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Observatório | Eleição na Bolívia: os reflexos da onda conservadora na América Latina

Com dois candidatos da direita no segundo turno, o país enfrenta um cenário de insegurança política

Por Letícia Oliveira Menezes (leticiaomenezes@usp.br) e Gustavo Santos (gustalima1306@usp.br

A Bolívia atravessou um novo pleito presidencial no domingo do dia 17, com resultados históricos. Após quase 20 anos de comando do partido Movimento ao Socialismo (MAS), o novo presidente será um membro da oposição. Os candidatos Rodrigo Paz (PDC) e o ex-presidente Jorge Quiroga (Alianza Libre), ambos conservadores, obtiveram maior porcentagem de votos e se enfrentarão em uma nova disputa no 2º turno, marcado para o dia 19 de outubro. A divisão da esquerda, a desconfiança nas instituições democráticas e as expectativas com a mudança de governo também são destaque no debate público.

A eleição e seus candidatos

Com oito candidatos aptos em um Estado que reconhece e integra múltiplas nacionalidades e povos indígenas, os quase oito milhões de eleitores bolivianos compareceram aos locais de votação. O voto na Bolívia é impresso e, por isso,  o processo de apuração é contabilizado manualmente .Representante do Partido Democrata Cristão (PDC), o senador de centro-direita Rodrigo Paz liderou o primeiro turno das eleições com 32,1% dos votos. Entre suas propostas, o candidato defende como política de governo o “capitalismo para todos”, em que propõe reformas institucionais como a descentralização orçamentária de recursos públicos, diminuição de impostos e mudanças no judiciário. Já na economia, Paz defende a descentralização do Governo Federal, através do modelo “50-50”, em que 50% dos fundos públicos seriam administrados pelos governos regionais. O uso de criptomoedas para limitar a inflação, o fechamento de estatais e o discurso de combate à corrupção são outras propostas da sua candidatura.

Já o candidato Jorge “Tuto” Quiroga, do partido Aliança pela Liberdade e Democracia, obteve 26,8% dos votos. Conhecido na política nacional, foi vice de Hugo Banzer e assumiu a presidência da Bolívia, entre 2001 e 2002, devido a problemas de saúde de Banzer. Na pauta econômica, o político promete utilizar de sua experiência para estabilizar o  país, através de um extenso corte nos gastos públicos, semelhante ao plano motosserra de Javier Milei, na Argentina. Quiroga também pretende estreitar relações com o Fundo Monetário Internacional (FMI), realizar maior abertura comercial à iniciativa privada, o que estreita as relações com os Estados Unidos e a China, e promover a modernização no país. Já na questão social, Quiroga promete criar 750 mil empregos durante seus cinco anos de mandato.

Para Roberto Georg Uebel, professor de relações internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o grande desafio para os candidatos dessa eleição “será equilibrar esse giro econômico com demandas sociais muito fortes”. Ele comenta que a Bolívia atravessa um cenário bastante desafiador em uma eleição inédita, com uma esquerda fragmentada e um ex-presidente foragido.

Mais de 50% dos votos do primeiro turno se concentraram em 
Jorge Quiroga e Rodrigo Paz  [Imagem: Reprodução/X: @FEscrutinio]

O histórico Boliviano e a instabilidade política

Para entender os acontecimentos recentes na política nacional do país, é necessário dar alguns passos atrás em sua história. Na década de 1950, 80% da população boliviana vivia em zonas rurais, em um sistema marcado pela predominância latifundiária e exploração de operários. Esta organização política começou a pavimentar o que viria a ser a Revolução Boliviana de 1952, momento em que reformas como a distribuição de terras, o direito ao acesso à educação, o voto universal e a nacionalização das minas foram implementadas. A estagnação de algumas pautas frustraram os setores mais populares, já que formas de exclusão do acesso à saúde, por exemplo, mantiveram-se. Em entrevista à Jornalismo Júnior, Roberto Aguilar Gomes, ex-ministro da educação na Bolívia, destacou: “a partir de 1985, os próprios representantes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), que dirigiram a Revolução de 1952, foram os impulsores do neoliberalismo. Este processo afetou e empobreceu profundamente o povo boliviano, tentou privatizar a educação e privatizou a formação docente”.

A união dos partidos MNR, do Partido da Esquerda Revolucionária (PIR) e Partido Operário Revolucionário (POR) foi decisiva para a tomada de poder dos revolucionários em 1952 [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

“O irônico da história é que aqueles que impulsionaram a Revolução de 1952, conduziram a neoliberalização da educação e de toda a sociedade e o Estado.”
Roberto Aguilar Gomes, ex-ministro boliviano

O início deste século foi marcado por lutas e resistências —como a Guerra da Água e do Gás, contrárias à privatização desses itens. Em 2006, Evo Morales se apresenta como candidato e obtém 56% dos votos. A chamada Revolução Democrática e Cultural começa e, enquanto a crise de 2009 assola alguns países latino-americanos, a Bolívia aparece como uma exceção do quadro. 

Em 2019, depois de 13 anos no poder, Morales e seu vice renunciam ao cargo, cedendo à pressões populares. No ano seguinte, as eleições bolivianas confirmaram Luiz Arce, ex-ministro de Morales, como presidente do país, alinhado aos ideais da esquerda nacional. A partir desse momento, observa-se uma fragmentação do MAS (Movimento ao Socialismo): Arce e Morales rompem relações e se tornam alvos de críticas de antigos apoiadores. Essa rusga interna abriu oportunidades para o fortalecimento da oposição.

