Por Samuel Amaral (amaral.samuel@usp.br)
O governo do Estado de São Paulo anunciou que a partir de 2024 deve se concretizar uma das principais promessas de campanha de Tarcísio: a construção da nova sede do poder estadual. Localizada atualmente no bairro do Morumbi, ela será transferida para os Campos Elíseos, no centro da capital, bairro onde se encontram os principais fluxos de adictos da Cracolândia.
De acordo com o poder estadual, os principais objetivos da mudança são o aumento da segurança e a restauração do bairro. Isso será feito por meio do incremento do número de pessoas em deslocamento e o aquecimento da economia da região, principalmente pelo crescimento do público consumidor. No local, se estabelecerão diversos órgãos governamentais, sendo 28 secretarias e 36 autarquias do estado, onde 22 mil funcionários trabalhariam.
Para a execução do projeto, foi realizado um concurso no qual 44 escritórios de arquitetura enviaram propostas. O governo legou ao Instituto de Arquitetos do Brasil – Regional de São Paulo (IAB-SP) a função de fiscal do processo seletivo, o que o responsabilizou pela avaliação e seleção do melhor plano.
O escritório Ópera 4 Arquitetura foi o selecionado, com um planejamento sob a assinatura do arquiteto Pablo Chakur. A nova esplanada terá 13 torres de até 90 metros de altura, sem muros e com fachada ativa, tendo comércios e áreas de lazer no térreo. Segundo Chakur, o foco é no desfrutar dos espaços, através da presença de áreas verdes para a fruição pública, além da revitalização da região por meio da presença de mais pessoas transitando na Praça Princesa Isabel.
A proposta selecionada recebeu R$ 850 mil e o investimento para sua execução é estimado em R$ 4 bilhões. A licitação para contratar a empresa que terá a responsabilidade pela construção deverá ocorrer ainda neste ano. As obras serão feitas por meio de uma parceria público-privada (PPP) e a ganhadora terá o direito de explorar o local delimitado pelos próximos 30 anos.
A área construída será de 250 mil m² e os prédios serão divididos em quatro quadras ao longo da avenida Rio Branco. As construções devem ser iniciadas em março de 2025, com a previsão de conclusão para 2028, podendo ser estendida até 2029.
O que ocorrerá aos moradores?
Por meio da assinatura de uma Declaração de Utilidade Pública (DUP), Tarcísio deu ao poder público o direito de desapropriar a área em torno do Palácio dos Campos Elíseos e a transformou em zona de interesse público, para que possa somente ser utilizada no projeto da nova sede administrativa. Para a realização da proposta, estima-se que ocorrerá a desapropriação de 230 imóveis nos quarteirões que deverão passar por intervenções.
Em coletiva realizada no dia 27 de março, o diretor-presidente da Companhia Paulista de Parcerias, Edgard Benozatti, disse que os investimentos para desapossar essas propriedades devem chegar aos R$ 500 milhões.
Hoje, habitam cerca de 800 pessoas no local, entre inquilinos e proprietários, segundo o Censo populacional de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Parte desse grupo mora em regiões encortiçadas.
Para a professora de Planejamento Urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Isadora Guerreiro, a rede de cortiços na região é uma das únicas possibilidades dessas pessoas viverem no centro e estarem próximas de equipamentos de saúde e emprego. A sua retirada vai contra delimitações passadas e projetos em andamento.
No Plano Diretor de 2014, parte da área que será demolida dentro das cinco quadras está classificada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) nos graus 3 e 5. Isso significa que devem ser destinadas prioritariamente à permanência da população moradora, além disso, o poder público tem o dever de respeitar processos de democracia participativa estabelecidos nas leis urbanas antes de qualquer intervenção sobre esses espaços.
“A população moradora que está lá tem que ter uma opção habitacional alternativa na própria região. Isso é um princípio.”
