Por Clara Zamboni (clara.candiotto@usp.br)
Megalópolis (2024) encerrou a 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e chegou ao grande público em 31 de outubro. Dirigido por Francis Ford Coppola e estrelado por Adam Driver, a obra traz um conflito entre poderosos que abala os valores de um império cultural em decadência. Criativo e ousado, o filme impressiona pelas escolhas estéticas e performances do elenco, mas cai, sem perceber, em narrativas que espelham heróis em figuras políticas.
Uma das reflexões que protagonizam o filme é o questionamento à desigualdade e à estagnação cultural presentes na sociedade. Na trama, Nova York se transforma em Nova Roma, uma representação de um governo que, mesmo em meio às dívidas e à desigualdade social, reúne a alta sociedade em celebrações extravagantes. Além disso, pouco a pouco, os ícones dessa sociedade se mostram vazios.
Em meio à decadência e à catástrofe que se aproxima, Cesar Catilina (Adam Driver), propõe um ousado projeto de urbanização. O arquiteto, membro da Autoridade de Design da metrópole, guarda em seu escritório um prêmio Nobel pela descoberta do Megalon, componente que pode servir de matéria-prima para a constituição de uma nova cidade. Além disso, o protagonista tem um dom: a capacidade de parar o tempo.
“Se nossas mentes podem criar deuses, porque não aplicar esse poder diretamente?”
Cesar Catilina (personagem de Megalópolis)
A cidade de Megalópolis, idealizada por Catilina, é uma utopia em que sustentabilidade e futurismo se integram em prol do bem coletivo. No entanto, esse projeto levanta objeções de seu rival político, o prefeito Franklin Cicero (Giancarlo Esposito). A genialidade do arquiteto também causa inveja em seu primo, Clodio (Shia LaBeouf), somada ao sentimento de rivalidade por parte deste pela herança de seu tio Hamilton Crassus III (John Voight), dono dos bancos da cidade. A excêntrica e ambiciosa jornalista Wow Platinum (Aubrey Plaza) está disposta a se inserir na família de Cesar para escalar socialmente e completa o conjunto de rivais do protagonista.
Catilina se encontra sob os holofotes: na mira dos políticos, da elite e da mídia, que atiram para todos os lados, buscando destruir sua imagem. Portanto, cabe a ele lutar pela consolidação de sua ideia, ao lado de Julia Cicero (Nathalie Emmanuel), sua companheira de trabalho e par romântico.
A estética do filme abraça a ficção. Cenas com estátuas que se movem, viagens simbólicas ao passado, visões do futuro utópico na mente do inventor e caminhadas pelas alturas de Nova Roma estão sempre presentes. Um momento que evidencia as brincadeiras marcantes com o visual é o sonho do prefeito, que visualiza uma mão humana apanhando a lua.
A atuação de Adam Driver na pele do conflituoso protagonista também merece reconhecimento. A expressão fechada que marca o personagem, sempre trajado de preto, é uma das responsáveis pela construção da atmosfera misteriosa e intocável que o rodeia.
Sua performance se destaca na cena da festa de casamento de seu tio com um espetáculo de lutadores e artistas. Por trás da celebração, definida como “Pão e Circo” pelos blocos que dividem o filme, César encontra-se sob o efeito de drogas e álcool, relembrando seu discurso no prêmio Nobel. Assim, Driver dá profundidade ao protagonista por meio de uma performance que alterna entre cortes do espetáculo, confusão mental e os poderes de Catilina.
A aproximação com a linguagem teatral também está presente em algumas cenas da obra. Em uma das primeiras cenas, um dos aliados do prefeito Franklin Cicero, após desprezar o plano de Cesar, repete as palavras “concreto” e “ferro”, ao final de cada frase. O uso estético da linguagem enfatiza a reprodução do discurso que associa o progresso da civilização à rigidez da urbanização. Além disso, a busca pelo efeito na escolha de palavras do personagem torna possível imaginar a cena como uma performance de palco.
Dessa forma, é possível perceber a variedade técnica da produção, que apesar de utilizar de efeitos gráficos computadorizados para construir imagens futuristas, enriquece as performances dos atores com toques teatrais.
Por outro lado, o filme peca pelo excesso. A mistura entre as referências simbólicas ao império romano, os poderes sobre-humanos do protagonista e as intrigas políticas que se entrelaçam entre os personagens sobrecarregam a progressão do filme.
Isso fica claro no arco de Vesta Sweetwater (Grace Vanderwaal), personagem que une a simbologia da figura mitológica associada à castidade e pureza feminina ao imaginário coletivo associado às estrelas pop femininas. Após ter sua imagem prejudicada, a jovem estrela entra em sua fase rebelde e rock n’roll, jornada comumente observada em grandes nomes do pop americano. Embora os símbolos estejam relacionados, a abundância de referências torna a proposta artificial.
Para além dos detalhes e tropeços, a construção da narrativa de Megalópolis levanta dúvidas ao espelhar heróis em figuras políticas. O protagonista, apesar dos mistérios e dos rumores que o rodeiam, mostra-se como um revolucionário, voltado à busca pelo bem da comunidade através de seu projeto urbano. Entretanto, em essência, ele é membro de uma família de banqueiros, parte do grupo que mais se favorece de privilégios em uma sociedade desigual. Desse modo, o altruísmo do protagonista pode ser percebido como ingenuidade da narrativa, que constrói um ‘revolucionário de elite’.
O filme está em cartaz nos cinemas. Confira o trailer:
*Imagem de capa: Reprodução/YouTube/ Lionsgate Movies