O Massacre do Carandiru sob o olhar de um sobrevivente
Por Renato Navarro (renatonavarro@usp.br)
Prólogo
Dia 02 de outubro de 1992.
Uma sexta-feira como outra qualquer se inicia para presos e funcionários da Casa de Detenção de São Paulo, situada no bairro do Carandiru, na capital paulista. Da cela 504-E, no quinto andar do pavilhão 9 do presídio, sai um detento às 5 da manhã para seu trabalho diário na faxina. Na faxina, mas não exatamente com faxina. “Eram dois tipos de faxina: os que limpavam o presídio e varriam, e os que distribuíam comida”, explica Sidney Francisco Sales, 49 anos. Então comandante dos cerca de 250 funcionários responsáveis pela produção e distribuição dos alimentos no pavilhão 9, onde estava detido, ele não imaginava os horrores que vivenciaria em questão de horas.
Juventude conturbada
Com 24 anos na época, Sidney havia sido condenado em 1987 por dois roubos de carga, uma pena que totalizou 7 anos e 4 meses de reclusão. Mas poderia ter sido pior: segundo ele, a legislação da época permitia somente o julgamento de delitos cometidos após a maioridade, desconsiderando outras cinco infrações do mesmo tipo — além do impressionante número de 17 assaltos a banco — ocorridos quando Sidney tinha entre 16 e 18 anos.
A entrada na criminalidade se deu cedo, fruto da infância e adolescência carentes e sem perspectiva vividas na comunidade de São José, zona sul da capital paulistana.
“Morando na favela, tinham muitas coisas precárias: ambiente social, saneamento, acessibilidade, e com isso fui vivendo uma vida de muita dificuldade, onde quatro décadas atrás um menor de idade tinha que trabalhar até mesmo pra ajudar na sobrevivência da família”, ele conta. Conforme conhecia o mundo além da comunidade, Sidney passou a sentir na pele o preconceito e as diferenças entre as camadas sociais, o que o fez desenvolver um complexo de inferioridade. “Eu cresci muitas vezes tendo aquele bullying na escola devido a ser negro, pobre… Ao invés de ter uma mochila tinha um saquinho de arroz Solito como mochilinha para levar para escola, […] aquela roupa antiquada para ir ao shopping… Isso, bem dizer, para o adolescente é tudo”.
O sentimento se acentuou quando Sidney foi convidado a ser monitor da perua escolar que transportava alunos de um colégio infantil, onde ele prestava pesados serviços diários — como afofar areia do playground, limpar a grama com rastelo —, conciliados com os estudos da sexta série do ensino fundamental, no período noturno. A nova função possibilitou que o garoto conhecesse áreas nobres de São Paulo, como o bairro do Morumbi, que o deixaram impressionado: “Eu via que a casa daquelas crianças era diferente da minha casa, e algumas delas [diziam] ‘teacher, teacher, teacher’ e eu sem entender. […] Crianças que não estavam nem na primeira série já falando inglês… nossa, é muito diferente da minha realidade. Suas residências, aquilo não era casa, aquilo era mansão, e eu morando num barraquinho de tábua”. Esse contato com uma outra realidade fomentou sua ambição e o instigou a buscar melhores condições para si e sua família de forma rápida, fácil e fora da lei.
O caso de Sidney representa um cenário que ocorre frequentemente com milhares de jovens Brasil afora, principalmente entre aqueles que habitam comunidades carentes — contando assim com pouco ou nenhum amparo do poder público. O ingresso na vida do crime acaba então sendo um caminho sedutor, dado ambiente onde o indivíduo se encontra, com todas as dificuldades e falta de oportunidades que ele enfrenta.
Gustavo Massola, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e vice-chefe do departamento de Psicologia Social e do Trabalho, observa que, diferentemente de crimes contra a vida, os crimes contra o patrimônio possuem na maioria das vezes explicações sociológicas: “Se a gente quer entender quem são as pessoas que cometem crimes, de onde elas vêm e qual o contexto, vai descobrir rapidamente que a imensa maioria dessas pessoas têm um perfil bem marcado: em termo de lugar, tipicamente vêm das favelas; em termos étnico-raciais, a maioria dessas pessoas é negra; a escolaridade média tende a ser um pouco mais baixa que a da população em geral (isso varia um pouco de lugar para lugar)”.