Nabil Bonduki, professor de projeto urbano da USP
Dentro da delimitação que será destruída para o início das construções, há também a presença de um conjunto habitacional com investimentos de R$ 26,1 milhões do programa municipal Pode Entrar Entidades. Segundo a Agência Brasil, o edifício tem como objetivo atender 131 famílias com renda de até três salários mínimos, tendo sido erguido em parceria com a União das Lutas de Cortiços e Moradia e está atualmente com 17 andares, o que representa 42% da obra concluída. Segundo a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo, ele deve ser entregue até dezembro deste ano.
Sobre o assunto, o secretário estadual de Projetos Estratégicos e coordenador do plano de PPP do Polo Administrativo Campos Elíseos, Guilherme Afif Domingos, afirmou que o empreendimento residencial pode ser incorporado à proposta da nova sede do poder estadual, o que afasta a chance de demolição. Contudo, nenhuma providência oficial foi tomada para concretizar o que foi afirmado.
Como forma de compensação, o governo do estado anunciou por meio de uma coletiva em abril a construção de 6 mil moradias na região central, sendo 55% para pessoas de baixa renda. O projeto tem R$2,4 bilhões em investimento e será realizado por meio de uma PPP. Em especial para os desalojados, está prevista a construção de 1,8 mil moradias populares no entorno da “Esplanada Princesa Isabel”, nome do novo pólo administrativo do poder estadual.
A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) tem entrado em contato com os moradores da região desde junho e abriu um plantão presencial para esclarecer dúvidas sobre o plano. Para dezembro, está marcada a realização de uma consulta prévia em audiências públicas com o fim de incluir a participação da sociedade na discussão do projeto, o que poderá acarretar em mudanças nas estruturas e na configuração da nova sede.
Mudanças de serviços já estabelecidos na região
Para a construção da nova sede, também está previsto o remanejamento do Terminal Princesa Isabel. Segundo Afif, um dos maiores terminais do centro deve ser realocado ao lado da Estação da Luz, saindo assim das proximidades da praça.
Atualmente, transpassam por ali 17 linhas de ônibus ligando o centro de São Paulo às regiões periféricas. De acordo com a prefeitura paulista, cerca de 212.420 passageiros deslocam-se por lá mensalmente e transitam sobre um espaço de 10.603 m².
Há uma preocupação em relação aos impactos que essa decisão terá na mobilidade urbana do centro. “A retirada do terminal Princesa Isabel é uma coisa incongruente. Se você leva mais pessoas para um lugar e você tira um equipamento importante do transporte público, é criado um problema urbano gigantesco”, comenta Guerreiro.
O Museu das Favelas também será levado a um novo local. Desde agosto, a instituição fechou suas portas no antigo endereço, o Palácio dos Campos Elíseos, e passará a integrar o centro histórico da cidade de São Paulo, onde trocará de lugar com a sede da Secretaria Estadual da Justiça e Cidadania no Largo do Pateo do Collegio. A Justiça, por sua vez, já está presente no palácio desde setembro e com seus 200 funcionários trabalhando.
Segundo a comunicação oficial da instituição, a reabertura está prevista para novembro de 2024, quando o Museu comemora dois anos de operação. O local já recebeu 90 mil visitantes, com 12 exposições de arte periféricas e de favelas, além de mais de 110 ações como palestras, formações, cursos e propagação de lançamentos de livros de artistas do circuito periférico.
A expectativa do poder público
De acordo com o governador Tarcísio de Freitas, o plano aposta em uma revitalização paulatina, que irá despertar o interesse da iniciativa privada para a região. No outro lado, o descongestionamento do Morumbi e a aproximação da gestão estadual da população paulista, por meio de uma sede de arquitetura integrada, são formas de resolver os problemas gerados pela estrutura do Palácio dos Bandeirantes. Contudo, segundo Afif, a moradia do governador, a Casa Civil e Militar e a comunicação continuarão na localização atual.
Para o geógrafo José Donizete Cazzolato, pesquisador associado ao Centro de Estudos da Metrópole, a sede do governo é percebida pela população como um ícone, algo notório para gerar pertencimento a um lugar. “Ter uma sede administrativa numa região central mais ou menos unificada, que é identificada como como se fosse o próprio Estado ali na sua frente é mais positivo do que ter um monte de prédio espalhado, porque aí essa percepção diminui”, explica.
