Por Leticia Yamakami (leticiayamakami@usp.br)
Quando Luis (Sergi López) e seu filho Esteban (Bruno Núñez) saem à procura de sua filha e irmã, respectivamente, pelos desertos do Marrocos, recebem um alerta de um grupo de viajantes: a ideia não vale a pena. A incessável busca, no entanto, os cega, levando-os para o interior árido da região, onde as estradas, a alimentação e o combustível são praticamente inacessíveis.
Esse é o enredo de Sirāt (2025), exibido durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro. Antes da chegada às telonas brasileiras, a produção passou por um circuito ilustre de festivais internacionais. Em Cannes, ganhou o Prêmio do Júri, que indica o segundo melhor filme do festival, decidido pelo mesmo júri que escolhe qual ganhará a Palma de Ouro, o prêmio mais importante.
Acostumado a tratar de temas relacionados à degradação humana — como o fez em seu penúltimo longa-metragem, O Que Arde (2019) —, o franco-espanhol Oliver Laxe aposta todas as suas fichas ao atrelar essa característica à sensorialidade. No prólogo, o diretor dita o tom da narrativa de imediato. Por meio de um letreiro, o espectador é informado sobre o que significa “Sirāt” no Alcorão: uma ponte purgatorial que separa o paraíso do inferno.
Essa é a alegoria que permeia desde o início até o fim do filme. No começo, a ideia parece estar centralizada na dupla Luis e Esteban, cuja familiar, Mariana (atriz não creditada), sumiu há 5 meses em uma das raves que acontecem no deserto marroquino. Não se sabe ao certo há quanto tempo a procura começou, apenas que os protagonistas estão instalados em uma van no meio de uma dessas festas. Eles entregam panfletos sobre o desaparecimento da menina para os frequentadores, que, por sua vez, parecem estar no seu paraíso particular.
A experiência sensorial ganha espaço ainda antes disso, quando os créditos iniciais aparecem sobre personagens montando paredes de som e se aglomerando envoltos pela trilha sonora eletrônica. A musicalidade aqui é melhor projetada e se faz mais presente do que em outras obras da Mostra que têm esse aspecto como pilar principal — como DJ Ahmet (2025), da Macedônia do Norte.
O som é bem trabalhado e foge da obviedade. Ele é estrondoso nos momentos corretos, como quando a câmera se encontra no emaranhado de techneiros dançando ou quando as reações dos personagens são capturadas após algum acontecimento chocante. Os clímax, por outro lado, são atingidos de forma inesperada, já que Laxe sabe usar do silêncio ou da estabilidade sonora para surpreender.

No entanto, o que guia a história é a viagem. Luis e Esteban, como último tiro de esperança, seguem uma turma de 6 amigos — ou membros de uma família, como preferem se referir a si mesmos — que partem em direção a outra festa, já que a em que estavam é encerrada pelas forças armadas. O interesse de Sirāt nunca é explicitar o contexto sociopolítico da região, apenas pincelar a ideia de que o governo marroquino decreta estado de emergência, em que somente cidadãos europeus têm direito à escolta.
O verdadeiro interesse é inquietar, sejam os personagens ou o público. Ele começa como uma caça à filha perdida, mas logo se torna um road movie a la Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015). Conforme avança, vira um filme de catástrofe regado ao sadismo. A transição entre gêneros é instigante, uma vez que aumenta o fator da imprevisibilidade.
Devido às tragédias, a interpretação automática, todavia, é que Laxe castiga os viajantes pelo seu hedonismo, fazendo-os atravessar do céu ao inferno durante a viagem pelo deserto. Sob esse prisma, há quem defenda que a obra é moralista e até conservadora, pois faz os personagens pagarem pelos seus pecados: viver diferentemente do que é considerado ser um adulto responsável, festejar e usar drogas.
O cinema tem a habilidade, mas não o dever de conscientizar. Sendo o moralismo fato ou não, a violência presente pode ser apenas uma escolha narrativa, uma brincadeira de causa e consequência. Isso porque o retrato das raves e de seus frequentadores não é um mero estereótipo.
Laxe não recai sobre caricaturas fáceis — principalmente por parecer conhecer ou fazer parte da comunidade — e insere momentos característicos da filosofia PLUR (sigla para Paz, Amor, Unidade e Respeito, em tradução livre do inglês), seguida comumente por esses grupos. Com isso, os personagens convencem e marcam uns aos outros e quem assiste.
A questão é até que ponto o sadismo está ali por sua importância, e não para mascarar que não há uma história interessante a ser contada. Não há vontade de desenvolver a conexão entre os membros da família, a ligação de Mariana com as festas eletrônicas ou como a ausência dela impactou o pai e o irmão, por exemplo. A trama inicial parece ser só um pontapé para levar os protagonistas a uma armadilha e chocar o espectador.

Esse artifício não faz do longa odioso. É algo mais no campo do questionável. É o choque pelo choque, um provocador imediato. Fato é que o filme avança gradativamente, sem a certeza de com qual intenção, e atinge extremos como poucos contemporâneos. Sirāt é uma das experiências mais desconcertantes do último ano.
A obra de Laxe condena. Condena o destino de seus protagonistas e o do público, que não consegue sair indiferente após a sessão. Ela faz alarde pela revolta com a espetacularização do sofrimento, pelos momentos inesperados ou pela curiosidade em relação ao sadismo. Grande parte do seu valor está nisso, o que não é inovador, mas também não é condenável.

Esse filme fez parte da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no começo do texto.
Confira o trailer:
*Imagem de Capa: Reprodução/The Movie Database