Massola também destaca como o contexto social é de grande influência no que se refere ao punitivismo e cumprimento da justiça, que costuma ser bem mais rígida com pessoas oriundas de camadas desfavorecidas: “Se a gente pega o texto da lei, provavelmente todos nós cometemos crimes […], mas as pessoas que são efetivamente presas são as que vêm desses lugares. Existe uma outra questão, que não é tão tumultuada em si, por algum motivo, o aparato repressivo do estado se relaciona com as pessoas dependendo das origens e das características delas. E aí no Brasil é bem evidente que o Estado usa seu aparelho repressivo basicamente contra pessoas dessas características”.
Castelo dos horrores
Após ficar detido no Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) por 30 dias, sendo torturado para a confissão de seus crimes, Sidney Sales é encaminhado para a Casa de Detenção. Acostumado com a liberdade de sua antiga vida, ele fica chocado com o primeiro contato: “O maior presídio da América Latina, 8 mil detentos. Pânico, pânico, pânico. Aquilo ali não era o mundo, aquilo era um castelo, fora o pânico que os agentes penitenciários davam ao comentar sobre o pavilhão 9.” O espanto tinha fundamento, uma vez que o pavilhão para o qual fora encaminhado era um dos mais cheios, chegando a ter mais de 2 mil detentos. Além disso, a maioria de seus ocupantes era composta por jovens cumprindo sua primeira condenação, ou seja, inexperientes na vida dentro da cadeia, o que fazia do setor o palco de várias rebeliões, brigas entre facções e invasões da Polícia Militar. O episódio mais emblemático dessa instabilidade nos leva de volta justamente para o dia 02 de outubro de 1992.
Neste dia, o time da cadeia em que Sidney jogava como zagueiro, o Cascudinho, havia sido campeão interno do Carandiru. Como a circulação dentro dos pavilhões era livre, por volta das duas da tarde Sidney conversava com alguns presos na cela 523-E após o jogo quando ouviu os primeiros relatos de uma confusão no segundo andar. A briga acontecia na rua Dez (corredor no fundo do andar, paralelo ao portão de entrada, fora do campo de visão da vigia) e envolvia Barba (Antônio Luís do Nascimento), membro de uma facção da Zona Norte, e Coelho (Luís Tavares de Azevedo), membro de uma facção rival, da Zona Sul.
Os motivos por trás da briga variam: algumas versões afirmam que o acerto de contas se deu por uma dívida de 5 maços de cigarro que Coelho teria adquirido junto à Barba, enquanto outras apontam que a substância em questão seria maconha. De qualquer forma, quando os dois se encontraram, munidos de armas brancas, os demais membros das facções também se mobilizaram, além de vários detentos curiosos. Esses confrontos chegavam a reunir centenas de pessoas de cada lado, a maioria pertencente aos grupos dos detentos envolvidos no embate, mas também muita gente interessada em saber qual dos dois levaria a pior no conflito. Neste momento, se iniciou a correria entre o pavilhão 9 e o campo, de modo que os carcereiros não puderam fechar todos em suas celas (uma das primeiras medidas para contenção de tumultos) e deixaram o local. Não se sabe ao certo a forma como isso se deu: alguns dizem que detentos os expulsaram, enquanto outros alegam ter saído e trancado o pavilhão por fora, e outra versão conta que a PM (que havia chegado no local após contato dos guardas na muralha) teria pedido para que eles saíssem. De qualquer maneira, todo o pavilhão acabou no controle dos presidiários, que iniciaram a rebelião incendiando os setores de marcenaria, carceragem (onde ficavam os registros dos presos) e a copa, além de formarem barricadas com os materiais encontrados.
