Por Gabriela Nangino (gabi.nangino@usp.br)
No Oscar 2023, A A24 recebeu dezoito indicações, um grande recorde do evento. Apesar de ter entrado no mercado com a proposta de conceder maior liberdade criativa aos diretores e impulsionar obras alternativas, a produtora é, atualmente, tão grande e lucrativa quanto estúdios centenários, como Paramount e MGM.
Bruno Carmelo, crítico de cinema e especializado em cinema queer, concedeu entrevista ao Cinéfilos, e comentou sobre a presença da A24 no universo cinematográfico. “Ela [A24] preenche um espaço de mercado importantíssimo, que poucos conseguem atingir: está entre o cinema popular e o cinema de arte”, diz. “Ela encontrou um nicho muito carente de produções e conseguiu aproveitá-lo”.
O estúdio foi capaz de consolidar a influência de muitas obras que, em outro cenário, não receberiam o mesmo hype. A seleção apurada das produções, que compactuam com as tendências estilísticas e filosóficas contemporâneas, agrega ainda mais ao crescimento e manutenção de relevância da produtora, incluindo performances e direções atemporais. “[O estúdio] tem uma noção de onde subverter que não é exatamente radical — está longe de um cinema experimental —, mas está próximo o suficiente da indústria para conseguir reconfigurar padrões pré-estabelecidos”, comenta Carmelo.
O entrevistado também ressalta que um diferencial da empresa é contratar atores famosos para interpretar papéis que estes raramente fariam em estúdios tradicionais. Isso ocorreu em uma das produções mais recentes da produtora, Babygirl (2024), estrelado por Nicole Kidman. “Diversos projetos da A24 acabam recebendo a atenção e lucrando com a popularidade do ator, e, para o ator, é interessante poder mostrar algo que ele não faria normalmente”.
Em entrevista à Jornalismo Júnior, Thiago Barboza, estudante de cinema e representante da @a24brasil nas redes sociais, opina: “muitos filmes da A24 agem como um refúgio para muita gente; é uma empresa que criou sua importância, e não consigo imaginá-la parando”. Com paixão pela criatividade, originalidade e subjetividade do cinema, o estúdio promete continuar em alta e trazer cada vez mais estrelas às telas nos próximos anos — conciliando com excelência o foco comercial e o artístico e quebrando barreiras narrativas.
Os primeiros passos
Nascida em 20 de agosto de 2012, a A24 surgiu como uma iniciativa dos veteranos do cinema Daniel Katz, David Fenkel e John Hodges. Criada como uma distribuidora de filmes independentes, a empresa tinha como objetivo trazer projetos de fora do circuito comercial hollywoodiano para o público. Seu nome foi inspirado na estrada A24, que conecta Roma a Montepulciano, na Itália, simbolizando uma conexão entre o velho e o novo.
Seus primeiros grandes sucessos ocorreram em 2013, distribuindo filmes como Bling Ring: A Gangue de Hollywood (Bling Ring, 2013), de Sofia Coppola, e Spring Breakers: Garotas Perigosas (Spring Breakers, 2012), de Harmony Korine. Com um orçamento modesto de US$6 milhões, este último obteve uma bilheteria superior a US$31 milhões. Com o passar dos anos, a qualidade dos projetos distribuídos continuou a melhorar, e a A24 trazia filmes cada vez mais premiados e aclamados aos cinemas tradicionais — como Ex Machina (2015), O Lagosta (The Lobster, 2015), O Quarto de Jack (Jack’s Room, 2016) e o documentário Amy (2015).
Em 2016, a então distribuidora deu um grande passo ao se transformar oficialmente em produtora, assumindo o controle dos processos iniciais de concepção e execução das obras. Esse movimento marcou o início de um catálogo de sucessos notáveis. Thiago Barboza comenta a respeito: “É legal entender esse processo e ver que deu certo, tanto que outras empresas estão seguindo o mesmo caminho”, comenta, referindo-se a estúdios como a NEON, distribuidora que pretende fazer o mesmo movimento migratório.
O primeiro filme produzido pela A24 foi Moonlight (2016), que, com um orçamento de apenas US$4 milhões, arrecadou US$65 milhões e conquistou o Oscar de Melhor Filme na cerimônia de 2017. A partir desse marco, a produtora continuou a emplacar sucessos, e até 2021, já somava 31 indicações ao Oscar.

Fora da caixa
Com estratégias de identificação com o público e foco em garantir visibilidade a questões que permeiam a sociedade atual, muitas obras da A24 são uma oportunidade de explorar ideias inovadoras, tanto para os diretores quanto para o público. Divergindo dos blockbusters, que optam por narrativas mais previsíveis que garantam a satisfação do “final feliz” ao espectador, o estúdio tende a investir em projetos que estimulam o senso crítico do público e não subestimam a sua capacidade de absorção.
“A A24 é uma produtora que detecta talentos e contrata muitos diretores jovens para fazerem projetos com um pouco mais de estrutura. Então, é compreensível que as histórias e os personagens também reflitam essas preocupações da juventude”, diz Carmelo.

