Imagine como estará a humanidade no ano 2071. Vivendo em outros planetas, talvez. E como enfrentar problemas sociais persistentes como a violência numa galáxia? Com caçadores de recompensas espaciais, no estilo dos cowboys, para pegar os criminosos. Imagine agora o corpo de uma caçadora. Mulher. Como seria?
Esse é o enredo de Cowboy Bebop, anime de grande sucesso de 1998. Faye Valentine, uma das protagonistas, usa o apelo sexual de seu corpo como uma das táticas para distrair os oponentes e, assim, derrotá-los. Na adaptação live action da Netflix, que sai em novembro, Faye usa roupas menos reveladoras e possui proporções corporais mais comuns.
O roteirista Javier Grillo-Marxuach justificou a alteração dizendo que “nós precisamos ter um ser humano real vestindo aquilo”, em entrevista ao io9. A equipe de produção está considerando as “sensibilidades modernas” para encontrar o equilíbrio entre “honrar o espírito da obra original e adaptá-la ao meio [episódios de 1h, em vez de 20min] e à audiência”.
A atriz que interpreta Faye, Daniella Pineda, respondeu sarcasticamente a críticas de alguns fãs às mudanças no visual, dizendo que, para além da anatomia (tamanho dos seios, da cintura e a altura), a roupa precisaria ser resistente o suficiente para que ela conseguisse realizar manobras.
O desenho do corpo de Faye no original atende ao que pode-se chamar de “fanservice”, presente na caracterização das mulheres em várias obras do universo otaku (nome dos fãs).
Fanservice: o que é e a quem se dirige
Os animes e mangás são uns dos produtos midiáticos da cultura pop japonesa mais conhecidos no Brasil — quantas infâncias não acompanharam as histórias de Sailor Moon (Bishōjo Senshi Sērā Mūn), Cardcaptor Sakura, Cavaleiros do Zodíaco (Seinto Seiya), Bleach, Naruto, Dragon Ball, Pokémon? Retomando os esportes olímpicos de Tóquio 2020, Haikyuu!!, famosa obra que começou a ser publicada no Brasil em julho, narra a trajetória de jogadores de vôlei. How Heavy Are the Dumbbells You Lift? (Danberu Nan-Kiro Moteru?), menos conhecido, fala de levantamento de peso. Neste, as protagonistas são mulheres.
A diferença de caracterização que se destaca é o fanservice sobre as personagens femininas. Expressão em inglês que pode ser traduzida como “serviço ao fã”, o fanservice abarca vários tipos de estratégias narrativas que se prestam a agradar o público e mantê-lo interessado na obra. Geralmente, essas cenas não trazem grandes contribuições para o enredo, o que vem sendo problematizado.
O fanservice não se restringe à indústria cultural japonesa das animações e dos quadrinhos. Os easter eggs (referências sutis a outras obras relacionadas ao universo da história), a tão esperada união do casal (quando o ship de muitos se concretiza), os reboots (versões inéditas de uma história) e remakes (regravações fiéis à narrativa original) estão presentes no cinema e na literatura ocidental em diferentes graus. Cenas de violência também podem ser fanservice.
Porém, observando o modo como as mulheres são representadas particularmente nos animes e mangás mais conhecidos, é possível perceber um outro padrão de fanservice: seios e bundas enormes, roupas extremamente justas e curtas, closes em posições eróticas e invasivas — literalmente, a calcinha na tela (ou no papel).
Gainixing ou Gainax Bounce, por exemplo, é o estilo de desenho de seios desproporcionalmente grandes balançando a cada movimento da personagem. O termo faz referência ao Studio Gainax, que utilizava essa “técnica” frequentemente, como em Otaku no Video, de 1991.
少年たちの心もつかもうと努力します。#いいおしりの日 pic.twitter.com/6QXLmBKuDP
— 真島ヒロ (@hiro_mashima) November 4, 2019
O autor de Fairy Tail, Hiro Mashima, também publica desenhos das personagens femininas com teor sexual fora do universo da história em sua conta no Twitter
“Reduz-se a mulher a partes de seu corpo. São as mulheres aos pedaços: elas são uma bunda, um peito”, afirma Valéria Fernandes, criadora do blog Shoujo Café e pesquisadora da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (Aspas). Valéria acompanha mangás e animes desde a década de 1990 e aplica os estudos de gênero às personagens femininas especialmente em obras shoujo, além de outros produtos da cultura pop. “É interessante notar como o corpo feminino pode ser e é utilizado como essa forma de atrair o público a ponto de você ficar insensibilizado.”
