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As estradas tortas de Burroughs e Cronenberg

Rafael Ciscati Judy Davis belisca o seio à procura do local ideal para espetar uma agulhada. “Esperou por um segundo, depois pressionou o êmbolo, observando o líquido correr para dentro da veia como sugado pela sede silenciosa do sangue”. “É uma viagem Kafkiana – faz você se sentir como um inseto”, suspira. Judy é Joan …

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Rafael Ciscati

Judy Davis belisca o seio à procura do local ideal para espetar uma agulhada. “Esperou por um segundo, depois pressionou o êmbolo, observando o líquido correr para dentro da veia como sugado pela sede silenciosa do sangue”.

“É uma viagem Kafkiana – faz você se sentir como um inseto”, suspira. Judy é Joan Lee, esposa de Bill Lee, alter-ego de William Burroughs. O escritor que, entre uma crise de abstinência e outra, serviu a refeição mais perturbadora de que se tem notícia.

Burroughs, Jack Kerouack e Allan Ginsberg compunham o trio fundador da literatura beat. Intensamente dedicados à criação literária, prosadores ou poetas, seu projeto artístico não pode ser desvinculado da vida desregrada que levaram. Vorazes leitores de Kafka e Rimbaud, imaginação aditivada por toda sorte de psicotrópicos, seus escritos esbanjam experimentalismo: rítmicos, por vezes não-lineares e mesmo surreais. Sonoras onomatopéias e registros coloquiais e excesso de conectivos e ausência de “vírgulas desnecessárias”. Circulando entre a intelectualidade e a marginália (foram eles que ampliaram a circulação do termo hipster- marginal absoluto- que originaria hippie anos mais tarde), nas palavras de Burroughs “os beats disseram o que milhões de pessoas no mundo queriam escutar”.

Muitos, no entanto, foram pegos de surpresa pela degradação que Burroughs reservara para suas histórias. Costumeiramente, os beats escreviam sobre o que vivenciavam: viviam na estrada, viajavam para escrever. Foi durante o período que esteve em Tanger que Will produziu seu “Almoço nu”, uma nauseante incursão autobiográfica pelo mundo da droga, em que relata o inferno do vício. Escrito sob o efeito de diferentes substâncias, o enredo é marcado pela fissura, a angústia da espera pelo próximo pico, ainda que se esteja no auge da viagem mais recente. Guia-se por ciclos, que alternam entre momentos de maior lucidez, nos quais o uso da droga é descrito de maneira quase literal, e outras passagens de puro delírio, no ponto alto da intoxicação.

A absoluta ausência de linearidade (o livro foi organizado pelo método do cut up, em que trechos são realocados aleatoriamente), e a profusão de metáforas — “ corretores de sonhos estranhos e nostalgias testadas nas células sensibilizadas da doença da droga e trocadas pela matéria-prima da vontade” — renderam-lhe a fama de infilmável.

Até a chegada de “Mistérios e Paixões” (Naked Lunch – 1991), roteiro e direção de David Cronenberg (A Mosca). Igualmente surreal, o filme é fiel à ideia de compor um relato biográfico no qual, à maneira dos beats, realidade, literatura e alucinação se misturam.

É na Nova York de 1953 que encontramos William Lee (o pseudônimo com que Burroughs assinara seu primeiro livro), um dedetizador com ânimos literários e problemas no emprego. Seu suprimento de veneno tem-se esgotado rapidamente porque sua esposa, Joan Lee, está viciada no barato que a substância lhe causa. Burroughs foi mesmo exterminador de insetos e esteve casado com Joan Vollmer. Como era exímio atirador, Joan pôs um copo na cabeça e lhe propôs uma brincadeira de Guilherme Tell, mas o marido errou o alvo. Nada disso é contado no livro, mas são pontos-chave da biografia do autor, dos quais Cronenberg se apropria para despi-lo tanto quanto possível. O diretor parece empenhado em entender como Naked Lunch foi escrito – a morte de Vollmer, segundo Burroughs, transformou-o em escritor.

Depois da morte da mulher, Lee mergulha em alucinações que o levam à Interzone (Tanger), uma terra onde ele se vê no meio de uma trama que reúne centopéias brasileiras gigantes e máquinas de escrever que se transformam em baratas falantes. Ali, transformado em uma espécie de agente secreto, Bill procura entender o que se passa, num papel que o aproxima do leitor/ espectador. A tentativa, claro, é frustrada, e a realidade continua estranha como deve ser.

Adepto de Reich (psiquiatra que pregava a “profilaxia sexual das neuroses”), Burroughs não temia ser classificado como pornográfico, e não censurou seus devaneios sexuais, repletos de orgias. Perto do que escreveu, o filme de Cronenberg pode parecer puritano. Afinal, segundo o diretor, há coisas que Hollywood ainda não tolera.

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