Por Amanda Nascimento (amanda_nascimento@usp.br) e Leticia Yamakami (leticiayamakami@usp.br)
Há exatos 50 anos, no dia 30 de outubro de 1974, os boxeadores Muhammad Ali e George Foreman protagonizaram a maior e mais famosa luta do boxe. Tendo seu palco em Zaire — nome da República Democrática do Congo durante seu período ditatorial entre 1971 e 1997 —, a “Luta do Século”, ou “Rumble in the Jungle”, marcou a história não só da modalidade, mas de todo o esporte.
O evento não é memorável apenas pela reviravolta esportiva — com a reconquista de Ali em relação a sua carreira e ao título dos pesos-pesados —, mas também pelos contextos políticos, sociais e econômicos nos quais ele ocorreu. Além disso, a disputa foi o estopim para que Ali reconquistasse de vez seu legado como atleta e ser-humano.
Contando com a ‘Luta do Século’, Ali foi campeão do mundo na categoria pesos-pesados três vezes: em 1964, 1974 e 1978 [Imagem: Richard Bartlaga/Real Chicago Sports/Flickr]
Trajetórias que criam e quebram expectativas
O lutador, que também foi um dos símbolos do movimento negro e da militância a favor dos direitos civis de populações marginalizadas, se encontrava no auge de sua carreira esportiva na década de 1960, já contando com um título mundial. Porém, em 1967, foi convocado para se juntar ao exército estadunidense e batalhar pelo seu país na Guerra do Vietnã.
Agarrando-se aos seus ideais e princípios, ele recusou-se a acatar o chamado. “Não vou viajar 10 mil milhas para ajudar a assassinar e queimar outra nação pobre para que simplesmente continue a dominação dos senhores brancos sobre os povos de cor mais escura mundo afora”, declarou publicamente na época. Como punição, Ali teve seus cinturões tomados, foi afastado do esporte por três anos e condenado a cinco anos de prisão.
Para conseguir liberdade, ele pagou a fiança. A sentença foi revista e revertida pela Suprema Corte norte-americana no final de 1970, o que permitiu a sua volta aos ringues. Mesmo assim, o hiato de três anos foi suficiente para que seu desempenho tivesse regredido. Isso é o que conta Breno Macedo, treinador de boxe e historiador, em entrevista ao Arquibancada.
O profissional relata que Ali chegou a disputar o título do mundo contra Joe Frazier pouco tempo depois de ter saído da prisão, mas perdeu o embate. No 15º e último round, Frazier acertou o queixo do oponente e o levou ao chão. Em decisão unânime, os juízes decretaram o recém-liberto como perdedor. “Então, Ali já tinha dado sinais de que não era mais o mesmo”, afirma Macedo.
Do outro lado, George Foreman construía uma sequência ininterrupta de vitórias. Lutando também contra Joe Frazier, ele saiu vitorioso e ganhou o título mundial de pesos-pesados. Segundo o treinador e historiador, “não foi uma vitória, foi um massacre”. Logo, a mídia acreditou naturalmente que Foreman iria detonar Ali e conquistar mais um cinturão.
George Foreman possui dois títulos mundiais: um conquistado em 1973 e o outro em 1994, aos 45 anos de idade, o que estabeleceu o recorde de campeão com maior idade entre os pesos-pesados [Imagem: Domínio Público/Wikimedia Commons]
O caminho duvidoso até a luta
O espectáculo do século foi um evento elaborado pelo polêmico Donald “Don” King. Promotor de lutas, a mente por trás do combate era recém-saído da cadeia — foi condenado por homicídio de segundo grau em 1967 — quando cruzou caminhos com Ali pela primeira vez em 1972. King se aproveitou do desejo do pugilista de recuperar sua glória nos ringues para surfar nas oportunidades que o nome de Ali traria.
As circunstâncias, somadas aos interesses do promotor em Foreman, deram palco ao que viria a ser um dos momentos mais icônicos da história do esporte. A ideia de um combate entre o atual campeão, George Foreman, e o herói caído, Muhammad Ali, foi ofertada por King por um valor de $10 milhões de dólares.
