Chovia em São Paulo e eu, consequentemente, estava atrasado. Os que já tiveram o infortúnio de dirigir na grande cidade paulistana durante um dilúvio sabem que – não importa o local, não importa a hora – se há chuva, haverá congestionamento nas ruas. A média de quase 10 minutos por quarteirão percorrido me frustrava, e eu ainda estava longe do jornal. Então, meu celular vibrou:
SMS: Cadê você?! Daqui uns 15 minutos já vai começar a reunião de pauta…
Respondi:
SMS: Logo chego. Tá uma merda esse trânsito hoje por causa dessa chuva. Acho que algum acidente deve ter acontecido. Vou aproveitar pra passar perto, vai lá saber o que aconteceu né? Quem sabe alguém importante morreu, aí já terei minha pauta! Hahaha.
Deixo já um recado aos que achariam esse pensamento mórbido: Nunca tiveram que enfrentar uma deadline! Na hora do desespero, uma pauta pronta que cai do céu – ou que, no caso, pode ter perdido o controle do carro e se chocado frontalmente com um poste – é sempre bem-vinda.
Realmente eu estava certo, havia um acidente logo à frente. Um jovem rapaz tinha desviado sua atenção para seu celular e nesse instante de descuido atingiu o carro de uma senhora que dirigia lentamente a sua frente. História do dia-a-dia, do cotidiano popular… Não daria nem sequer para publicar uma nota de rodapé no jornal. Passado pouco mais de meia-hora, cheguei ao prédio.
Corri direto para a reunião de pauta e me sentei na cadeira mais próxima. A desgraça de se chegar atrasado a uma reunião dessas está em ter que aceitar qualquer pauta cretina que lhe for dada, sem qualquer questionamento. Provavelmente iriam me colocar para escrever sobre o novo ensaio fotográfico de alguma subcelebridade ou a respeito da vida luxuosa dos jogadores de futebol de um grande time paulistano. Até que, em meio aos casos de polícia e às novas dietas de verão, um ex-estagiário recentemente efetivado disse:
– Poderíamos tratar dos prédios abandonados no centro de São Paulo que são invadidos por movimentos dos sem-teto. Essas pessoas foram todas desabrigadas, por onde será que elas andam?
– É uma história interessante. Inclusive, há como fazer um gancho com a matéria especial de usuários de crack que vai ser publicada na próxima sexta – Disse outro jornalista.
– Sim, há como fazer esse gancho. Mas a minha ideia consistia mais em focar na maneira violenta como essas pessoas foram desabrigadas e passaram a viver apenas com a mísera ajuda, por parte do governo, de um “auxílio aluguel”. – Insistiu o estagiário. Ingênuo rapaz, ainda com aquela ideia utópica de tentar mudar o mundo. Para que exista um jornalista revolucionário, é necessário um editor revolucionário. Para que exista um editor revolucionário, é necessária uma diretoria revolucionária…Continue subindo a pirâmide até chegar aos grandes chefões da produção de notícias: Os anunciantes. Dentre os maiores anunciantes do país, ocupa uma respeitada posição um órgão que possui grande interesse no controle midiático: o governo. Sendo assim, a colocação de Ismael Herraiz, jornalista espanhol, de que a “notícia é o que os jornalistas acreditam que interessa aos leitores. Portanto, notícia é o que interessa aos jornalistas” não se mostra tão abrangente. Na realidade, a notícia é o que interessa aos anunciantes.
– Ah, por esse lado não dá pra abordar a história não. Quem vai querer colocar uma propaganda ao lado de uma matéria que quase ninguém vai ler? – Disse o diretor da redação.
Uma vez ouvi uma história de um jornalista que havia conseguido publicar uma matéria ideologicamente contrária ao pensamento político de seu jornal, por culpa de um editor distraído. Falaram-me que tal jornalista nunca havia se sentido mais realizado em toda sua vida profissional. Limpara a sua consciência com essa atitude subversiva, depois de anos e anos de publicações com as quais não concordava. Pois bem, também ouvi que ele passou um considerável tempo desempregado e que hoje trabalha em um pequeno restaurante de comida italiana na zona sul de São Paulo. Infelizmente, esse é o fim reservado aos mártires da atualidade.
Após a reunião, me dirigi ao meu cubículo na redação e encaminhei o seguinte e-mail:
Olá Fulano,
Sou repórter do Jornal X. Venho por meio deste e-mail solicitar uma entrevista a respeito:
a) do seu novo papel na novela.
b) da visita da celebridade internacional X ao Brasil
c) dos policiais que estão sendo mortos em ações de pacificação.
d) do assassinato brutal de uma menina de 7 anos por seu próprio pai.
e) dos jovens universitários mimados e usuários de droga.
(escolha qualquer uma das opções acima, afinal, a matéria já está escrita mesmo)
Atenciosamente, um jornalista qualquer.
Por Valdir Ribeiro Jr.
v.s.ribeiro93@gmail.com