Não exclusivo ao Japão, um exemplo “clássico” desse apelo na mídia ocidental é o da Princesa Leia, apresentada em um biquíni metálico em Star Wars VI: O Retorno de Jedi (Star Wars: Episode VI – Return of the Jedi, 1983). Debate semelhante ao de Cowboy Bebop, a nova versão da animação infantil She-Ra e as Princesas do Poder (She-Ra and the Princesses of Power), de 2018, apresenta a heroína She-Ra dos anos 1980, mais adulta e de vestes justas e curtas, como uma adolescente com um corpo mais real para o público infantil.
Assédio como fanservice
Também como fanservice, cenas de assédio sexual e constrangimento sexual são corriqueiras e motivo de riso, tratadas como alívio cômico nos animes e mangás. O agressor não recebe nenhum tipo real de punição e mantém essa atitude ao longo da trama, como o Mestre Kame, de Dragon Ball, um senhor que pede para ver a calcinha da jovem Bulma para ceder-lhe a esfera do dragão, item de disputa dos protagonistas. Bulma não sabia que estava sem a roupa íntima no momento porque Goku a havia retirado na noite anterior, sem permissão, enquanto ela dormia. Como um ser “inocente” que nunca tinha visto mulheres antes, o personagem queria verificar por que ela não possuía a mesma genitália que ele depois de apalpá-la. No fim, o Mestre Kame “ganhou” mais do que esperava.
Recentemente, a reprise de Dragon Ball Super foi retirada do ar na Argentina por uma cena de assédio envolvendo o Mestre Kame. Nela, Kame pede a um de seus alunos que transforme seu animal de estimação mágico em uma “bela jovem” para que ele “supere” seu “ponto fraco” — os pensamentos pervertidos. A menina fica trancada em um casebre enquanto Kame a persegue, aparentemente tentando agarrá-la, apesar de seus protestos.
A polêmica cena que custou a retirada de Dragon Ball Super na grade da Cartoon Network Argentina.
O anime foi “banido” da emissora. pic.twitter.com/lgN12U0EWa
— Kami Sama Explorer (@kamisamaexp) August 31, 2021
“O episódio reproduziria o exercício de violência sexual de um maior contra uma menor, em um contexto de aceitação social, em que a violação de uma menina foi naturalizada”, diz a denúncia do Ministério da Mulher, Políticas de Gênero e Diversidade Sexual da província de Buenos Aires junto à Defensoria Pública da Nação. A denúncia defende a promoção dos direitos de meninas e meninos de acordo com uma perspectiva de gênero e considera que o anime estava sendo veiculado para a faixa etária de crianças de 4 a 11 anos.
Dragon Ball é da década de 1980, mas existem exemplos mais recentes dessas violações tratadas como fanservice. O protagonista Meliodas, de feição infantil, vive assediando a princesa Elizabeth, de 16 anos, em The Seven Deadly Sins (Nanatsu no Taizai), que começou a ser publicado em 2012 e foi finalizado em 2020. Os closes importunos nos seios da personagem Diane são outra recorrência.
Importante dizer que, no universo otaku, são as histórias das demografias shounen e seinen que apresentam com mais frequência as personagens femininas com esse fanservice. Além dos gêneros de ação, romance, fantasia, terror e etc., os mangás e animes possuem demografias, categorias construídas com base na binaridade cisgênero do público: as obras shounen são originalmente destinadas aos garotos jovens e as seinen, aos adultos; o shoujo, para as garotas jovens, e o josei, às adultas.
Demografia de Dragon Ball e The Seven Deadly Sins, o shounen geralmente retrata o desenvolvimento de protagonistas masculinos, enquanto as personagens femininas assumem o papel de auxiliares do herói.
A estudante universitária Ana Paula Medeiros acompanha animes desde criança e se incomoda com o fanservice nos shounens. “Eu gosto muito de ver anime de ação e fantasia, mas aí, do nada, eles colocam cenas super desnecessárias sexualizando alguma personagem feminina. Não precisa, não faz nenhuma diferença para a história, e é só para gerar um alcance maior, para gerar audiência e deixar felizes esses homens que gostam desse tipo de conteúdo.”
Ela pontua as diferenças de representação dos personagens. “O homem vai lutar e ele está com uma armadura, está protegido. A mulher vai lutar, ela está de minissaia com um decotão. Além de me sentir desconfortável, eu não entendo o que se passa na cabeça de alguém para fazer isso.”
