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Por dentro do Festival de Cannes

Sempre que se fala do Festival de Cannes, em quase qualquer contexto, não é preciso ser especialista para supor tratar-se de um evento importante. Seja pelas notícias na TV, comentários nas redes sociais ou discussões na roda de amigos, quando o assunto é cinema, hora ou outra ele vem à tona. É comum, por exemplo, …

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Sempre que se fala do Festival de Cannes, em quase qualquer contexto, não é preciso ser especialista para supor tratar-se de um evento importante. Seja pelas notícias na TV, comentários nas redes sociais ou discussões na roda de amigos, quando o assunto é cinema, hora ou outra ele vem à tona.

É comum, por exemplo, que alguns filmes tenham em seu material de divulgação um “selo de qualidade” mostrando que fizeram parte da seleção do festival – uma garantia de que serão recebidos com outros olhos, mesmo antes de serem assistidos. Mas nem sempre foi assim. Consolidado hoje como um dos principais eventos da indústria cinematográfica, o Festival de Cannes possui uma trajetória curiosa e bem menos lembrada.

Um início atribulado

Se hoje Cannes é palco para discussões das mais variadas, não é por acaso: a relação entre cinema e política faz parte do festival desde os seus primórdios, nos anos 1930. O maior evento cinematográfico internacional da época, o Festival de Veneza, em 1938 cedeu à pressão nazi-fascista e premiou o filme alemão Olympia, de Leni Riefenstahl, e o italiano Luciano Serra, Piloto, de Goffredo Alessandrini, no lugar do favorito do público e crítica. Por causa disso, Phillipe Erlanger, representante da França no júri, voltou de Veneza com a vontade de organizar uma premiação que fosse livre de influências políticas como a que presenciou ali, e reuniu forças para concretizar essa ideia o mais rápido possível.

O evento recebeu o nome de International Film Festival e teve o apoio de autoridades francesas como Jean Zay, Ministro da Educação, e Albert Sarraut, Ministro do Interior, além de representantes de outros países. Tomada a decisão de ter a cidade de Cannes como sede, tudo fora preparado para a primeira edição acontecer logo em 1939. Entretanto, os acontecimentos daquele ano fizeram os organizadores mudarem os planos. No dia 1º de setembro, data programada para a inauguração, a Alemanha invadiu a Polônia e deu início à Segunda Guerra Mundial. Com as atenções de toda a Europa voltadas para o combate, o festival de cinema teve de ser deixado de lado.

Dessa forma, o International Film Festival tornou-se realidade apenas após o fim do conflito, em 1946, mantendo os mesmos princípios com que fora idealizado sete anos antes. Mesmo num cenário ainda de luto pela situação deixada pela guerra, o evento foi realizado com glamour e clima de comemoração, reuniu celebridades de todo o mundo e foi um sucesso, dando início à tradição que perdura até hoje.

Cartaz do primeiro International Film Festival

Em primeiro lugar, o cinema

Durante a década de 50, a presença de artistas famosos e estrelas de Hollywood ajudou a atrair atenção da imprensa e do público. O Festival de Cannes rapidamente tornou-se um evento de grandes proporções, a ponto de adquirir certa importância para a política internacional de alguns dos países participantes, principalmente no contexto da Guerra Fria.

Para evitar conflitos diplomáticos, foi adicionado um artigo no regulamento do festival que permitia a retirada de filmes da competição sob certas circunstâncias . Isso fez com que ao menos onze filmes fossem excluídos nos anos seguintes, até que, em 1957, o artigo foi revogado por ir contra os ideais do próprio festival. A regra a partir de então seria que a qualidade dos filmes prevalecesse contra qualquer outro aspecto.

Daí em diante, o festival foi se consolidando a cada edição como um espaço em que o cinema era respeitado como arte e acima de qualquer censura. Desta forma, filmes controversos que, por questões morais ou políticas, passavam longe dos cinemas hollywoodianos, em Cannes tinham a chance de ser exibidos, seja para receber vaias ou aplausos da plateia. Seguindo este caminho, em 1972 foi mudada a forma de seleção para a competição oficial: os filmes passavam a ser escolhidos pelos próprios organizadores do festival, evitando decisões político-ideológicas, já que antes cada qual era selecionado por seu país de origem.

