Uma das áreas mais famosas do mundo geek é a dos super-heróis, que engloba diversos universos, com histórias cativantes e emocionantes. Todas essas tramas, muitas adaptadas para a esfera cinematográfica, marcaram gerações e vão sempre ser relembradas como marcos na história do cinema. Contudo, existe o outro lado desse cosmos, caracterizado por um machismo e misoginia enraizados, que é a hipersexualização de personagens femininas, expondo os corpos das atrizes em figurinos cavados, que cobrem apenas o necessário e construindo um tipo de personagem com falas e ações estereotipadas (isso quando alguma mulher é escalada).
Cadê o protagonismo feminino?
Apesar de nos últimos anos estar crescendo o protagonismo de mulheres em obras cinematográficas do mundo geek, com o lançamento de filmes como Mulher Maravilha (Wonder Woman, 2017) e Capitã Marvel (Captain Marvel, 2019), a presença de personagens femininas nos filmes de super-heróis ainda se limita muito na ancoragem às personagens masculinas.
Por exemplo, a Viúva Negra (Scarlett Johansson), personagem da Marvel, teve sua primeira aparição no filme Homem de Ferro 2 (Iron Man 2, 2010) como assistente do protagonista, apresentada sempre com características sedutoras e com roupas justas e decotadas. Nos filmes que dão sequência ao Universo Cinematográfico da Marvel (UCM), Viúva Negra sempre aparece como a única mulher em um grupo de homens, como no filme Os Vingadores (The Avengers, 2012). Esse fato muda com o longa Os Vingadores: Era de Ultron (Age of Ultron, 2015) em que uma nova personagem feminina é inserida no UCM: Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen). Ainda assim, ambas personagens apenas faziam aparições secundárias, com o objetivo de dar suporte aos homens, possuindo (quase) nenhum local de fala.
Além disso, em mais de cinquenta anos de lançamentos de obras cinematográficas de super-heróis, apenas 8 filmes foram protagonizados por mulheres: Supergirl (1984), Mulher-Gato (Catwoman, 2004), Elektra (2005), Mulher-Maravilha, Capitã Marvel , Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa (Harley Quinn: Birds of Prey, 2020), Mulher Maravilha: 1984 (Wonder Woman: 1984, 2020) e Viúva Negra (Black Widow, 2021).
“As narrativas audiovisuais, dos games, dos quadrinhos, têm os homens como protagonistas; são homens contando suas próprias histórias e isso faz com que a gente não se surpreenda se os personagens forem masculinos. Quando as mulheres preenchem esses espaços, por exemplo nas comédias românticas, muitas vezes elas estão ali para fazer a narrativa do homem acontecer, elas não tem uma história voltada para elas mesmas, com um núcleo, uma narrativa, com conflitos dramáticos que fale sobre o universo das mulheres. O conflito dramático delas está em conquistar o homem e fazer a história dele acontecer”, afirma Gabriela Santos Alves, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e pós-doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Por isso existe uma avaliação chamada Teste de Bechdel, que tem como objetivo analisar se um filme traz personagens mulheres fortes e participativas, questionando se a participação feminina faz diferença no enredo da obra. O exame consiste em três perguntas que devem ser respondidas para a análise da trama:
- O filme tem duas ou mais personagens femininas com nomes?
- Elas conversam entre si?
- O assunto da conversa é algo que não seja homem ou assuntos relacionados a romances?
O teste surgiu em 1985, com a cartunista Alison Bechdel, que publicou uma tirinha ironizando os filmes de Hollywood que sempre representam mulheres de forma estereotipada e clichê. Na tirinha, há uma personagem que diz só assistir a filmes que atendam aos seguintes critérios: tenham ao menos duas personagens femininas, que conversem entre si em alguma cena e sobre algo que não seja homens.
A hipersexualização dos corpos femininos
Macacões justos, mini saias, tops, bodys decotados, saltos altos. Essas são as peças de roupa que geralmente constituem os figurinos das super heroínas. Ignorando completamente a falta de praticidade deste tipo de vestimenta, em um contexto de constantes lutas, presentes a todo momento em filmes de ação, a representação das mulheres se baseia nesta hipersexualização de seus corpos.
Um dos maiores exemplos desta hipersexualização de personagens femininas exacerbada é o filme Mulher-Gato, estrelado por Halle Berry. Além de ter sido um grande fracasso nas bilheterias e com apenas 18% de aprovação do público, segundo o Rotten Tomatoes, o longa mostra a protagonista de forma extremamente erotizada, com um pequeno top, que dá destaque aos seios da atriz, e uma calça de couro rasgada, sem contar o fino salto alto utilizado pela personagem.
Jessica Chastain, conhecida pelo grande papel da comandante Melissa Lewis, no filme Perdido em Marte (The Martian, 2015), é uma grande personalidade de Hollywood que se posiciona fortemente contra o machismo. Em entrevista para a RadioTimes, a atriz fez críticas em relação à representação das mulheres nos filmes de super-heróis. “Se você olhar para filmes como Elektra e Æon Flux, o problema dos estúdios é que eles fazem filmes com mulheres valentes muito sexualizadas. Elas precisam vestir um traje colado ao corpo”, afirma Chastain. “O fato é que a maioria dos filmes de Hollywood mostram uma perspectiva masculina. No geral, os filmes de Hollywood são muito ‘machocêntricos’”, complementou a atriz.