Uma hora após o início do motim, José Ismael Pedrosa, diretor da Casa de Detenção, informa por telefone o Secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, sobre a rebelião. Eles então contactam o comandante do policiamento metropolitano, Ubiratan Guimarães, por volta das 15:30 e delegam a ele a decisão da invasão ou não do Carandiru, uma vez que o governador do estado na época, Luiz Antônio Fleury, não estava em São Paulo no momento, mas sim em Sorocaba. Ubiratan convoca homens da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), do COE (Comando e Operações Especiais), do GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais) e a Tropa de Choque para a invasão, além do Corpo de Bombeiros que auxilia na remoção das barricadas.
O inferno
A entrada ocorreu às quatro e meia da tarde e, a princípio, Sidney acreditou que os tiros fossem de borracha ou festim, o que mudou ao ouvir os gritos das pessoas presas nos andares inferiores, onde os policiais passavam. O pânico então toma conta: “Os caras entram matando, cara. A ROTA entra matando, depois atrás que veio o pelotão de choque e os caras do GATE atirando mesmo”. Ao ligar a TV (permitida nas celas), ele relata ter visto o choque e a cavalaria, o que só aumentou o desespero de quem estava lá.
Ao chegarem ao cárcere dele, os militares ordenaram que todos descessem nus para o pátio. No caminho, os oficiais formavam um corredor polonês, onde os presidiários levavam cassetadas, chutes e mordidas de cachorro enquanto passavam pelo sangue e pelos corpos dos que já haviam sido abatidos. Aqueles que estivessem feridos e pedissem socorro, seja ao chegar no pátio, nos corredores ou até dentro das celas, acabavam por ser executados.
Meia hora após o início do massacre, os sobreviventes foram autorizados a retornarem para suas celas. Entretanto, Sidney e alguns outros foram obrigados a carregar os cadáveres — e também os moribundos — espalhados pelo pavilhão até o térreo, onde os carros do Instituto Médico Legal aguardavam. A cadeia enfrentava um surto de AIDS e o contato com todo aquele sangue, que chegava à altura da canela, despertava preocupação. Mas algo pior espreitava: “Quando olhei um cara que fomos pegar no terceiro andar, era um cara que estava ajudando a gente a descarregar os cadáveres. Aí eu falei ‘esses caras estão fazendo queima de arquivo”. Ao perceber isso, ele aproveitou um momento em que ninguém o vigiava e subiu para o quarto andar, onde se deparou com o chão cheio de sangue.
Para evitar o sangue, Sidney correu para o quinto andar, onde deu de cara com oficiais, que o questionaram sobre o que estava fazendo. “Eu disse ‘senhor, eu acabei de carregar os corpos lá embaixo e o tenente mandou eu subir pra cá’”, ele conta. Com um molho de chaves em mãos, um dos homens o disse: “Tá vendo essa cela aqui? Não sei qual é a chave desse cadeado não. A chave que eu escolher vou bater no cadeado. Se abrir você entra pra dentro, se não abrir…” o outro, engatilhando sua arma, completou: “Nós vamos te executar agora”.
Ao ouvir a última frase, Sidney fechou os olhos e recitou para si o salmo 23, versículo 4, que sua mãe enviara em uma carta: “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam”.
A chave é girada. Um estalo. O cadeado abre. Sidney é jogado lá dentro, onde outros quarenta e cinco homens nus já se espremiam e se revezavam na janela tentando respirar adequadamente. Assim ficam até às quatro horas da manhã seguinte, quando alguém passa arrebentando os cadeados das celas antes que o café da manhã seja servido.
Já era dia 03 de outubro, sábado de eleições municipais em São Paulo, e pouquíssimas informações sobre a chacina haviam sido divulgadas para a imprensa e, consequentemente, para a sociedade. Até então, a direção da Casa de Detenção havia confirmado apenas 8 mortes após a invasão, ainda na noite anterior. No entanto, 25 minutos antes do término das votações, às quatro e trinta e cinco da tarde, o secretário de segurança Pedro Campos veio a público para divulgar o saldo macabro: 111 pessoas haviam perdido a vida em um suposto confronto, nenhum policial entre elas. A dificuldade dos jornalistas na apuração imediata dos fatos continuou, uma vez que eles só foram autorizados a acessar o necrotério para onde a maioria dos executados foi levada após as oito horas da noite.