Direita boliviana: o reflexo da crise

A crise econômica, a influência internacional, os discursos extremistas e o voto nulo são alguns tópicos que explicam a fragmentação da esquerda boliviana.  Roberto Uebel destaca que a articulação do movimento conservador na Bolívia ocorre, sobretudo, devido à instabilidade econômica do país no pós pandemia. A escassez de dólares, a dependência do gás natural, crises com hidrocarbonetos e a inflação também são tópicos da economia que aumentaram a insatisfação popular.

O professor também cita que a disputa entre Arce e Evo Morales contribuiu para o sentimento de que o Estado já não entrega estabilidade econômica: “as incertezas democráticas vêm do excesso de personalismo e da tentativa de judicializar a política, o que gera uma sensação de instabilidade permanente”.

A  professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Carolina Silva aponta que a Bolívia também está inserida na chamada “Maré Rosa e Maré Azul” da América Latina —fenômeno em que os governos são influenciados por “ondas” de esquerda e direita. Para ela, enquanto a direita global se radicalizava, a esquerda se resignou à defesa da democracia, “sem oferecer respostas concretas para problemas da população”, causando seu enfraquecimento.

Francisco Prandi, graduado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), também associa a ascensão da direita boliviana com o reflexo do crescimento de discursos de ódio nas big-techs. Nas redes sociais, o debate público é marcado por falas e comentários de teor racista, anti-indígena e anti-camponês que associam o governo socialista e Evo Morales ao narcotráfico. O ex-presidente se encontra foragido em uma floresta na Bolívia, acusado de tráfico de pessoas e estupro.

Evo Morales, o primeiro presidente indígena boliviano, discursando em conferência climática [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Já Roberto Aguilar acredita que a ‘onda conservadora’ da Bolívia precisa ser observada com mais calma e menos alarmismo, uma vez que “o voto nulo foi o triunfante, ou seja, acima dos candidatos conservadores, […] o voto nulo tem presença nacional”. A soma entre os votos nulos (13,6%), brancos (8,1%) e indecisos (12,4%) ultrapassam os votos de Rodrigo Paz, o que indica a influência ainda  de Evo Morales nas eleições: , ex-presidente realizou boicotes contra Arce e a favor do voto nulo. 

Aguilar também comenta a possibilidade do “voto de descarte”, em que a população teria se concentrado no candidato aparentemente menos extremista e conhecido. “‘Quem não votar?’, no final, o menos conhecido era Rodrigo Paz”, já que as pesquisas pré-presidenciais indicavam, inicialmente, Samuel Doria Medina como favorito ao primeiro turno.

Como fica a relação com o Brasil?

A política externa boliviana tem as riquezas energéticas e minerais como pautas centrais. Com a ascensão de um governo de direita, mudanças podem ocorrer na maneira de exploração desses recursos, já que tanto Rodrigo Paz quanto Jorge Quiroga abordam privatizações como possíveis meios para melhora econômica nacional. Dessa forma, haveria uma aproximação com os Estados Unidos e União Europeia, mas sem deixar de existir relações com países como China e Rússia, que contrastam em questões econômicas e políticas do governo que irá subir ao poder, porém são importantes compradores do minério.

“A Bolívia tem importância geopolítica maior do que parece à primeira vista”, comenta Uebel. Bolívia, Chile e Argentina compõem, juntos, o “triângulo do lítio”. A internacionalista Carolina também destaca que  o lítio é um recurso estratégico para a economia boliviana, já que, além de sua importância para a transição energética, o país obtém uma das maiores reservas desse minério no planeta. Para ambos os professores, as relações com o Brasil tendem a permanecer pragmáticas. “Desses praticamente 20 anos de MAS no poder, a política externa foi caracterizada por fortalecer parcerias na própria América do Sul”, explica Carolina. Assim, a mudança de governo tende a não interferir no bom relacionamento entre os dois países, mas isso “vai depender de como as duas partes vão querer gerenciar o relacionamento bilateral” finaliza a professora. 

Vista aérea da mina de lítio no Salar de Uyuni, o maior deserto de sal do mundo, na Bolívia [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

A questão migratória também é um ponto de debate com a mudança de governo. A imigração para o Brasil é um fenômeno que ganhou força a partir dos anos 1990, devido ao processo de urbanização e crescimento populacional boliviano. Muitos imigrantes vieram ao Brasil em busca de melhores oportunidades, com destaque à busca pelo setor têxtil, em São Paulo – em 2019, os bolivianos eram os principais imigrantes da cidade. O sociólogo Francisco Prandi revela que as diferentes realidades de um imigrante devem ser levadas em consideração, pois a situação de “um médico boliviano é, evidentemente, muito diferente de alguém que venha e talvez tenha uma vaga para trabalhar em uma oficina de costura”.

A tendência, com governos neoliberais no poder, é de que “os Estados se desresponsabilizam por esse tipo de questão, porque é parte do corpo doutrinário do próprio neoliberalismo”, comentou o sociólogo. A professora Carolina comenta que, curiosamente, existe um “sonho brasileiro” entre os demais países da América Latina, uma vez que o Brasil se apresenta com uma moeda mais estável e com mais oportunidades de emprego. Para ela, a crise econômica boliviana é o fator “mais decisivo para o aumento ou não da vinda dos bolivianos para o Brasil”.

Imagem de capa: Reprodução/YouTube

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