O ecchi é o gênero que descreve essa insinuação de conteúdo sexual não explícito. Pesquisando essa palavra no Google Imagens, meninas e mulheres preencherão a tela (com alguns personagens masculinos aqui e acolá):
Muitas action figures (bonecos de personagens fictícios, geralmente em posições combativas e ricos em detalhes) trazem os corpos femininos nessas proporções. No Google, para alcançarmos resultados mais próximos ao que buscamos (sem personagens de outras mídias ou personagens masculinos), procuramos “action figure woman anime”:
A cena de constrangimento da personagem Bulma virou uma action figure em 2017 por 160 dólares. Você tem a opção de vê-la com e sem a calcinha:
A psicóloga clínica Thainá Avelino pensa que esse tipo de cena pode ser problemático por naturalizar o assédio, dependendo da maneira como as cenas foram construídas e da reação dos personagens envolvidos. “Quando esse tipo de cena e comportamento são normalizados, o que vai gerar o estranhamento vai ser justamente a crítica.”
Thainá afirma que mesmo as cenas mais “inofensivas” podem ter impactos negativos, considerando que o shounen é direcionado para jovens, que, por ainda estarem em desenvolvimento, não têm o senso crítico desenvolvido. “Se aquilo for a única referência que eles têm, vão acabar incorporando isso ao dia a dia.”
Alice*, aos 16 anos, foi se divertir no Anime Festival, evento do universo otaku na cidade de Belo Horizonte (MG), em 2014. Ela conta que um homem conhecido entre os participantes a “cumprimentou” pegando em seus seios. Alice reclamou, e o homem se justificou dizendo que o assédio era, na verdade, uma “brincadeira” que fazia com todo mundo. As pessoas no entorno agiram como se nada tivesse acontecido.
Alice teme que meninos e homens projetem alguns comportamentos vistos nos animes e mangás especialmente contra meninas muito novas, que poderiam não saber como reagir. De acordo com a pesquisadora Valéria, esse comportamento é derivado do fanservice sexual.
“[A pessoa pode pensar] ‘Se a personagem é apalpada, por que eu não vou apalpar a menina de cosplay [performance que imita um personagem fictício] dessa personagem?’”, afirma Valéria.
Thainá acredita que esse fanservice “causa um malefício ao direcionar o olhar daquele rapaz primeiro para os atributos corporais e só depois para os outros atributos do personagem — suas habilidades, histórias e emoções.”
Ela ainda afirma que esse tipo de representação prejudica não só os garotos: as meninas podem usar as personagens como um “modelo” de como obter a atenção das outras pessoas. Elas terão uma “identificação maior com as meninas que estão sendo observadas, tocadas, ou, muitas vezes, violentadas.”
O apelo sexual não é destinado somente aos personagens do interesse do público masculino. Os homens também são representados com estereótipos do corpo (alto, magro e musculoso) e comportamento ideal quando a obra procura agradar as mulheres. Mas os closes voyeurísticos e as cenas de assédio sexual contra esses personagens são bem menos frequentes em relação a quando as mulheres são o objeto de satisfação.
Desigualdade de gênero
Mas por que os corpos das mulheres são desenhados como um tipo de fanservice em histórias que têm os homens (heterossexuais) como público? E por que isso é recorrente? Uma hipótese é o atraso do Japão na questão de igualdade de gênero: o país ocupa a posição número 120 entre 156 países no ranking 2021 do Fórum Econômico Mundial.
O país está em 117º, atrás de países como Mianmar e Venezuela, no quesito participação econômica e oportunidades no mercado de trabalho para as mulheres. Em 2015, o governo anunciou o Womenomics, conjunto de políticas de encorajamento da força de trabalho feminino. A meta de 30% dos cargos de liderança ocupados por mulheres até 2020 está, hoje, em 14,7%.
Exemplo concreto dessa discriminação, a Universidade Médica de Tóquio impediu propositadamente a admissão de candidatas mulheres por ao menos 10 anos ao aumentar as notas dos exames prestados por homens. O escândalo foi revelado em 2018 a partir de uma investigação de corrupção na admissão do filho de um funcionário do Ministério da Educação japonês que negociava, em troca, favorecimento na obtenção de fundos para pesquisa por parte da universidade.
A justificativa para a manipulação foi de que as mulheres estariam “mais inclinadas a deixar a profissão depois de ter filhos”. Outras universidades também admitiram esquemas semelhantes.