A atriz Jeanne Moreau no Festival de Cannes de 1958

Ao mesmo tempo, Cannes tornava-se também uma importante fonte de incentivo para o desenvolvimento da indústria cinematográfica. Desde 1959 o festival já contava com o Marché du Film (Mercado de Filmes, em tradução livre), feira que reúne investidores do ramo para fazerem negócios. Nos anos 60, foram criadas a Semana da Crítica e a Quinzena dos Realizadores, mostras independentes que têm como  objetivo apresentar os trabalhos de diretores iniciantes, fomentando a descoberta de novos talentos. Entre os nomes que já passaram por essas mostras estão Alejandro González Iñarritu, Ken Loach, Sofia Coppola, Spike Lee, Jim Jarmusch e até Martin Scorsese. Hoje, há ainda a mostra Um certo olhar, que exibe filmes com abordagens diferentes que não se encaixam na seleção principal; a Cannes Court Metrage, para curtas; e o prêmio Câmera de Ouro, dado a diretores que tenham competido com seu primeiro filme. Tudo isso em paralelo à competição pela Palma de Ouro, a mais importante do festival.

Em 1998, sob a presidência de Gilles Jacob, foi criada também a Cinéfondation, que seleciona anualmente até 20 curtas e média-metragens de estudantes de cinema de todo o mundo para serem exibidos e concorrerem a prêmios no festival. A iniciativa cresceu e fez surgir mais tarde a Residénce, espécie de estágio que a cada ano abriga em Paris doze jovens diretores que estejam trabalhando em seu primeiro ou segundo projeto, dando suporte e oferecendo encontros com profissionais do cinema. Ainda, surgiu também  o Atelier, programa que leva quinze diretores ao festival para entrarem em contato com nomes da indústria que possam ajudá-los a financiar seus filmes.

70 anos de polêmicas

Já é parte do folclore de Cannes o fato de que, todo ano, alguns filmes serão vaiados. Isso, contudo, não é necessariamente preocupante, já que muitos destes acabam levando a Palma de Ouro mesmo assim. Se o ditado popular ensina que não há como agradar a gregos e troianos, aqui não se foge à regra.

Ao longo das décadas de história do Festival, há filmes que após passarem por lá causaram uma reação tão negativa que até hoje são lembrados por isso. São exemplos os longas A Doce Vida (La Dolce Vita), de Federico Fellini, e Viridiana, de Luis Buñuel. Ambos, o primeiro em 1960 e o segundo em 1961, foram ovacionados pelo público na primeira exibição, mas duramente criticados pela Igreja Católica por causa de seu conteúdo. Buñuel incomodou ainda o ditador espanhol Francisco Franco, que proibiu o lançamento de Viridiana em seu país.

Lars von Trier e sua famosa camiseta “Persona non grata”

Outros dividiram tanto plateia e crítica em Cannes que até hoje geram discussões. Em 2002, durante a exibição de Irreversível (Irréversible), de Gaspar Noé, que por meio de cenas perturbadoras conta a história de um homem buscando vingança pelo estupro da namorada, várias pessoas deixaram a sala e até passaram mal. O mesmo ocorreu em 2009 com Anticristo (Antichrist), de Lars Von Trier, sobre um casal que decide se isolar em uma cabana na floresta após a morte do filho recém nascido. Em 2004, a entrega da Palma de Ouro para o documentário Fahrenheit 11 de Setembro (Fahrenheit 9/11), de Michael Moore, causou polêmica por outro motivo. O filme explora as ações de George Bush que levaram à invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003, e o júri, liderado por Quentin Tarantino, foi acusado de decidir a premiação por motivos políticos, não pela qualidade artística.

Além das controvérsias causadas pelos filmes, há ainda aquelas envolvendo a própria organização do Festival, como na edição que coincidiu com as manifestações de maio de 1968 na França. Na ocasião, vários diretores retiraram seus filmes da competição e alguns membros se desligaram do júri em solidariedade aos protestos.  Por fim, aquela edição do  festival foi  cancelada após Louis Malle, François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Berri, Milos Forman, Roman Polanski e Claude Lelouch agarrarem-se às cortinas para impedir a exibição de um filme.

Apesar de este episódio ter se tornado icônico, a polêmica envolvendo os bastidores de Cannes mais lembrada atualmente é a de Lars Von Trier, que soltou uma infeliz piada sobre Hitler numa coletiva de imprensa enquanto promovia seu filme Melancolia (Melancholia), em 2011. Dada a repercussão negativa, o diretor foi banido do Festival e somente em 2017 surgiram notícias de que ele negocia voltar a participar do evento.

