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A nudez em cena no teatro brasileiro

As diferentes perspectivas dos atores diante de cenas produzidas sem figurino
Por Sofia Zizza (sofia.zizza@usp.br)

“O corpo nu é natural e não tem nada de mais nisso, o nu não precisa ser tão espetacularizado. Todos nós somos um corpo, mas as experiências e vivências que trocamos vão muito além. É necessário desmistificar o peso que se coloca em cima do corpo nu”, conta o ator Lucas Cordeiro sobre sua participação no musical Naked Boys Singing!

O estranhamento que a nudez causa na sociedade brasileira é um tema recorrente em diversas obras artísticas, como a fotografia, o cinema, a TV ou o teatro. Desde a Idade Média, quando as condutas sociais e éticas passaram a ser impostas pela tradicional igreja cristã, os corpos e suas intimidades são  motivos de condenação. Essa referência cultural transita até os dias de hoje, causando polêmica entre os adeptos da liberdade de expressão do corpo e os mais tradicionais, que enxergam a exibição da nudez como um tabu.

A nudez, quando exposta ao público, torna-se, muitas vezes, motivo  de  desavença  e  de  intensa  repercussão  social [Imagem: Reprodução/ Pexels]

Um breve histórico

A nudez no teatro contemporâneo se tornou comum nos últimos 50 anos. A partir dos anos 1960, o corpo nu começou a aparecer como forma de protesto vinculada ao movimento de contracultura, que vinha se expandindo no país. Algumas das peças que continham cenas de nudez ficaram conhecidas como revolucionárias no teatro nacional. 

O Rei da Vela (Livraria José Olympio Editora, 1937), texto de Oswald de Andrade, foi encenado em 1967 pelo Teatro Oficina e marcou a primeira aparição do corpo nu no local, que até hoje é considerado um dos pioneiros do nu artístico. Outro exemplo é Macunaíma (Oficinas Gráficas de Eugênio Cupolo, 1928), texto de Mário de Andrade, encenado pela primeira vez em 1978 pelo Grupo Pau-Brasil. O espetáculo foi considerado um marco transformador do teatro brasileiro.

Em variadas culturas, o corpo nu ainda é um tabu e enfrenta proibições de distintas naturezas em função do contexto histórico em que foi culturalmente repreendido. Por isso, quando a nudez é levada ao público, torna-se, muitas vezes, motivo  de  desavença  e  de  intensa  repercussão  social.  

Os  artigos  233  e  234  do  Código Penal brasileiro apresentam regras que condenam a nudez em ambiente público, configurando crime de ato obsceno. No entanto, esse crime se efetiva somente quando o agente tem a intenção de provocar um atentado ao pudor público. Nas peças teatrais, a presença de corpos nus é entendida juridicamente como parte integrante do espetáculo, o que absolve o agente da acusação criminal. 

A desmistificação do corpo nu

Naked Boys Singing! é um musical americano de 1997 que estreou no Hollywood´s Celebration Theatre, em Los Angeles, nos Estados Unidos. Produzido em mais de 20 países,  sempre esteve em cartaz em algum lugar do mundo desde a sua estreia. Em 2021, o espetáculo foi remontado no Brasil sob a direção de Rodrigo Alfer, trazendo ao público uma discussão profunda, mas cercada de comédia, sobre o corpo nu. 

Lucas Cordeiro é um ator brasileiro que compôs o elenco da produção no Brasil. Em entrevista para a Jornalismo Júnior, ele conta que o musical era formado por esquetes (pequenas cenas) independentes e que os principais assuntos abordados  eram as diferenças entre os corpos e a relação do indivíduo com o seu próprio. “O musical queria trazer o nu apenas como um detalhe, levando a real importância para as histórias que contava e as reflexões que provocava”. O ator completa afirmando que existiam rodas de conversa no final dos espetáculos para que houvesse uma discussão com o público acerca dos temas tratados na peça.

O musical Naked Boys Singing! estreou em 2021 mas retornou aos palcos em 2022 devido à seu sucesso e popularidade  [Imagem: Caio Galucci/ Arquivo oficial do musical]

A peça agregava diversidade de corpos dentro do elenco, o que não existia nas remontagens feitas nos Estados Unidos. O elenco estadunidense era majoritariamente composto por homens “altos, louros e fortes”. Para Lucas, a diversidade “ainda estava longe do ideal”, mas contribuiu muito para fomentar as discussões e a identificação do público que assistia ao espetáculo. 

O ator conta também que, quando viu a divulgação das audições do musical, julgou a postagem. “Eu achava que jamais faria um musical sem roupa. Um tempo depois eu estava no elenco”. A partir da conversa com um amigo, ele entendeu que aquela oportunidade seria uma forma de superar esse estigma dentro dele. “Eu estaria lá, oferecendo a minha ferramenta de trabalho, em um estado muito vulnerável e exposto. Eu queria auxiliar na desconstrução da questão da nudez para as outras pessoas”.

Bela Valente, atriz em formação, relata que nunca participou de cenas envolvendo nudez. Ao ser questionada se, um dia, encararia esse tipo de cena, ela negou. “Acho que eu nunca mostraria o meu corpo apenas por mostrar ou chamar a atenção. Apenas faria isso se tivesse um motivo relevante para o enredo”. 