“Tudo indica que vai ser um grande passo que a cidade vai dar no sentido de se recuperar.”
José Donizete, geógrafo
Em sua análise, a construção da nova esplanada é um passo para combater um dos principais problemas das grandes metrópoles mundo afora: a degradação de lugares por causa da ausência do Estado. Segundo ele, a sensação de que um local é governado é fundamental para a manutenção da ordem. O acesso a serviços de forma funcional seria uma das maneiras de constatação da presença do poder público em determinada região, o que está em falta no centro da capital paulista.
O atual Campos Elíseos se enquadraria no conceito geográfico de brownfield, que designa regiões antes utilizadas para fins industriais ou comerciais, que agora estão abandonadas e que são de difícil revitalização. A solução, de acordo com Donizete, está na integração das instâncias municipal, estadual e federal, e na continuidade administrativa para que o projeto seja concluído e não sofra com entraves políticos relacionados à sucessão de poder.
Revitalização ou esvaziamento do centro?
Um dos principais pontos de discussão do projeto é o seu impacto na região conhecida como Cracolândia, um espaço de concentração de adictos no centro da capital paulista. De acordo com informações do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da FAU-USP (LabCidade), após a última dispersão em 2022, que ocorreu devido a uma megaoperação policial, houve uma fragmentação do principal fluxo de usuários de drogas. Dados da Secretaria Municipal de Segurança Urbana constataram que não há mais uma, mas sim 72 “Cracolândias” espalhadas por São Paulo.
Segundo o painel de monitoramento das cenas de uso de drogas, produzido pela Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU), cerca de 400 pessoas circulam pelas zonas de aglomeração em diferentes períodos do dia. “O lugar de maior concentração de usuários, ele vai sendo mudado na região central de acordo também com os planos do governo de revitalização e da frente imobiliária nesse local”, relata Guerreiro.
Para o professor de Projeto Urbano da FAU-USP, Nabil Bonduki, o resultado da implementação da nova sede não resolverá o problema. “Se você não enfrentar as raízes do problema da Cracolândia, não vai ser com intervenções urbanas que você vai acabar com ela. Pode eventualmente deslocá-la daquele lugar, mas não eliminá-la”, afirma.
Os efeitos da presença da nova sede podem recair sobre a população moradora de forma a gerar a gentrificação do bairro. Segundo o urbanista, o novo complexo gerará uma valorização acelerada na área, o que resultará no aumento do valor dos imóveis no entorno, provocando a saída das pessoas que habitam atualmente o local em decorrência dos aluguéis mais altos.
“Essa ideia de revitalização é uma ideia muito problemática, porque fica parecendo que é um lugar que não tem vida e que vai ser levado vida a esse lugar.”
Isadora Guerreiro, professora de Planejamento Urbano
De acordo com Guerreiro, como resultado indireto, a pressão exercida pelos novos fluxos de usuários pode gerar mercados paralelos influentes na região. Por exemplo, a contratação de guardas municipais para fazer a segurança privada de comerciantes dos bairros ao redor.
Para além disso, em documento oficial, o LabCidade trouxe o fato de que a maior parte das secretarias, empresas e autarquias estaduais já se encontram no centro. De 54 órgãos, 27 estão localizados na área central e 21 destes estão concentrados nos distritos da República e da Sé, com forte presença no triângulo histórico.
Esses prédios administrativos estão, em sua maioria, em espaços alugados pelo governo. Para Guerreiro, caso esses edifícios sejam esvaziados, pode haver um aumento do problema crônico de imóveis sem utilidade no centro de São Paulo.
De acordo com o professor Nabil Bonduki, pode haver um impacto negativo na região por causa do abandono dos antigos prédios administrativos. “Porque, se os edifícios que hoje são ocupados pelas secretarias que estão no centro saírem de lá, nós vamos ter um problema seríssimo de maior ociosidade na área central”, constata.