Artistas originários da região em que nasceu o muralista José Clemente Orozco discutem questão do reconhecimento ao trabalho que realizam hoje nas mesmas redondezas
Por Marina Salles (marina.salles.jor@gmail.com)
Conhecido por seu potencial artístico, que se manifesta desde o período pré-hispânico, o México foi berço de grandes personalidades da pintura e escultura mundial, entre eles, os precursores do movimento Muralista. Mas de que forma o desenvolvimento do trabalho de grandes nomes desse período, como José Clemente Orozco, influencia na produção das novas gerações nascidas na mesma região em que ele deu início à sua trajetória?
Fruto de um contexto histórico específico e de razões sociais que o afastaram de sua cidade natal, Orozco e seus contemporâneos ajudam a contar, hoje, a história de outros artistas que, assim como eles, desejam ter o seu trabalho reconhecido.
O Muralismo
O movimento Muralista tem suas origens na Revolução Mexicana de 1910, que pôs fim ao regime de Porfirio Díaz. Caracterizada por determinado avanço econômico, a era porfirista durou pouco mais de trinta anos e marcou um período de aguda desigualdade social. Assim, seja no campo ou na cidade, o que se via era um cenário de exploração, apesar da chegada do progresso. Segundo o ditador, o governo deveria guiar-se por “pouca política e muita administração”. Dessa forma, com o passar dos anos, o regime foi se desgastando até que rivalidades internas, fraudes eleitorais e o descontentamento da população levaram o país a uma transformação política que se fortificou durante todo o século XX.
Nesse contexto, o Muralismo teve destaque como proposta de arte de caráter indianista dirigida à população, com o intuito de retratar a realidade mexicana, suas lutas sociais e aspectos chave de sua história, tais como a conquista por parte dos espanhóis. Em oposição à pintura tradicional, amplamente difundida entre os intelectuais, essa nova forma de expressão teve por objetivo alcançar a sociedade em geral, sendo inclusive essa a motivação de escolher espaços públicos, os muros, para difundir suas mensagens.
“Nadie es perfecto en su tierra”
José Clemente Orozco nasceu em Zapotlán El Grande, município atualmente denominado Ciudad Guzmán, que se localiza ao sul do estado de Jalisco, no ocidente do país. E embora possa parecer curioso, o único indício da obra desse grande pintor em sua cidade natal é a reprodução de um de seus murais mais conhecidos: Hombre de Fuego, que foi originalmente pintado em um orfanato (Hospicio Cabañas), na cidade de Guadalajara.
Apesar de ter ido viver na capital do estado com sua família quando tinha apenas 3 anos de idade, Orozco não deixou de pintar em Ciudad Guzmán por falta de iniciativa ou motivação, senão porque em seu próprio povoado isso não lhe foi permitido. Segundo um artista plástico da cidade, “Orozco foi buscar reconhecimento em outros lugares, porque não lhe deixaram pintar em sua própria terra em razão de suas ideias. Naquela época, Ciudad Guzmán era um povoado ainda mais fechado no que diz respeito às crenças religiosas e ele era muito liberal, defendia o comunismo em sua essência. Foi por isso que fecharam as portas para o seu trabalho, mas também graças a isso foi que ele triunfou, porque deixou de ser um pintor local”.
Orozco viveu também na Cidade do México, onde expôs pela primeira vez o seu trabalho individual em 1916. Oito anos antes, tinha perdido sua mão esquerda em um acidente ocasionado pelo manuseio de pólvora. Morou ainda nos Estados Unidos, tendo se juntado a seus contemporâneos em 1922, quando regressou ao México pleiteando patrocínio do governo para resgatar a pintura nos murais. Ele, David Alfaro Siqueiros e Diego Rivera ajudaram a fundar o Sindicato dos Pintores e Escultores mexicanos nessa época. Da mesma forma que Orozco, ambos tiveram experiências nacionais e internacionais, deixando um rico patrimônio cultural para as gerações que os precederam.
Herdeiros da região
Filho da mesma terra de José Clemente Orozco, Javier Silva comenta que se descobriu artista já na infância, “meu pai trabalhava com couro e eu gostava de observá-lo exercendo o seu ofício, gravando as peças com fogo, sendo que, além dele, meu vizinho, que desenvolvia seus próprios pigmentos a fim de decorar carros alegóricos para as festas de outubro, foi meu outro professor. A partir daí comecei a despertar a minha intuição”. Referindo-se aos seus primeiros anos de escola, ele lembra ainda de como gostava de desenhar e lamenta não ter continuado seus estudos. Com onze anos, o escultor zapotlense deixou a primária em função de um trauma ocasionado pela tentativa de assédio por parte de um professor. Como sua família não tinha condições financeiras favoráveis, na sequência, ele passou a se dedicar ao negócio comprado pelos pais, um açougue, onde aos dezesseis anos perdeu a mão direita enquanto trabalhava.
Nesse momento, Javier diz que perdeu seu encanto pela pintura, voltou a estudar e terminou o que seriam o ensino fundamental e médio. Com relação à arte, ele se considera autodidata, “eu estudei muito pouco sobre o que diz respeito ao desenho e à pintura, mas sinto que alcancei entender o elementar”. Outra vez inserido nesse universo, ele dedicou-se a produzir caricaturas, e foi com uma delas que chegou a ser convidado para expor seu trabalho no exterior. “Em 1997, fiz a caricatura de um amigo e lhe dei de presente. Ele levou o trabalho para os Estados Unidos e lá, o presidente municipal de Atlanta chegou a vê-la, o que lhe motivou a me fazer o convite para representar o México em uma exposição de pintura que ia acontecer no dia 5 de maio [quando ambos os países comemoram a vitória do exército mexicano sobre os franceses na batalha de Puebla]”. Dessa data em diante, Javier Silva realizou outros trabalhos no país e voltou para sua cidade de origem decidido a dedicar-se com mais afinco à carreira artística.