Três anos depois, os Jogos de Tóquio 2020 buscaram ir na contramão das segregações, celebrando o maior nível de igualdade de gênero da história da competição: quase 49% dos atletas eram mulheres. A diversidade e a inclusão foram outras bandeiras oficiais.
Por outro lado, a composição da direção do Comitê Olímpico permaneceu masculina: dos 36 integrantes, apenas 7 eram mulheres. A desigualdade foi reforçada em declarações de alguns organizadores japoneses, além de políticos, no primeiro semestre deste ano.
Em fevereiro, o então presidente do comitê dos Jogos e ex-primeiro ministro, Yoshiro Mori (83), disse que “[em reuniões executivas] quando você aumenta o número de mulheres, se o tempo para falar não é limitado, elas têm dificuldade para terminar, o que é muito irritante. Elas adoram competir umas contra as outras”.
Criticado globalmente, Mori renunciou, mas comentou ainda que “ultimamente, não as ouço muito, então não sei”, quando perguntado se realmente achava que as mulheres falavam demais. Ele indicou Saburo Kawabuchi (84), outro homem octogenário, para ocupar seu posto, mas após uma nova onda de críticas, quem assumiu foi Seiko Hashimoto, política de 56 anos e ex-atleta olímpica.
Poucos dias após o caso de Mori, o Partido Liberal Democrata (PLD), que controla a política japonesa há mais de cinco décadas, anunciou que convidaria cinco parlamentares para suas reuniões de cúpula com o intuito de combater a desigualdade de gênero. Porém, elas só poderiam observar em silêncio.
Toshihiro Nikai (82), secretário-geral do PLD, disse estar ciente das críticas à dominação masculina na diretoria do partido (22 dos 25 postos são de homens). Nikai justificou a proposta de “observação” dizendo que “é importante entender completamente que tipo de discussão está acontecendo. Dar uma olhada, é sobre isso que se trata.”
Yuriko Koike, atual governadora de Tóquio, é a primeira mulher no cargo e uma das poucas a ter essa posição no país. No Parlamento, 46 dos 465 deputados são mulheres, o que equivale a 10%, enquanto a média global é de 25%. Recentemente, o Parlamento discutiu uma lei que proibia as mulheres de manter seu nome de solteira depois do casamento, o que causou ultraje de mulheres por todo o país.
Reação do público
A J.Press elaborou um formulário sem pretensões estatísticas para tentar medir as impressões de uma parcela do público que consome animes e mangás sobre o fanservice sexual que afeta as personagens femininas. Do total de 242 respostas, 55,8% se identificaram como mulheres, cis ou trans, o que mostra que o público independe de gênero. A visão estereotipada dos otakus – um homem jovem, tímido e isolado – está longe da realidade.
68,2% disseram não gostar do fanservice. Só 2,9% relataram ativamente gostar, enquanto os demais declararam não pensar sobre a questão ou não se incomodar com ela.
Alguns disseram ter deixado de consumir a mídia por terem se sentido incomodados, o que vai contra o propósito do fanservice de agradar o público. “Eu odeio esse tipo de conteúdo. É literalmente o motivo dos mangás e animes serem tão mal vistos e com razão. A imaturidade e hipersexualização das personagens femininas é algo que contamina e destrói muito do potencial criativo dos animes, que é imenso, por sinal”, escreveu um respondente.
“Até nos melhores animes, com histórias extremamente profundas e personagens cativantes, você consegue ver um pouco de fanservice”, diz o estudante Rômulo Silva, que voltou a assistir animes durante a pandemia de Covid-19.
Quando teve seu primeiro contato com o universo, na pré-adolescência, Rômulo se sentia atraído pelo fanservice sexual de animes como Mirai Nikki. Mas, ao revisitar a história e entrar em contato com outras realidades, sua percepção mudou.
Para ele, esse fanservice cria uma espécie de círculo vicioso: “Essa indústria se mantém alimentada e mantém alimentando esse tipo de fetiche, de sexualização, de irrealidade.”
Débora Liao procura discutir as questões de gênero na mídia otaku ao escrever resenhas para o site Garotas Geeks, que analisa vários produtos culturais pop do ponto de vista feminino. Ávida, consome animes e mangás há cerca de 15 anos, desde os tempos da TV Globinho. De início, por influência do irmão, acompanhou muito shounen e seinen e participou ativamente de fóruns na internet. “Hoje, eu não consumo nada que tenha ecchi, e sou muito criteriosa para shoujo e shounen. A partir do momento que vejo algum ‘problema’, não faço muita questão de acompanhar.”