Para o entrevistado, o estúdio tem uma especialidade diferenciada: realizar projetos que abordam vivências de diversas minorias, sem que o fato de ser de um grupo minoritário se torne um conflito por si só. “Eles entenderam que é bom ter criadores e chefes de equipe que sejam representantes dessas vivências. Há muito mais diretores negros, mulheres e LGBTQIA+, e, consequentemente, histórias em que essas pessoas estão apenas vivendo, enfrentando problemas como trabalho, dinheiro, ou amor”.
Um exemplo disso, para Carmelo, é Vidas Passadas (Past Lives, 2024), longa que gerou comoção no público por sua sensibilidade no tratamento de temas como pertencimento e amor. “O filme aborda a questão da protagonista asiática lidando com suas raízes, mas o conflito principal é amoroso”, pontua.
O crítico também exemplifica tendências similares em obras de destaque, como O Amor Sangra (Love Lies Bleeding, 2024), thriller protagonizado por um casal lésbico, cujo enredo gira em torno de crimes passionais e conflitos financeiros. Em sua opinião, o modelo tradicionalmente hollywoodiano de obras sobre diversidade não abria portas para esse tipo de abordagem, pois optava por histórias mais moralistas e pouco naturais. Filmes feitos por e para jovens propiciam conversas mais abertas com o público sobre sexualidades fluidas, questões de gênero ou raciais sem que isso seja um tabu, como em Moonlight.
Na nova onda de diretores, um exemplo notório lançado pela A24 é Greta Gerwig, responsável pelo sucesso de Barbie (2023). “Ela ganhou notabilidade com Ladybird (2017), e recebeu a cadeira de diretora mulher para fazer diversos filmes grandes depois disso”,comenta Barboza. “É uma forma de trazer outro olhar para questões antigas, mas uma nova geração por trás das câmeras ajuda a trazer um senso de pertencimento”.

Outro aspecto importante, para o estudante, é a liberdade criativa concedida às equipes de direção. Um exemplo é a realização do filme O farol (The Lighthouse, 2019), um indie indicado ao Oscar 2020 na categoria de Melhor Fotografia. A obra é inteiramente em preto e branco, mas, ao invés de ser filmada digitalmente como a maioria dos filmes contemporâneos, o diretor teve a oportunidade de encomendar câmeras específicas para gravar em B&W.

“A A24 tem um papel crucial em trazer criatividade, liberdade e relevância social para o cinema. Essa equação criou uma cara pra empresa, e isso veio junto com a onda dessas questões serem levadas a pauta e cada vez mais discutidas”
Thiago Barboza
Um passeio entre gêneros
A notoriedade da A24 tem raízes não só na diversidade de temas abordados, mas, também, na variedade de gêneros. Do terror ao romance, o estúdio tem sucessos para agradar todos os públicos. Muitas obras, inclusive, optam por combinar elementos de diferentes gêneros, tornando difícil a tarefa de classificá-las com exatidão.
Para Carmelo, isso só é possível através de uma conciliação entre o desejo do público e dos produtores. “Quando é um terror, um gênero mais popular, A A24 usa uma linguagem que geralmente não é do terror, considerada mais ‘sofisticada’. Quando é um drama, ele é feito de forma mais acessível”, comenta.
Segundo o entrevistado, um grande mérito do terror da A24 é conceder um orçamento muito além do esperado para roteiros que normalmente não têm acesso a tal estrutura. “Filmes de baixíssimo orçamento costumam ser desvalorizados devido à qualidade estética da produção”, continua. “E não são só cinéfilos que desvalorizam, mas festivais de cinema. A gente não vê filmes de terror disputando em festivais como Cannes ou Veneza”. Contratando grandes diretores de fotografia e montadores para a equipe, surgem filmes viscerais e provocadores em seus temas, mas não em sua aparência.É o caso de O Hereditário (Hereditary, 2018) e Midsommar (2019), dirigidos por Ari Aster — uma das maiores revelações do estúdio. Ambos são filmes de horror, mas que intercalam cenas de violência e gore com cenários esteticamente agradáveis ao olhar do espectador. Carmelo explica o motivo dessa escolha: “A imagem mais polida é comumente associada à qualidade […]. Esses roteiros, nas mãos de produtores convencionais, teriam um quinto do orçamento, menos cuidado e profissionais mais iniciantes”.

Carmelo explica que a indústria tradicional tem métricas muito rígidas para onde alocar o dinheiro, e a A24 é capaz de quebrar essas métricas. Um exemplo é Ex-Machina (2015), vencedor do Oscar de melhores efeitos visuais devido a um alto investimento percentual. “Foi um filme barato, disputando com filmes que tiveram 10 vezes seu orçamento total ou mais”, explica. “A questão de como distribuir e aproveitar seus esforços é muito interessante”.
O estúdio também consegue tratar temas polêmicos de forma atípica. Um exemplo recente é a trilogia X: a marca da morte (2020-2024), que aborda a indústria da pornografia e insere estrelas do pornô em uma trama de thriller e horror slasher, sem gravar nenhuma cena reveladora — subvertendo padrões do subgênero.