Os presos sobreviventes foram incubidos da limpeza das galerias sangrentas — com certa pressão, não só porque domingo era dia de visita e aquele era o lugar onde eles viviam, mas para a eliminação de possíveis indícios. A revolta com o ocorrido era grande, principalmente após o primeiro levantamento de mortos, de modo informal, conforme cada um procurava seus conhecidos. Presidiários exaltados bradavam por um novo motim, mas tiveram seus ímpetos controlados pelos mais experientes. O argumento usado foi o de que o Estado era o único culpado, pois os policiais militares haviam os executado e trancado as celas por fora, e isso poderia ser mostrado aos promotores e juízes futuramente. Sidney foi claro naquele momento: “Se nós fizermos uma rebelião de novo o prejuízo vai ser grande. Já mataram 100 — dizem que foram 100 né, pra gente foi 250 —, se os caras entrarem de novo vão matar 300”.
Apesar do número oficial de mortos ser de 111 detentos, os egressos da casa de detenção que testemunharam o massacre acreditam que a quantidade tenha sido muito maior. Além do montante de corpos vistos, carregados e empilhados, Sidney explica um método relativamente simples usado pelo pessoal da faxina para confirmar a discrepância: das cinco caixas de pães que eram distribuídas em todo o pavilhão 9 nos cafés da manhã, uma ficou intacta no dia 03 de outubro de 1992. 500 pães que deveriam ser recebidos por 250 homens, dois para cada um, não foram tocados. Ele acredita que muitos desses mortos não tinham família ou simplesmente haviam sido abandonados na cadeia, tendo sido enterrados como indigentes e sem identificação: “Os 111 tinham pai, mãe, advogados… Tinham alguém que recorresse por eles”, complementa.
No dia seguinte à carnificina, o impulso inicial por uma nova rebelião havia diminuído, mas os detentos ainda reivindicavam seus direitos e exigiam que as autoridades os ouvissem. Para isso. o diretor da penitenciária pediu para que eles se organizassem em um grupo para conversar com juízes e promotores que visitariam a cadeia. Cerca de 50 presos, alguns dos mais velhos e respeitados no pavilhão, se propuseram a formar uma comissão. Porém, ao serem encaminhados para o local do suposto diálogo, Sidney conta que as ações tomaram outro rumo: “quando nós viramos o corredor para entrar no [pavilhão] 6… Cassetete cara, só polícia. Os bondes [camburões] já estavam esperando”. Ele conta que os policiais, armados com cassetetes, barras de ferro, mangueiras e correntes de cachorro, ordenaram que todos ficassem nus para levar “paulada no lombo”. Segundo Sidney, os PMs achavam que aqueles dispostos a falar seriam os líderes, os “cabeças” do pavilhão 9, e o espancamento teria sido uma forma de intimidá-los. E não só isso: após a surra, os homens foram imediatamente transferidos para cumprirem suas penas em diferentes presídios do estado de São Paulo.
Os dados do massacre
Desdobramentos
A repercussão da intervenção policial no Carandiru foi ampla e imediata, ofuscando inclusive os resultados das eleições municipais paulistanas (Paulo Maluf e Eduardo Suplicy foram para o segundo turno, onde Maluf venceria com folga). O maior massacre já ocorrido no sistema carcerário brasileiro despertou a atenção da mídia nacional e internacional para as ações da polícia militar, mas ainda assim o julgamento dos responsáveis só teve início depois de quase uma década: Coronel Ubiratan foi a júri popular em 2001 pela coautoria em 102 homicídios, sendo condenado a 632 anos de detenção (seis para cada morte e outros 20 anos por cinco tentativas de assassinato). Por ser réu primário, no entanto, ele pôde recorrer da pena em liberdade.