Débora busca obras produzidas por mulheres e por estúdios de animação que ela categoriza como responsáveis, considerando os “níveis de sexualização e objetificação da mulher”. A Toei Animation, estúdio de One Piece, é “um dos piores”, por acrescentar cenas e ângulos de sexualização aos que existem no mangá. A obra já vendeu mais de 490 milhões de cópias desde o início de sua publicação, em 1997, sendo a segunda história em quadrinhos mais vendida no mundo. O anime tem mais de 980 episódios.
O mangaká de One Piece, Eiichiro Oda, disse que usa uma “fórmula” para desenhar os corpos das heroínas. “As proporções das mulheres são três círculos e um X.” Ele ainda avisa que, se você for retratar várias personagens femininas assim, é necessário estar preparado para receber cartas com críticas de leitoras mulheres.
“É como se ele dissesse”, afirma Débora, “‘eu não tenho o interesse em desenvolver as mulheres. Vou continuar fazendo assim porque vende; funciona e ninguém reclama’.”
Débora atribui seu comportamento de consumo ao senso crítico. Ela procura se informar sobre os autores das obras por meio de entrevistas e análises de sites especializados de viés feminista.
Já a pesquisadora Valéria busca “observar como as mulheres contam suas histórias e dialogam com a sociedade em que vivem — se estão trazendo as discussões que estão acontecendo na sociedade japonesa, e que tipo de idealização (de romance, família) estão colocando em suas histórias”.
O posicionamento de ambas como feministas em suas análises críticas atrai muita atenção negativa. “[Pensa-se que] ‘Você é mulher. Você não tem direito de falar sobre isso’”, conta Valéria. Por isso, o engajamento busca ser nichado. Mesmo assim, dos posts que viralizaram, as mulheres do Garotas Geeks já receberam ataques no site, nas redes sociais da comunidade e até mesmo vídeos no YouTube.
Débora avalia que a problematização é mais aberta e incisiva nos Estados Unidos, por exemplo. No Brasil, o discurso está mais devagar. “A gente tem que ficar ‘floreando’ os textos; em sites grandes, as pessoas vão evitar as palavras ‘feminismo’, ‘machismo’. Mas a gente tenta tratar com potência quando necessário, apontar nome: se é romantização de estupro, falar que é romantização de estupro.”
Uma ressalva a ser feita é que o material elaborado por mulheres não é necessariamente perfeito. Valéria estuda a cultura do estupro nos relacionamentos amorosos retratados no shoujo, “coisas de extrema violência que passam despercebidas num material que é produzido por mulheres, mas as quais estão dentro de uma cultura que, de certa maneira, legitima essa violência”.
O outro lado
O fanservice possui muitos defensores, como se vê internet à fora, que afirmam que é justo os criadores fazerem um esforço para agradar seu público, já que é a audiência que permite a existência do mangá ou anime.
Gabriel Moraes compartilha parte dessas percepções. Estudante universitário, ele conheceu os animes na infância, pela TV. Aos 12 anos, assistiu às histórias usualmente recomendadas aos iniciantes, como Mirai Nikki e Tokyo Ghoul, e em pouco tempo passou a consumi-las mais intensamente.
Hoje, Gabriel se dedica mais à leitura de mangás seinen, e menos shounen. Para ele, o fanservice sexual sobre as personagens femininas é muito presente nas obras que conhece, como Btooom!, Dr. Stone e a maioria das comédias românticas, e isso, na maior parte das vezes, não é um problema.
“No geral, não me incomodo tanto, mas depende muito da obra. Eu não costumo abandonar a história, a não ser que seja muito enfadonha ou que seja basicamente isso — nesse caso, eu não a abandonaria exatamente por causa do fanservice, mas porque a narrativa é rasa.”
Quando o foco da obra é o fanservice e ele, como telespectador, está descompromissado, o artifício é agradável. “O que me incomoda mais é quando está fora da categoria do ecchi — quando você está buscando outra coisa na obra.”
“Acho que o fanservice pode trazer uma visão específica — sexualizada — das mulheres se for exacerbado, mas em obras já despretensiosas em relação a isso, é um fator inofensivo.” Como exemplo, ele cita Shokugeki no Soma (Food Wars!, em inglês), em que todos os personagens, femininos e masculinos, têm fanservice — todos ficam pelados. “Isso já se tornou o charme da história.”