O número estratosférico era a estratégia para garantir que a luta fosse organizada somente por King. No entanto, era dinheiro que nem o próprio agente possuía. A situação o forçou a procurar outros países que pudessem financiar o evento, já que não era uma figura bem vista nos Estados Unidos — cortesia de suas más práticas de negócios.
Assim, o combate de gigantes ficou marcado para acontecer em Kinshasa, no então Zaire, graças à iniciativa do governo do ditador Mobutu Sese Seko, no que seria uma troca de favores entre ambas as partes. Para King, o país financiaria os custos de sua luta, e para Mobutu, a publicidade oriunda do confronto fortaleceria a força de seu regime.
Por que em Kinshasa, Zaire?
O contexto sociopolítico da nação anfitriã é importante para entender os acontecimentos que se sucederam. O país encontrava-se sob um regime militar desde 1965, quando Mobutu orquestrou um golpe de estado e tomou o poder. Antes disso, o território era chamado de Congo, e passava por períodos de resistência contra o domínio colonial belga, um dos mais brutais do imperialismo no continente africano.
O novo tirano, que reivindicou o título de “Pai da Nação”, renomeou o território para República do Zaire e instituiu um partido nacionalista único, o Movimento Popular da Revolução (MPR). O anseio pela validação de seu status aos olhos ocidentais e a necessidade de revitalizar a economia da pátria fizeram com que a ideia de atrair turistas para a região surgisse. A proposta de financiar a luta surgiu com esse objetivo.
O regime de Mobutu caiu em 1997, quando o país adotou a democracia e passou a se chamar a República Democrática do Congo, nome que permanece até hoje [Imagem: Domínio Público/Wikimedia Commons]
Cartazes com frases como “Ali e Foreman confiam em Mobutu. Faça o que eles fazem, tenha confiança em Mobutu” foram usados para divulgar o embate. Breno Macedo explica que, sendo a primeira disputa de pesos-pesados no meio da África, com dois afro-americanos, a mensagem política era clara: “nós saímos escravizados e estamos voltando como reis do mundo”.
Essa efervescência nacionalista também impactou a percepção do público. A persona de Ali, um homem negro, anti-colonial e seguidor da fé islâmica ressoou com o povo do Zaire, que prontamente acolheu o ícone assim que pisou seus pés em Kinshasa. Já com Foreman, a história foi outra.
“A gente não pode deixar de falar do carisma do Ali. Ele construiu sua carreira em volta da sua forma de se posicionar e do pioneirismo do trash talking”
Breno Macedo
Com seu nome inglês, o campeão mundial já tinha uma desvantagem em relação à seu oponente — ele evocava a imagética colonial. Seu pedido por um pastor alemão piorou a situação, uma vez que o cachorro era associado ao Império Belga. Não demorou para que a população escolhesse lados: os passos de Ali eram acompanhados do grito “Ali, bomaye!” — em tradução “Ali, mata ele”.
A briga teve direito até mesmo a um esquenta, o Zaire 74, festival de música organizado para levantar os ânimos da luta. O evento durou três dias, entre 22 e 24 de setembro de 1974, e contou com performances de lendas como James Brown, Celia Cruz, B.B King e Bill Withers. Com um público de 80 mil pessoas, o espetáculo foi eternizado em um álbum compilação lançado em 2017.
A luta, inicialmente programada para acontecer no dia 25 de setembro, teve que ser adiada devido a um corte no supercílio de Foreman durante um treino. Os boxeadores, que já estavam em terras africanas, esticaram sua estadia por mais cinco semanas, até 30 de outubro de 1974, dia do Rumble in the Jungle.
Rumble in the Jungle
Na presença de 60 mil espectadores, as estrelas do boxe se encontraram às 4h da manhã no horário local, para que as audiências globais pudessem assistir à luta no horário nobre. De um lado, Ali, conhecido por sua velocidade, do outro, Foreman, famoso por sua força impiedosa. Independente do resultado, era certo testemunhar um espetáculo.
