As cores berrantes da violência não são nenhuma novidade na paleta do cinema. Filmes que fazem dela mote principal de seus enredos ou a colocam como ingrediente mercadológico para atrair público podem ser citados em pencas. Isso porque há uma relação muito profunda entre essa forma de arte e o que parece ser um componente recalcado da natureza humana, relação que certamente tem algo a ver com a catarse: estou falando da realização de uma “terapia do inconsciente” de cada um, e por tabela, do próprio inconsciente coletivo de uma sociedade através do cinema.
Se por um lado, o trato da violência não é privilégio do cinema nacional, é fácil reconhecer que algo une uma série de produções cinematográficas recentes – a temática da violência, especificamente aquela associada à desigualdade, está ali, é carta marcada do cinema da retomada (nome dado às produções brasileiras a partir da década de 90, quando a Lei do Audiovisual e alguns incentivos orçamentários por parte do governo passaram a fomentar o audiovisual nacional). A partir de Notícias de Uma Guerra (1999), o tema passaria a pipocar nas filmagens de diversos diretores, como os de Cidade de Deus (2002), Carandiru (2003), Ônibus 174 (2002), Tropa de Elite (2007), trazendo à tona uma realidade de certa forma obscurecida pelo poder e não raro tratada superficialmente pela mídia.
Nesse contexto em que existe um vácuo de debate público, o cinema se torna espaço privilegiado para tocar no assunto e reforça seu papel político e simbólico perante o imaginário popular. Quando, por exemplo, resolve abordar a problemática do tráfico, com a qual a violência vem a reboque, está cutucando o vespeiro de um poder paralelo, que como tal, é delicado de ser discutido publicamente. O problema então acaba eclipsado nas vias onde devia emergir, de forma a ser nosso cinema a válvula que assume o papel de revolver essas questões e realizar um enfrentamento parcial delas.
Para Esther Hamburger, socióloga e professora no departamento de cinema da USP , a favela, cenário inseparável da produção contemporânea, sempre esteve presente no cinema brasileiro – desde os anos 50, com Nelson Pereira dos Santos, em Rio 40 Graus (1955), por exemplo. Numa ótica também realista, queria então aproximar-se da realidade como tem sido feito atualmente, tematizando a violência e a pobreza em diferentes contextos. Isso porque, segundo ela, a sétima arte tem maior escopo e vocação para realizar essa abordagem do que a TV: a televisão nacional, em oposição ao cinema, nasce e se estabelece em meio a um certo conceito de vida moderna que glamuriza a sociedade de consumo (diretamente ligado a sua maior difusão ter sido durante o Milagre Econômico). Mais um motivo pelo qual essas matizes socioculturais tidas como mais “feias” – violência, pobreza, periferia – vazaram naturalmente para a representação audiovisual dos filmes.
A exploração de uma faceta marginalizada em Carandiru fez, baseado no livro de Dráuzio Varella, o retrato do que chegou a ser o maior complexo carcerário da América Latina, narrando também as histórias de alguns prisioneiros para mostrar, ao final, o massacre de que foram vítimas no presídio. Há cenas de muita violência, apontando para o cotidiano truculento daqueles presos e de seu fim injustificável, no qual presos foram sacrificados como escória. Em Cidade de Deus, a trama se encerra no universo da favela carioca e se desenvolve junto às figuras de meninos negros e pobres, tendo recebido críticas por supostamente fixá-las à imagem do marginal, deixando de fora o envolvimento da classe média, por exemplo. Tropa de Elite, por sua vez incluiu o universo mais complexo que ultrapassa o morro, e traz (utilizando-se da narração em off do icônico Capitão Nascimento) a perspectiva do Bope para as telas. O realismo cru nas cenas de violência está presente em todos eles, embora de forma multifacetada.
Se no Cinema Novo a violência era evocada em linguagem alegórica, no cinema brasileiro recente ela recebe um tratamento mais literal e documental. A pluralidade de títulos (há muitos além dos citados aqui) cria uma espécie de interlocução, na qual vários pontos diferentes se expressam, um na esteira do outro, não havendo um discurso acabado e definitivo. Carregam o desafio de penetrar assuntos “explosivos” sem reproduzir estereótipos, de construir uma narrativa de impacto sobre a violência sabendo não usá-la abusivamente, tática que propagaria seus vícios. Sem dúvida, possuem o mérito de reverberar, gerar discussão e inspirar outros trabalhos com novos pontos de vista, dos quais, na opinião de Esther, eventualmente irá irromper uma expressão estética que traga transformação. Dessa forma, a arte seria propositiva do modo de lidar/dar conta de um Brasil marcadamente violento.
Em última análise, o que dá pra dizer sobre alguns dos maiores êxitos de bilheteria nacional da última década, sem reduzir a riqueza de sua diversidade a um rótulo, é que são caracterizados pela ambiguidade. Faca (já que falamos de violência) de dois gumes, paradoxo de difícil equação entre o teor denunciativo presente nas cenas violentas e a espetacularização da dor; entre a fidelidade de um retrato e sua possível contribuição em perpetuá-lo como espetáculo.
Por Juliana Lima
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