Shokugeki no Soma narra competições culinárias e, sendo ecchi, quando os personagens comem alguma coisa, suas roupas explodem como forma de descrever o “êxtase”. Logo no início do primeiro episódio, a personagem Mayu come um tentáculo de lula grelhado com molho de pasta de amendoim. Para retratar o “desgosto” que é a receita, Mayu é agarrada por uma lula e três tentáculos avançam sobre sua virilha. A cena dá a entender que a personagem está sendo estuprada.
Gabriel explica quais seriam os “níveis” aceitáveis ou não do fanservice sexual em sua visão. “Exacerbado é o nível de High School DxD. Normal seria o de One Piece, que eu não acho que objetifique ou comprometa a personagem feminina. É algo que passa, vai agradar uns, outros não vão se identificar, mas quem é mais ‘neutro’ não verá tanta problemática.”
Para o estudante, as mulheres podem continuar sendo apresentadas dessa forma. “Acho que isso pode se tornar um problema quando a obra tem um bom potencial para atingir um público maior. O autor, ao utilizar esse elemento, afastará algumas pessoas.”
As obras seinen são as que mais poderiam sofrer essa perda. Por outro lado, no shounen, “não tem problema porque a maioria do público gosta. Se determinada parcela não gosta, existem muitas outras obras que você pode aproveitar.”
Gabriel diz não saber explicar por que esse tipo de representação não lhe é incômoda. “Talvez porque eu não seja uma mulher. Nunca parei para pensar nisso dessa forma.” Seu círculo de amigos, que não é muito diverso em identidade de gênero e orientação sexual, pouco fala desses tópicos ao comentar animes e mangás.
O loli
Em alguns animes e mangás, também há a figura do loli, fanservice que apresenta personagens femininas fofas com feições infantis, de criança ou pré-adolescente, independente de serem menores de idade ou não (em vários casos, não são), muitas vezes de maneira sexual. Para os lolicon (termo derivado de “complexo de Lolita” dado aos fãs), o que é atraente e até erótico é exatamente o fato de elas serem ou aparentarem ser mais novas.
A figura loli não pode ser confundida com Lolita, um estilo de moda japonês, entretanto.
Um exemplo do uso do loli é Kodomo no Jikan, de 2005. Classificado como seinen, fez muito sucesso e foi escrito por Kaworu Watashiya, uma mulher. A história narra uma menina de 8 anos que assedia seu professor do primário, de 23, até que eles ficam juntos. Os últimos capítulos do mangá mostram o “casal” tendo relações sexuais.
Não à toa, um dos títulos em inglês da obra no Ocidente é Nymphet (ninfeta).
“Veja, não é um material que saía numa revista pornográfica. Mas um que abusava do fanservice das formas mais grotescas possíveis”, afirma a pesquisadora Valéria.
A posse de pornografia infantil só foi penalizada em 2014 no Japão, e muitos pedófilos ainda ficam impunes, já que o processo de condenação é extremamente burocrático: é necessário identificar a vítima do material pornográfico e confirmar se ela é menor de idade, além de que a investigação só continuará se a própria vítima processar o criminoso.
Vale notar que a fetichização de crianças pode ocorrer de diversas formas. O mercado Chaku Ero, de pornografia soft, sem nudez explícita, trabalha com vários “atores” infantis. Um produtor de Chaku Ero afirmou à BBC em 2018 que, quanto mais novas são as meninas, mais sucesso faz o produto. Ele lucrou entre 128 mil e 160 mil reais com a gravação de uma garota de seis anos em roupa de banho brincando. Materiais com adolescentes do Ensino Médio geram um valor quatro vezes menor, segundo ele.
Do formulário da J.Press, muitas pessoas pensam que a sexualização e fetichização de meninas pode normalizar a pedofilia não só em animes e mangás, mas também na vida real.
O governo japonês fez menção em 2010 de banir mangás e animes com personagens jovens em atos sexuais considerados extremos, mas houve protesto de artistas e editores, que alegaram que tudo é apenas ficção e a lei seria uma restrição à liberdade de expressão. “Apesar de entender que ‘não se pode limitar a arte’, é importante colocar algumas barreiras quando isso começa a afetar a vida das pessoas”, opina Ana Paula. “No fundo, é a vontade de sexualizar um corpo infantil. Isso é muito perturbador, não deveria ser tão livre assim.”
