se relacionam com a época em que as novelas estão sendo transmitidas. Para Mateus, seu personagem “envelheceu mal” e que provavelmente ele seria cancelado se a novela fosse atual. Esse envelhecimento dos vilões mostra que apesar do alívio cômico ser essencial para os personagens, algumas piadas e bordões mascaram preconceitos enraizados no período.
A simples dualidade dos vilões
“As personagens mais interessantes tem mais complexidade” — Sérgio de Carvalho, dramaturgo e pesquisador teatral
Para Ana Nubia as novelas não tem graça sem os vilões, pois eles mudam o rumo da história dos “mocinhos” e de toda a trama. Esses personagens, considerados memoráveis pelos fãs, são carregados de bordões sarcásticos e comédia, o que conquista o público apesar das maldades cometidas. Essa mistura de sentimentos, gerada no telespectador, é o que constrói um bom vilão.
Segundo Sérgio de Carvalho, dramaturgo e pesquisador teatral, o processo de construção de um personagem para novelas é muito rápido, tendo em vista que o tempo para preparação e leitura do roteiro é muito curto. Também por conta da dinamicidade da TV, os atores, muitas vezes, acabam ficando sozinhos na preparação do papel, o que resulta no desenvolvimento de características isoladas do personagem.
Para o dramaturgo, interpretar um vilão em uma novela tem a mesma dificuldade de um “mocinho”, isso porque as narrativas são “simplistas” e baseadas em uma dualidade que não condizem com a realidade. “Isso é uma herança do melodrama, que cria tipos moralmente positivos ou negativos”, comentou Sérgio. Esses estereótipos fazem com que os personagens das novelas brasileiras sejam regidos pelo caráter, o que não representa a complexidade do ser humano e as pressões sociais que sofrem.