Ela completa dizendo que, por estar  no início da carreira e ainda não ter um nome muito conhecido no meio do teatro,  não se colocaria em uma posição de destaque que envolvesse nudez. ”Eu quero ser reconhecida primeiro em outras áreas. Futuramente, talvez minha opinião mude, quando eu tiver mais experiência”. 

Teatro ou cinema?

Bela Valente explica que, se um dia realizar uma cena de nudez, se sentiria mais confortável diante das câmeras do que em uma peça teatral. “No cinema, é uma relação muito íntima entre vocẽ e a câmera, pois mostra cada detalhe do seu corpo. No entanto, é um ambiente mais controlado e menos imprevistos podem acontecer”.

Já Lucas relata que teve sua primeira experiência de seminudez em um curta-metragem, mas que foi no teatro que sua concepção mudou. Ele comenta que o teatro é vivo e que não se pode prever a reação do público, variável a cada pessoa e sessão. “No cinema, podemos regravar a cena várias vezes, com muitos ângulos e pausas. Você não vive a experiência por inteiro. Apesar de me sentir muito mais vulnerável no teatro, eu saí muito mais transformado”. 

Poltronas tradicionais de teatro [Imagem: Reprodução/ PxHere]

Fotos e vídeos em espetáculos com nudez

A onipresença dos smartphones leva os artistas a repensarem o ato de aparecer nus em cena, já que podem ser fotografados e ter suas imagens usadas fora de contexto. Gravações que visam somente audiência podem causar uma sensação de violação, até mesmo se a pessoa não estiver nua. Em situações que envolvem o corpo nu, a maioria dos atores aprova gravações para arquivo, mas outros tipos de filmagem são proibidos. Em alguns espetáculos, não há gravação oficial ou, caso haja, acontece a substituição dos atores em cenas específicas. Em outros casos, as cenas de nudez são formatadas para que possam ser assistidas mas não replicadas, a fim de evitar seu uso fora de contexto. 

Lucas conta que, durante as apresentações de Naked Boys Singing!, a  produção não permitia fotos e vídeos por parte da plateia, e as fotos oficiais eram todas censuradas. “Apenas o final da peça podia ser filmado, pois os atores não estavam mais completamente nus para agradecer e conversar com o público”. Ele completa dizendo que, em algumas sessões, algumas pessoas tiveram de ser retiradas do teatro por fotografarem e foram obrigadas a apagar os arquivos. “A gente não queria que acontecesse esse tipo de situação, mas imaginávamos que seria possível. Em plateias muito grandes, também fica difícil controlar todo mundo, pois é muito fácil tirar uma foto escondida com o celular”. 

Lucas também comenta que alguns lugares como clubes noturnos, festas para maiores de idade e cabarés utilizam  imagens dos atores sem consentimento para divulgar eventos de cunho completamente diferente do musical. “Algumas vezes, conseguimos resolver apenas conversando com os responsáveis pelo local, mas, em outras, foi necessário entrar com ações judiciais. Era bem frustante”.

O impacto no público e as dificuldades ainda enfrentadas

A cidade de São Paulo constituiu-se, historicamente, como palco privilegiado para o desenvolvimento da atividade teatral brasileira, assim como para manifestações artísticas em geral, se tornando um local mais propício para a aceitação de expressões de arte que fogem do comum. Lucas Cordeiro conta que, dentre os três estados em que Naked Boys Singing! foi apresentado, São Paulo foi o local onde o público era mais diverso e foram desenvolvidas mais discussões acerca do tema entre os atores e quem assistia. 

Grande parte do público paulista dizia ter sido surpreendida pela peça, além de ter se reconhecido nas situações encenadas pelos atores. “O nu era chocante no início, mas, com o passar da peça, o público dizia que ficava em segundo plano. O corpo sem roupas passava a não chamar tanta atenção como as histórias retratadas nas esquetes”. 

Em Curitiba, Lucas diz que o público era muito mais fechado, observador e silencioso, e que houve pouca troca entre os atores e a plateia. Principalmente no Rio de Janeiro, o público era majoritariamente masculino e as expectativas acerca da peça, em grande parte das vezes,  não condiziam com o que ela queria transmitir. “Alguns achavam que o musical poderia se assemelhar a um cabaré, que haveria cenas de cunho sexual e que a plateia poderia tocar nos corpos dos atores e interagir com eles”, afirma Lucas.

O ator relata que situações inconvenientes chegaram a ocorrer com os atores. “Diversas vezes os atores recebiam convites para sair, jantar, viajar, eram assediados mesmo. Uma parte do público até imaginava que fazíamos outros trabalhos que envolviam a prática sexual e que fugiam do lugar do teatro”. 

Por fim, Lucas conta que a peça não teve nenhum patrocínio. “Nenhuma marca quis associar seu nome [ao musical]. Nem quiseram conhecer a peça de verdade”. Essa falta de apoio limita o conteúdo a um público muito reduzido, que já está acostumado e familiarizado com o assunto. “Fica muito mais difícil dessa discussão chegar no público mais velho, mais conservador, para que os preconceitos realmente sejam desconstruídos”.

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