A decisão da Justiça causou indignação em diversas organizações defensoras dos direitos humanos, como a CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional), a Comissão Teotônio Vilela e a Pastoral Carcerária. Reunidas com outras instituições elas elaboraram um relatório sobre o caso, que foi enviado para a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, órgão que observa os países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). O parecer foi de que o Brasil era culpado pelas 111 mortes e deveria punir os envolvidos, acabar com as lotações de suas cadeias e indenizar as famílias das vítimas, o que não foi integralmente cumprido.
Em 2002, Ubiratan se elegeu deputado estadual com o número 14.111, cujos três últimos algarismos remetem, intencionalmente ou não, à quantidade de mortos no massacre. Em 2006, por dispor de foro privilegiado, o parlamentar teve seu recurso julgado pelo órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo enquanto trabalhava em sua reeleição. O grupo formado pelos 25 desembargadores mais antigos do estado o absolveu, mas o deputado viria a ser morto no dia 10 de setembro do mesmo ano, com um tiro no abdômen em seu apartamento nos Jardins.
Os demais oficiais envolvidos foram julgados ainda mais tarde, entre 2013 e 2014. O processo foi dividido em cinco júris, nos quais foram analisados os fatos ocorridos em cada andar do pavilhão 9. A defesa alegou que as mortes seriam decorrência de um conflito, uma vez que os os presos teriam em seu poder armas brancas e revólveres, e que os policiais teriam apenas seguido ordens superiores e agido em legítima defesa. Esses argumentos, porém, foram contrapostos pelo depoimento do perito criminal Osvaldo Negrini Neto.
Negrini declarou que em sua primeira visita ao local a energia estava desligada, o que prejudicou a perícia. Ao retornar outras duas vezes, as cenas das mortes haviam sido modificadas, tanto com a remoção dos cadáveres quanto com a limpeza do lugar, incluindo as cápsulas deflagradas. Ainda assim, a perícia verificou que mais de 600 tiros foram efetuados — 450 balas foram extraídas dos corpos, enquanto as marcas encontradas no interior das celas podiam ser de até 180 projéteis. Segundo o perito, cerca de 90% dos disparos foram feitos da porta para dentro dos cárceres, sendo que nenhum percorreu a direção contrária. Além disso, pela posição das rajadas de metralhadoras e rifles (identificadas pelo resíduo de chumbo nos buracos das paredes), muitos dos atingidos estavam sentados ou agachados no chão, e não em posição de confronto.
Ao fim, 74 homens foram condenados, com suas penas somando mais de vinte mil e oitocentos anos de prisão, enquanto outros três indiciados foram absolvidos. Os culpados aguardaram recurso em liberdade até 2016, quando os julgamentos foram anulados pela 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. Além dos argumentos de legítima defesa e cumprimento de ordens, o desembargador Ivan Sartori, relator do caso, alegou que não se poderia condenar coletivamente os oficiais. Segundo ele, a punição deveria se dar de forma individual e após exame de balística em todos os projéteis disparados, relacionando-os com quem efetuou cada tiro. A nova decisão foi amplamente repudiada, e entidades como a Anistia Internacional e o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania publicaram notas criticando o parecer. Apesar disso, até agora não há previsão de quando ocorrerão os novos júris.
Paulo Kohara, mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e psicólogo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, explica que a resolução de conflitos via eliminação de inimigos por meio da violência é algo inerente ao ser humano, mas é algo coibido pelas leis e pela moral seguida pelas civilizações.
Na sociedade brasileira, no entanto, a quantidade e a banalização das mortes tanto pelo lado dos criminosos quanto dos policiais é algo fora da curva. Segundo Paulo, além de ser mais violento que países com o mesmo grau de desenvolvimento — mostrando que a desigualdade social não é o único fator determinante dessa condição —, os números do Brasil superam os de nações com forte cultura militar e população amplamente armada, como os Estados Unidos.