Já no México, ele exerceu alguns trabalhos como pintor muralista, mas logo se descobriu escultor. Sem deixar a arte que caracterizou seu conterrâneo, Javier passou a destinar seu tempo à técnica da escultura nos murais, trabalhando com o alto-relevo. Uma de suas obras localizada em Ciudad Guzmán é o mural que está na Universidade Pedagógica Nacional (UPN) e que foi feito em comemoração dos trinta anos dessa instituição.
À esquerda, índio sustenta representação do globo terrestre, cuja espiral, segundo o autor, simboliza o infinito que pode ser a aprendizagem do ser humano. Logo abaixo, a figura do franciscano remete ao fundamento da língua escrita, que chega ao povo como uma “chuva de sabedoria”. Ao centro, Javier conta que quis representar o homem universal, o qual, em sua concepção, seria o professor. Mais abaixo, os 3 caracóis simulariam, cada um, dez anos da fundação da universidade. Por fim, à direita, a Mãe Pátria carregando a bandeira nacional vê chegar uma mão que sustenta os princípios básicos da Educação (Artigo 3º da Constituição mexicana). Essa mão, na posição em que está, constituiria um símbolo associado à Psicologia.
Apesar de compartilhar suas intenções por detrás da realização da obra, Javier reforça que a beleza da arte está, justamente, no fato de que cada pessoa pode extrair de um trabalho como esse sua própria interpretação. Sobre seus trabalhos em Ciudad Guzmán, o artista pontua que sente falta do apoio das autoridades locais para com a realização de novos projetos, “aqui tem muita gente que pode produzir, mas ainda contamos com poucas obras. Eu busco espaços, entretanto, ao ar livre mesmo não tenho mais do que duas esculturas e tudo foi iniciativa minha, ninguém veio tocar na minha porta para dizer ‘faça isso’”. Na opinião dele, talvez esse esforço um dia seja reconhecido, mas o importante nesse momento é continuar insistindo, “vi muitos autores que na minha idade se desgastaram, em pensar o que seria de sua posteridade e, para mim, isso não é importante. Um dia vou morrer, é inevitável. Tudo que quero agora é continuar produzindo”.
Em outro povoado do sul do estado de Jalisco, chamado Zapotiltic, o escultor e professor Pedro Sánchez se dedica, principalmente, à composição de peças talhadas em madeira e à escultura religiosa. Ele conta que começou seu trabalho na Casa de Cultura da cidade como diretor e que, hoje, dá aulas de arte. “Estudei administração de empresas e não demorei muito para perceber que esse ramo não era para mim; quando pequeno fazia meus próprios Cristos de madeira”. Segundo ele, seus conhecimentos foram adquiridos sobretudo em Guadalajara, onde teve a oportunidade de trabalhar com “grandes professores” consagrados no ofício, entre eles, Miguel Pinto e Augustín Parra. “Atualmente, meu filho estuda artes plásticas e acredito que ele também terá condições de me ensinar muito”.
A respeito do reconhecimento de seu trabalho, Pedro lamenta que às vezes o escultor de imagens sacras passe despercebido. “Como veem a obra e a associam a um ícone religioso, dificilmente, param para pensar em quem está por detrás daquele trabalho. Em Ciudad Guzmán mesmo, tenho uma escultura do papa João Paulo II na catedral San José e outro dia foram fazer uns retoques nela e queriam tirar a placa que leva o meu nome. Por sorte, um conhecido meu é que estava encarregado do trabalho e explicou para o padre que não podia simplesmente tirar a referência ao autor daquela ou de qualquer outra escultura”.
Em contrapartida, o escultor se sente realizado ao falar de sua obra mais recente que, todavia, está em fase de produção. Sorrindo, ele revela que está gostando dos resultados, “queria ter mais tempo para dedicar-me a projetos pessoais, nos quais não tenho limitações, o difícil é que tenho que pensar em toda a família, precisamos nos manter. Muitas vezes o que acontece é que, ou não te pagam por quanto vale seu tempo, ou te pedem para entregar as obras em um prazo muito curto”.
Sobre o mercado de arte ele comenta que, geralmente, falta discernimento na hora de reconhecer o valor de um trabalho manual, “meus alunos, inclusive, diziam que pechinchavam certas peças e que, agora, que sabem quanto tempo de trabalho precisam investir em um projeto próprio, se arrependem. Também há quem reconheça nossa trajetória, nossos esforços e que, por isso, paga melhor”.
A respeito do assunto, Pedro espera que haja perspectivas de melhora e que seu filho, por exemplo, já não tenha a necessidade de baixar o preço do que são suas obras. “Parece que não, mas nos emocionamos com nosso trabalho, é o caso dessa obra a que estou me dedicando no momento, olho para ela e sinto que só falta se mexer. Para mim, no processo de criação de uma escultura, quando a vejo e tenho a impressão de que ela também me vê é porque me transmite algo, me passa uma mensagem, e isso é bonito. Que pena que não reconhecem esse valor e que isso pode ser um fator limitante para que o artista se entregue completamente ao seu trabalho”.