Você certamente já deve ter se deparado com o termo “apropriação cultural” em algum texto ou discussão pela internet; se isso ainda não aconteceu, já está mais do que na hora de ficar a par dessa discussão.
O debate sobre apropriação cultural, apesar de delicado, consiste em uma mensagem bastante simples e direta: saber respeitar o espaço de protagonismo e expressão cultural dos diferentes grupos existentes em nossa sociedade.
Para destrinchar o assunto, primeiramente é preciso fazer uma análise tendo em vista um panorama histórico. Com o advento de tecnologias responsáveis pelo encurtamento de distâncias, seja na época das caravelas ou na era da internet, é natural que haja um intercâmbio de informações e costumes entre os diferentes povos.
É preciso perceber que, com isso, os mais diversos processos colonizadores e exploratórios também se estabeleceram e acabaram por instituir, entre as civilizações, o que podemos chamar de relações de dominação, como se um povo pudesse ser superior ao outro. E isso muda tudo.
Isso porque a questão da apropriação cultural diz muito sobre como duas pessoas com características e/ou origens distintas são percebidas de forma diferenciada dentro de uma mesma situação ou contexto. Enquanto uma pessoa branca que usa dreads pode ser vista como “hipster”, “estilosa”, “alternativa”, “hippie” ou seja lá a denominação que lhe for empregada, um negro provavelmente passará pelos julgamentos de “sujo”, “favelado”, “marginal”, por exemplo.
Ensaio Carmem Miranda Reloaded da edição Fevereiro 2013 da revista Vogue. (Imagem: Vogue Brasil – Divulgação)
É claro que o conceito de apropriação cultural vai muito além do mundo da moda. Ela se amplia, para além do estético, a costumes, objetos e qualquer outro uso indevido que uma sociedade possa fazer por acreditar ter o aval para aquilo, sendo que antes atribuía valores inferiores para esse mesmo ato.
O que o Baile da Vogue e Mariana Mader têm em comum
Quem já foi ou costuma ir ao festival musical Lollapalooza sabe bem da efervescência de estilos encontrada naquele espaço. Mais do um ambiente para curtir um bom som ou aproveitar todas as atrações oferecidas pelo evento, o Lolla também é palco para combinações extravagantes e autênticas originadas de inspirações das mais diversas. É claro que em 2016 não seria diferente.
O que nos chamou a atenção nesta edição foi a repercussão dada à brasiliense Mariana Mader. Inspirada na blogueira negra Magá Moura, ela atraiu diversos olhares e fotógrafos por suas longas tranças Box Braids usadas no festival. Fotos e entrevistas circularam por diversos sites, muitos dos quais a indicavam como uma das pessoas mais estilosas que passaram pelos dois dias de festival.
Quem estava lá pode dizer: Box Braid não faltou. Rosas, roxas, azuis, amarelas, presas, soltas, em forma de coque ou maria-chiquinha, elas foram representadas por garotas negras maravilhosas que mereciam tanto ou mais destaque que Mariana Mader ou outras brancas que também se apossaram do look afro. Em uma comparação mais distante, para além dos comentários inexistentes sobre outras garotas que exibiam o mesmo penteado, basta reparar nos comentários recebidos pela atriz e cantora Zendaya Coleman durante a cerimônia do Oscar de 2015, quando a apresentadora Giuliana Rancic disse que Zendaya devia cheirar a Patchouli (uma planta) e maconha.
Outro exemplo de apropriação cultural bastante recorrente entre o público do Lollapalooza é o uso de cocares de inspiração indígena. Além de homogeneizar toda uma diversidade de tribos e destituir o valor de um símbolo imaculado, todo um passado genocida é banalizado em função do “estilo”.
O Baile da Vogue, ocorrido em janeiro desse ano, aqueceu as discussões sobre apropriação cultural. Trazendo o tema “Pop Africa”, o evento de gala promovido pela revista de moda contou com homens e mulheres encrespando seus cabelos lisos e usando ornamentos da cultura africana – muitos deles tidos como sagrados para muitas das religiões existentes no continente – para fazer parte da grande festa. O que para alguns é tradição, para outros tornou-se objeto de customização; o que para uns representa parte de sua história, para outros não é nada mais do que um apetrecho a ser lançado como nova tendência.
Além da problemática mais óbvia, resumir os mais de 1 bilhão de habitantes africanos à reprodução ornamentos tribais é reforçar uma visão imperialista que ainda os vê como um povo primitivo e distante de invenções modernas das mais simples, como sapato, calça e camiseta.
Se a intenção da revista era homenagear o continente, lhes faltou o bom senso de não reduzir a estereótipos uma cultura tão rica e diversa. Nesse balaio de mau gosto, é claro que, ao encontrar uma lista de convidados predominante branca, é alarmante a falta de inserção de negros em ambientes como esses quando a maior parte da população brasileira é composta por eles.
Ao se falar de apropriação cultural, uma vasta gama de outros exemplos pode ser citada. Isso não significa que você deve deixar de comer comida japonesa, assistir a filmes de Bollywood ou ouvir música árabe; jamais.
A verdade é que a apropriação cultural é entremeada por uma linha bastante tênue que diferencia o que é apropriação e o que é assimilação ou troca cultural. A questão que permeia essa discussão, no entanto, não é a busca infundada por uma cultura “pura” e livre de interferências externas, mas se fazer entender que determinados símbolos carregam significados demasiadamente fortes para serem retirados de seus contextos originais por mero capricho ou modismo.
Por Bianka Vieira
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