Kohara também aponta que a cultura da violência, disseminada entre a população e manifestada no punitivismo, legitima socialmente casos como o do Carandiru: “É algo avalizado pela sociedade. Uma questão da crítica à Polícia Militar que precisa ser pensada é que ela não é autônoma, ela acompanha e responde anseios da sociedade. O Carandiru joga na nossa cara o que a gente pede e espera das nossas polícias”, diz.
Outro ponto crucial para a ocorrência do massacre é a agressividade que a polícia carrega enquanto instituição. Ainda que o oficial não fosse violento em contexto familiar ou social prévios, sua entrada no corpo policial o condiciona a agir assim: “Você coloca ali [no Carandiru] uma tropa inteira treinada, armada, preparada para a violência, sem interdição. É colocada ali uma condição em que o assassinato é esperado da maioria, pela adrenalina dos policiais, pelo risco de serem feridos — e essa é a forma que eles usarão para resolver. […] Se eu tirasse todos eles [policiais] e colocasse outros, hoje a tendência é que eles fizessem muito parecido”.
Vida nova
Após o episódio na Casa de Detenção, Sidney passou por prisões em Parelheiros, Mirandópolis, Bauru e Franco da Rocha, alcançando a liberdade em 1993. Foi quando um novo período de dificuldades surgiu: “eu vou para o mercado de trabalho, mas o mercado de trabalho não me aceita — um egresso do sistema penitenciário, negro, semianalfabeto, e que agora precisava de qualificação”. Ele conta que durante seu tempo na cadeia os escritórios passaram por uma revolução, e as máquinas de escrever foram substituídas por computadores com Word, Excel e PowerPoint. Só o restava retornar ao crime, ramo no qual já era experiente: “no mercado de trabalho de lá a porta é aberta… Eles não pedem antecedentes criminais e nem qualificação pro mercado de trabalho. Se você não tiver eles ainda te ensinam”.
Para Sidney, esse regresso teria feito com que Deus cobrasse a dívida aberta na rebelião. Ao chegar na casa de sua namorada após um delito, justiceiros o emboscam em um Opala preto. “Mais de sessenta tiros, só pegam seis. […] Quando tomo na espinha, a perna começa a tremer, caio no chão na hora”. Levado ao hospital, o diagnóstico foi duro: paraplegia.
Abalado com sua condição — imóvel sobre uma cama e sendo cuidado por terceiros — o homem até então ativo e independente se rende ao vício. Álcool e cocaína. Sem recursos para manter o consumo, ele volta aos assaltos sobre cadeira de rodas, como o vigia do veículo de fuga. Ocorre então sua segunda prisão, em flagrante, mas como permaneceu dentro do veículo e as vítimas não o reconheceram, foi liberado após três meses de detenção.
Ao retornar para casa, Sidney teve contato com o crack: “Quando eu chego na favela, tinha cara se escondendo atrás do cabo de vassoura”. Além de também se viciar na droga, ele aprendeu a fabricá-la e se tornou traficante, até ser pego com meio quilo de crack e meio de cocaína. Preso pela terceira vez.
No 25º Distrito Policial de Parelheiros, o contato com missionários começou a mudar a vida de Sidney. As orações e louvores o tocaram no dia da visita, e surpreendentemente sua liberdade chegou na manhã seguinte, o que muitos na cadeia atribuíram às preces realizadas pelos religiosos. Posteriormente, ele seria convidado para tratar de sua dependência em um centro de recuperação administrado pelos fiéis, na cidade de Jundiaí, interior de São Paulo. Foi quando se envolveu no trabalho social que exerce desde então.
Hoje, o sobrevivente do Carandiru não guarda rancor ou ressentimentos pelo que houve, tendo inclusive perdoado um dos policiais envolvidos ao encontrá-lo em um culto. Ainda assim, ele não acompanha notícias sobre o julgamento dos oficiais, nem espera que a Justiça tome medidas mais enfáticas sobre o caso: “O Estado não pode proteger, o Estado mesmo que matou os 111”, pontua.