Estrutura sendo desmontada após o cancelamento do Festival de Cannes em 1968

O fato de, historicamente, as mulheres terem tido pouco destaque na premiação também é motivo de muita crítica. Em todas as edições realizadas até hoje, o júri foi presidido por mulheres apenas dez vezes, e somente uma única vez a Palma de Ouro foi entregue a um filme com direção feminina: O Piano (The Piano, 1993), de Jane Campion. Não raro, assim como acontece com o Oscar, o festival é acusado de sexismo também pelo modo como reforça determinados padrões de beleza no tapete vermelho. Em 2015, vieram à tona os relatos de algumas mulheres que foram expulsas de sessões por não usarem salto alto, exigência do “dress code”. Isso fez com que, no ano seguinte, atrizes como Kristen Stewart e Julia Roberts passassem pelo tapete vermelho descalças ou de sapatilhas, como forma de protesto.

Em 2017, a polêmica da vez envolve os serviços de vídeo on demand, especificamente a Netflix. Dois filmes produzidos pela empresa foram selecionados para a corrida pela Palma de Ouro: o coreano Okja (ainda sem título em português), de Bong Joon-Ho, e The Meyerowitz Stories (também sem título oficial no Brasil), do elogiado Noah Baumbach. Ambos os longas terão apenas um pequeno lançamento nas salas de cinema dos Estados Unidos, estando disponíveis depois exclusivamente no serviço de streaming, o que incomodou membros da direção do festival. A organização acabou por adicionar uma nova regra ao regulamento, que valerá a partir de 2018, permitindo somente a entrada na competição  de filmes com previsão de lançamento nas salas de cinema francesas. Essa regra gerou um embate entre os que defendem o “verdadeiro cinema” e os que consideram a medida um retrocesso diante dos avanços tecnológicos da sétima arte.

O Brasil em Cannes

Apesar de o Festival de Cannes não receber por aqui a mesma atenção midiática que outros grandes eventos do cinema, o Brasil sempre esteve bem representado no evento. O filme nacional que chegou mais longe na competição – e que, merecidamente, sempre é lembrado por isso –, foi O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, que em 1962 trouxe para casa a até hoje primeira e única Palma de Ouro brasileira. A obra conseguiu o feito de abocanhar a honraria máxima sob o crivo de um júri que tinha entre seus membros François Truffaut e passou na frente de títulos como Cléo de 5 a 7 (Cléo de 5 à 7, 1962), de Agnès Varda, e O Anjo Exterminador (El Ángel Exterminador, 1962), de Luis Buñuel, hoje clássicos mundialmente admirados. Pouco antes de O Pagador de Promessas, em 1959 a coprodução ítalo-franco-brasileira Orfeu Negro, dirigida por Marcel Camus, também recebeu a Palma, mas o prêmio foi considerado da França levando em conta a nacionalidade do diretor.

Cena de O Pagador de Promessas (1962)

Alguns nomes do cinema brasileiro marcaram presença mais de uma vez na competição principal, embora não tenham ficado com o prêmio. São exemplos Glauber Rocha, Cacá Diegues e Ruy Guerra, todos participantes do movimento Cinema Novo. Mais recentemente, os diretores Héctor Babenco e Walter Salles  também competiram repetidas vezes, com filmes como Carandiru (2003) e Na Estrada (On The Road, 2012).

Em outras categorias o Brasil também já se saiu bem sucedido. Glauber Rocha levou o título de Melhor Diretor por O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), e Nelson Pereira dos Santos por O Amuleto de Ogum (1975). Fernanda Torres foi a primeira brasileira a ganhar o prêmio de Melhor Atriz, com o filme Eu Sei Que Vou Te Amar (1986), feito repetido por Sandra Corveloni por Linha de Passe (2008). Cinema Novo (2016), de Eryk Rocha (sim, filho de Glauber), ganhou o recém criado prêmio de melhor documentário, o L’Oeil D’Or (Olho de Ouro). Aquarius (2016), que ficou famoso pelo protesto feito pelo elenco e o diretor Kléber Mendonça Filho contra o impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef no tapete vermelho, foi ovacionado após sua exibição no festival. No entanto, infelizmente não levou nem o prêmio de Melhor Atriz, pela interpretação de Sônia Braga, nem o prêmio principal. Para todos os cinéfilos brasileiros, continua na imaginação a aguardada segunda Palma de Ouro pra chamarmos de nossa.

por Matheus Souza
souzamatheusmss@gmail.com 

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