Estima-se que cerca de 60% da população mundial assistiu a luta por, ao menos, um breve período de tempo (Vídeo: Reprodução/daskalo jacob/Youtube)
Visto os dois grandes talentos, o esperado era uma luta definida por estratégias. Foreman, que em teoria era o favorito para a vitória, teve que lidar com o apoio massivo recebido pelo adversário, além da pressão da imprensa. O primeiro round começou com ganchos de direita de Ali, mas que não afetaram Foreman.
Ao perceber que a tática o cansaria facilmente, Ali optou pelo caminho contrário nos próximos rounds. A técnica “rope-a-dope” colocou-se em ação pela primeira vez. Enquanto se apoiava nas cordas do ringue, o estrategista permitia que golpes de Foreman viessem em sua direção. O apoio nas faixas, além de fatigar seu rival, minimizava o impacto das pancadas.
A jogada continuou até o oitavo (e último) round, sem que Foreman percebesse que se tratava de um plano. Foi nos segundos finais, após dominar a luta inteira, que o título se esvaiu de suas mãos. Ali, energizado e feroz, começou a revidar com repetidos socos e desestabilizou seu oponente.
À medida que Foreman caia no chão, uma surpresa: ao invés de continuar com os ataques, eles cessaram. Macedo acredita que o último soco jamais desferido foi um ato de grandeza por parte de Ali: “Daí vem toda essa mística em volta dele: um símbolo de paz, que lutou contra a islamofobia, o racismo e as guerras”. Com Foreman no chão, o juiz decretou nocaute e o campeão do mundo voltava a ser Muhammad Ali.
“Ele tem um soco que não deu, mas mesmo assim alcançou o nocaute. É algo brilhante”
Breno Macedo
Décadas depois, em 1996, a luta seria tema do documentário When We Were Kings, que venceu o Oscar [Imagem: Domínio Público/Wikimedia Commons]
Legados: Ali ganhou, mas Zaire foi o perdedor
O ato de patrocinar a luta proposto por Don King fomentou também a corrupção de Mobutu. Como consequência, a ditadura do Zaire obteve controle da participação de 42,5% dos 50 milhões de dólares que o evento arrecadou. Para além disso, Mobutu arquitetou a luta como uma espécie de “pão e circo”: utilizou-a para distrair a população de seu crescente descontentamento com a gestão de sua nação.
De acordo com um artigo de opinião escrito por Stephen R. Weissman em 1997 para o Washington Post, a mídia mundial, sobretudo estadunidense, que viajou até o país do combate para cobrí-lo, falhou em esclarecer os reais motivos de Mobutu ter sediado a partida. “Se a imprensa tivesse usado melhor sua estadia de dois meses em Kinshasa, talvez a política dos Estados Unidos no Zaire tivesse evoluído de forma diferente”, afirma Weissman.
Segundo o jornal, essa negligência jornalística foi uma das responsáveis para que, ao longo da década de 1980, os Estados Unidos continuassem a fornecer apoio militar e econômico ao regime de Mobutu, apesar de relatos de corrupção e graves abusos de direitos humanos.
Sob outro viés, a grande quantidade de dinheiro fornecida a Ali e Foreman foi uma característica que se popularizou no boxe. “Se você pegar os esportistas mais bem pagos dos últimos dez anos, você sempre vai ver um boxeador na lista. Às vezes, ele é até o mais bem pago”, comenta o treinador Breno Macedo, que ainda faz uma comparação com outras modalidades de lutas: “os astros do MMA, por exemplo, ganham 100 vezes menos”.
Breno reforça que, sem dúvidas, o maior legado da Luta do Século foi a consolidação da persona de Muhammad Ali. O evento histórico foi uma catarse em sua carreira e um dos pilares para que ele chegasse tão alto no hall do fama quanto chegou. “Ele é ídolo em todas as culturas. Muita gente começou a lutar boxe por causa dele e almeja ser como ele foi”, explica o entrevistado. “Ele virou um ícone pop”.
“Os socos que ele não me deu enquanto eu estava caindo fizeram dele o maior aos meus olhos”
George Foreman
Muhammad Ali faleceu em 3 de junho de 2016, com 74 anos, e recebeu milhares de homenagens de pessoas que o admiravam como esportista, militante e ser-humano [Imagem: Domínio Público/Wikimedia Commons]