Em entrevista para a Jornalismo Júnior, a pós-doutora Gabriela Santos Alves comentou também sobre os figurinos sexualizados das super-heroínas. “Por exemplo, o uniforme das mulheres são sempre muito justos, colados ao corpo. Pensar o corpo dessas heroínas, são corpos jovens, o padrão da indústria de beleza da indústria da moda, bastante evidenciados do ponto de vista da sexualidade. E é importante a gente pensar também, eu acho que além dos figurinos dessas personagens, do tipo de enquadramento que esses corpos femininos recebem, um enquadramento ginecológico, que é aquele enquadramento que vem de baixo para cima, focando na vagina, nas nádegas, nas coxas das mulheres”.
A professora ainda discorreu acerca da importância da comparação entre o tratamento dado às personagens masculinas e às femininas. “Eu acho que um exercício muito importante da gente fazer é sempre se perguntar se isso acontece com os homens, com os personagens e os heróis masculinos, se eles têm esse tipo de uniforme marcando o corpo deles, se eles usam um shortinho muito curto, pensar no enquadramento quando a gente está falando de filmes ou mesmo nos HQs. Eu acho que esse é um exercício muito importante para a gente questionar essas práticas e refletir sobre elas de maneira crítica”.
Os estereótipos femininos e o público cinematográfico
É um fato que quando as primeiras HQs, histórias e filmes de super-heróis surgiram, no século passado, o público-alvo era o masculino. Assim, as personagens, principalmente as femininas, eram pensadas para agradar sua audiência, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Dessa forma, foram utilizados diversos estereótipos machistas, que estão presentes no senso comum, para a construção das mulheres nessas tramas.
Segundo o artigo “10 provas da existência do machismo no cinema”, do Instituto DEA (Direito, Economia Criativa e Artes), existem alguns tipos clichês femininos comuns no mundo cinematográfico, como: a garota diferente, a histérica, a profissional infeliz e a “gostosona”. No caso dos filmes de super-heróis, o estereótipo mais constantemente utilizado é o da única mulher entre vários homens, que tem a única função de trazer certa tensão sexual para o grupo e satisfazer os gostos e fetiches dos espectadores.
Quando as coisas vão mudar?
Nos últimos anos vem ocorrendo uma aparente mudança em relação à falta de diversidade no cinema, principalmente no mundo geek. Com o lançamento de filmes com protagonismo feminino e de pessoas negras, há também uma maior diversidade no público dessas obras.
Para a pós-doutora Gabriela Santos Alves o maior exemplo dessa transformação é o longa Pantera Negra (Black Panther, 2018). “Pensando o público que consome [cinema], eu acho que hoje ele é mais diversificado, do que lá no surgimento. Em Pantera Negra, por exemplo, a gente pôde ver muitas crianças negras indo ao cinema, foi um movimento muito bonito. Isso evidencia que tem um público diversificado de pessoas negras e de crianças, principalmente, que requerem essa representatividade. Já passou da hora da gente promover na indústria audiovisual esse tipo de presença e de representatividade de mulheres, pessoas negras, da população LGBTQIA+, assumidamente. Eu acredito que a gente está caminhando para isso, a gente está no meio de um movimento que se iniciou a pouco tempo, mas que é forte, que é esse movimento que quer a presença de personagens mais diversos.”, afirmou Gabriela.
“Quando a gente dá visibilidade, quando a gente fala sobre um assunto, a gente faz ele se tornar real. Enquanto está ali nos guetos, dentro de discursos que não chegam, que não tomam essa materialização é como se não existisse”, conclui a pós-doutora.
Apesar da visível mudança em relação à representação de minorias no mundo cinematográfico dos super-heróis, que vem ocorrendo nos últimos anos, ainda não é suficiente. Na vida real não existem aliens tentando invadir o planeta ou vilões com super poderes que devem ser detidos. Aqui, a luta é contra o machismo, o racismo, a xenofobia, a LGBTfobia e todos os outros tipos de preconceito, luta que é eterna e não deve ser subestimada.
Texto muito bem escrito, aborda temáticas relevantes no contexto da mídia internacional de forma clara e incisiva, cutucando fundo a ferida da hipersexualização sistêmica da figura feminina. Ainda que haja um movimento claro de mudança dessa postura frente à representação de grupos de minoria política, que é uma evolução positiva resultante do discurso entorno da diversidade, infelizmente é importante lembrar que, como muito bem exemplificado em “The Boys”, é possível que essas produções surjam como forma de maquiar a imagem dos estúdios, que, em alguns casos, as produzem como “prêmios de consolação” para o público se sentir satisfeito na hora em que assiste ao filme (ou série), sendo, entretanto, claramente artificiais e desconexas, exemplo disso é a cena em “Vingadores: Ultimato”, durante a batalha final, na qual as personagens femininas do universo (as que haviam sido apresentadas até então) se reúnem em um plano (enquadramento) único para simbolizar a união e o empoderamento femininos. Apesar de ser visualmente apelativa, a cena não se justifica narrativamente, tendo sido inserida de forma leviana para passar ao público a ideia de que o estúdio está a par do movimento feminista e das discussões políticas referentes a ele. Entretanto, em 11 anos de produções multimilionárias, apenas um único filme protagonizado por uma personagem feminina havia sido lançado até então, 10 anos depois do início do UCM, em 2019, quando “Capitã Marvel” chegou aos cinemas, quase como um “tapa buraco” para o universo, costurando alguns erros de roteiro e silenciando a crítica que apontava justamente a falta de produções protagonizadas por mulheres.