Em 2015, a questão voltou à tona com a Organização das Nações Unidas (ONU). Maud de Boer-Buquicchio, relatora especial para tráfico de menores e prostituição e pornografia infantis, pediu para que se dificulte o acesso a mangás e animes com conteúdo sexualmente explícito envolvendo menores de idade. De Boer-Buquicchio afirmou que o material é uma “brecha” à lei contra a exploração infantil. “Esses conteúdos pedófilo-pornográficos extremos deveriam ser proibidos.”
Por outro lado, “misturar representações ficcionais de menores envolvidos em situações sexuais com provas fotográficas de abuso sexual de crianças é confundir realidade com ficção”, diz Dan Kanemitsu, tradutor de mangás que criou um movimento na internet para unir os desenhistas e criticar o relatório, em entrevista à BBC Brasil.
Para Kanemitsu, se se seguir a lógica de que imagens sensualizadas de menores incentivam a ação de pedófilos, então o governo deveria monitorar tudo o que é lido. “Se alguém não tem condições para fazer um bom julgamento do que está lendo, então deve ser responsabilidade do Estado ajudar essas pessoas e não tirar de todos o direito de pensar e discutir.”
Além disso, ele afirma que os materiais possibilitam que as pessoas com “tendências pedofílicas” desabafem seus desejos e fantasias sem causar mal a crianças reais.
À J.Press, Kanemitsu acrescentou que a “liberdade de expressão de materiais que não envolvem pessoas reais deveria ser rigorosamente protegida, não importando o quanto as pessoas possam achá-los desagradáveis”. Ele argumenta que “a construção da liberdade de expressão vale a pena quando se aplica à proteção de materiais impopulares, desagradáveis, vulgares e/ou pouco refinados para que possam sobreviver”.
Para o estudante universitário Gabriel, essa sexualização é “um tanto duvidosa”. Ele não sabe dizer qual seria a solução ideal, mas, em sua visão, o banimento não é o melhor caminho para lidar com esse tipo de representação. “Eu não vou meter o dedo na cara da pessoa que gosta, só vou achar estranho. Isso não é necessariamente um crime, afinal de contas, é um desenho. Agora, quem consome esse tipo de conteúdo precisaria repensar [seus gostos].”
Já Valéria considera a recomendação da ONU um “convite para que o Japão repense aquilo que está produzindo como mídia e que vai para o mundo inteiro”. Mas ela defende que as medidas sejam cautelosas, para que obras sem essa sexualização não sejam barradas injustamente, quando estão, por exemplo, na mesma revista que a história problemática.
Além disso, ela fica preocupada com a possibilidade de uma superimposição que “castre a criatividade” das histórias como um todo. “Quando isso saiu, autoras importantes, com mais de 30 anos de carreira, assinaram que eram contra a medida, pensando que ‘começa assim, daqui pouco vão estar nos impedindo de discutir isso e aquilo’.”
O ciclo de produção certamente envolve vários fatores. “É uma situação complexa, mas é fato que, o que é produzido pela indústria cultural, é produzido porque existe uma demanda ao mesmo tempo que o produto também gera demanda”, explica Valéria.
Mudança de quadro, de cena, de ângulo
Utilizar táticas de fanservice passa a mentalidade de que as mulheres estão a serviço do olhar do homem, o que reflete a teoria do male gaze, de Laura Mulvey, teórica de cinema britânica e feminista. O male gaze apresenta, pelo olhar de um homem heterossexual, mulheres como objetos de desejo.
“Colocar uma mulher como um ser indefeso, de forma muito sexualizada, como se ela estivesse precisando do homem, cria uma imagem de que a mulher sempre está ali para você, e você faz o que quiser com ela”, lembra Ana Paula.
Uma representação diferente não é uma possibilidade ínfima para Valéria. “A indústria cultural é uma indústria, então ela vai produzir aquilo que vende. Mas isso quer dizer que isso tem que continuar sendo feito? Não. A partir do momento que você faz campanhas de conscientização, talvez esse tipo de material perca o interesse de parte do público.”
“Vivemos dentro de um sistema capitalista. Isso não quer dizer que ele não possa ser mudado. A rigor, é importante jogar dentro das regras do jogo ou usá-las a seu favor. Então, tem que mostrar que vende — e vende. [Argumenta-se que] ‘o público não vai se identificar com uma super-heroína’ ou ‘o público quer ver fanservice’. Mas quantas pesquisas [quantitativas] foram feitas para comprovar isso?”