Caminhando para vertentes como o drama, um diferencial da A24 é a sutileza na representação dos sentimentos, como melancolia e nostalgia, afastando-se do tom melodramático hollywoodiano. A sensibilidade estilística, associada à humanidade e profundidade das temáticas, é a fórmula ideal para atrair consumidores tanto do cinema mainstream quanto do cinema de arte.
Um exemplo marcante é Aftersun (2022), obra protagonizada por Paul Mescal que trata de um relacionamento entre pai e filha, enquanto o pai enfrenta desafios emocionais e mentais. “A gente não fala qual é o tema do filme em nenhum momento, mas para quem vê teve uma repercussão belíssima, é uma sutileza total”, opina Carmelo.

Geração Z: alcance e conexão
Acima do conteúdo atrativo, a A24 demonstra entender uma preocupação contemporânea: a dificuldade de produzir filmes que prendam a atenção do espectador jovem. Em entrevista para a Fast Company Brasil, Andrew Taylor, professor da Audencia Business School, dissertou escolhas feitas pelo estúdio que demonstram o engajamento com essa nova audiência. O principal exemplo é Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All At Once, 2022), grande vencedor do Oscar 2023.
“Costuma-se dizer que os jovens de hoje têm uma capacidade de atenção muito limitada, em parte por causa da exposição a vídeos curtos em plataformas como TikTok. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo abraça essa ideia, e foi editado de forma tão rápida, com tantas mudanças espaciais e temporais, que é quase possível assisti-lo como se fosse vídeos no TikTok. Dessa forma, o filme se distancia da edição tradicional de Hollywood e fala diretamente com a Geração Z.”
Andrew Taylor

Além das escolhas técnicas, existe uma conquista do estúdio por trás das bilheterias de cinema: a comunicação com o público jovem. Com a ascensão dos streamings, os cinemas e distribuidoras sofreram drasticamente com a redução dos lucros. Porém, a chave deste enigma encontra-se na modernização do marketing dos filmes, o que ajuda na fortificação da marca na opinião pública.
“Uma percepção de produtoras jovens é saber usar a rede social”, comenta Carmelo. “A comunicação hoje sobre filmes se passa muito pelas redes: saber dialogar com as pessoas, fazer memes, fotografias atraentes e imagens virais, é algo em que indústrias mais antigas e consolidadas não se atualizaram ainda”.
Para Barboza, como apreciador da sétima arte, esse esforço ultrapassa o desejo por lucro e contribui para uma necessidade artística de manter o cinema vivo. “A A24 busca cativar a geração mais nova para incentivá-la a continuar gostando de filmes e indo ao cinema”, diz. “Cria-se o hábito das pessoas seguirem a empresa e seguirem os artistas, e isso se retroalimenta”.
Próximos passos
A A24 adota um método de alto volume de produções de baixo orçamento. O orçamento médio varia entre US$15 milhões e US$20 milhões, com que o estúdio lança cerca de 18 a 20 longas por ano. O objetivo dessa estratégia é garantir margens de lucro mais altas. “Como ela faz filmes um atrás do outro, muitos não dão nada certo, e a gente tende a esquecê-los”, diz Carmelo. “É sempre uma aposta quantitativa”.
Guerra Civil (Civil War, 2024), estrelado pelo brasileiro Wagner Moura, foi um recente investimento de US$50 milhões, o filme mais caro da A24 até então. “É um independente cada vez mais caro e menos independente”, comenta o entrevistado.
A obra, dirigida por Alex Garland — renomado por seu trabalho em Ex-Machina —, critica a polarização política extrema nos Estados Unidos, que culminaria em uma guerra civil. A distopia acompanha um grupo de jornalistas em busca do clique perfeito em meio à catástrofe.
O gênero de ação, anteriormente pouco explorado, exige um orçamento elevado em relação a efeitos especiais e à recriação de cenários, e representou um momento de expansão da capacidade produtiva da A24. Essa novidade torna incerta a direção que a empresa pretende seguir no futuro.

Segundo Barboza, a tendência da empresa é se dividir entre duas frentes, pois competir com produtoras consolidadas é um terreno que precisa ser testado aos poucos. “A primeira é manter o cunho autoral produzindo filmes de baixo orçamento, mas, na segunda, tentar chegar aos poucos no nível de bilheteria dos blockbusters”, explica. O crescimento, para Carmelo, gera questionamentos. “Conforme a A24 faz filmes cada vez mais caros, existe aquele medo dela perder a própria identidade”.
*Imagem de Capa: Reprodução/Youtube/A24