Esse movimento é semelhante à demanda por diversidade — ir além dos super-heróis homens, brancos e cis —, que leva as grandes empresas de entretenimento a verem que outras representações também geram lucro.
“Como as questões de gênero não necessariamente caminham com a economia, muitas vezes se bate o pé dizendo que aquilo não vende simplesmente porque não se quer repensar os papéis de gênero, questões de dominação e objetificação da mulher.”
Para as meninas, exemplos positivos de mulheres fortes e empoderadas — e não meramente “colírio para os olhos” — podem ser extremamente positivos, afirma a psicóloga Thainá. “Se elas são habituadas a assistir cenas em que as meninas, sempre que recebem algum tipo de abuso, levam na brincadeira, desconversam, riem ou veem isso com naturalidade, elas podem ter uma tendência maior a agir dessa forma na vida real. Enquanto que, se elas tiverem modelos de meninas que impõem limites, reagem, se defendem, elas têm uma tendência maior a pensar ‘olha, isso é uma possibilidade, eu posso agir dessa maneira'”.
Por um anime menos objetificante
“Uma das formas de mostrar que é possível superar essas representações é expor que o universo otaku vai muito além do material, que efetivamente faz muito sucesso, que chega aqui. Há outras coisas, incluindo para o público adolescente, que não recorrem à objetificação das mulheres”, afirma Valéria.
Por isso, listamos algumas indicações para você conhecer ou dar uma segunda chance ao mundo dos animes e mangás com histórias que retratam as mulheres, protagonistas ou não, sem o apelo ao fanservice sexual.
Um exemplo recente é The Promised Neverland (Yakusoku no Neverland, 2019), anime disponível na Netflix e mangá em publicação no Brasil. A protagonista Emma tem 11 anos e é tão inteligente e importante quanto seus companheiros de aventura masculinos para conseguir sobreviver num mundo infestado de criaturas estranhas e desvendar o mistério sobre o orfanato em que vivem.
Já por recomendação da pesquisadora Valéria:
- A Lenda dos Heróis Galácticos; anime baseado em uma série de livros de ficção científica sobre uma guerra interestelar. “Aborda questões de ordem política, intolerância e censura”;
- Ooku: The Inner Chambers, mangá de Fumi Yoshinaga. História alternativa da era Edo, em que uma doença estranha assola quase toda a população masculina, fazendo com que as mulheres assumam os papéis tradicionalmente masculinos;
- Rosa de Versalhes, de Riyoko Ikeda. “Clássico e acessível. Consegue mobilizar as pessoas para que reflitam e torçam pelas personagens.”
E pela blogueira Débora:
- Nausicaä do Vale do Vento, mangá de Hayao Miyazaki, diretor do Studio Ghibli. Também há a adaptação em filme, disponível na Netflix. A obra apresenta Nausicaä como uma pessoa “complexa, cheia de nuances”, e “trabalha suas características femininas como fortes, e não algo a ser superado”;
- Kimi ni Todoke, de Karuho Shiina. Retrata um relacionamento amoroso “muito saudável, sem dúvida, uma das histórias menos problemáticas que conheço, em todos os sentidos”;
- Fullmetal Alchemist, de Hiromu Arakawa. “História e enredo fantásticos”, além de que todas as personagens femininas secundárias são “muito bem trabalhadas e com personalidade forte”.
*O nome da fonte foi alterado para proteger sua privacidade.
Amei! Falou tudo o que eu sinto. Adoro a cultura nerd desde que me conheço por gente, mas por causa dessas coisas que me deixam desconfortável, já abandonei muitas obras.
Ótima matéria! Sempre foi algo que me incomodou essa sexualização explícita que existe em animes. Acho que esse negócio de ser fanservice é apenas para justificar a objetificação das personagens, pois existem muitas obras que teriam a mesma (ou até mais) audiência do público, independente dos traços sexualizados e cenas de assédio.
Outra questão são as vozes das personagens. Lembro que uma vez fui apresentar um anime para minha namorada (que não assiste animes) e ela me perguntou o motivo das personagens mulheres, mesmo adultas, terem vozes infantis e sempre em tom de submissão, o que não deixa de ser uma sexualização indireta. Foi algo que nunca havia me dado conta, até mesmo por ser homem e assistir animes sem o devido senso crítico.
Creio que mais debates como esses devem existir, até para que o estúdios percebam que o conteúdo é consumido mundialmente.