Muito se discute o uso excessivo de aparelhos eletrônicos por crianças, mas geralmente o foco é no distanciamento da vida social. Apesar de esta ser uma discussão relevante, também deve-se lembrar que esse aumento as coloca mais em contato com a publicidade infantil.
Muitos pais, devido à sua rotina ocupada, deixam os filhos usarem aparelhos cada vez mais constantemente, nem sempre atentos à plataforma ou ao tipo de conteúdo. E isso pode gerar problemas, já que a publicidade infantil, tema bastante discutido nos anos 1980 quando se tratava da TV, assumiu novas formas nos últimos anos. Está presente de maneiras menos aparentes e mais difíceis de serem reguladas pelas agências responsáveis.
Antes de tudo, é importante definir o que é considerado publicidade infantil. Suas principais regras foram formulados nos anos 1980. Essa regulamentação ocorreu quando os anúncios em programas infantis começaram e se tornaram abusivos. Segundo o Professor Eduardo Tomasevicius Filho, do Departamento de Direito Civil da USP, “na década de 1980, havia abusos nessa área, pois se usava o bordão ‘peça agora para o papai ou para a mamãe comprar para você’ em comerciais de brinquedos e roupas, que financiavam programas infantis na tevê aberta”, indicando um tipo de publicidade especialmente manipuladora.
Buscando regular esse tipo de publicidade e, ao mesmo tempo, evitar a censura, surgiu um consenso entre os publicitários e o governo: ela deveria ser auto regulada. Isso significa que os próprios profissionais da área elaboraram regras para sua indústria, formando um grupo capaz de colocar limites na publicidade infantil. Por outro lado, como eram os próprios profissionais elaborando as regras e não o governo, suas decisões não têm peso de lei, sendo vistas apenas como diretrizes. Com base nesses princípios, foi elaborado o Código de Autorregulamentação Publicitária em 1978, buscando evitar que o governo desse o primeiro passo e impusesse censura prévia à propaganda. No ano seguinte, foi formada uma ONG responsável por colocar o código em prática e monitorar a publicidade: o Conselho de Autorregulamentação Publicitária, ou Conar, principal responsável por fazer este trabalho até hoje. Nesse contexto de fundação, o principal foco era a publicidade televisiva, então o código foi construído ao seu redor. Segundo o Professor Tomasevicius, a autorregulamentação é importante para não violar as normas constitucionais acerca de “liberdade de expressão independentemente de censura”.
Segundo o Professor Gino Giacomini Filho, do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da USP, essa forma de regulamentar a publicidade funciona porque, “mesmo sem um poder legal, o Conar e seu Código desfrutam de boa credibilidade no setor, já que foram os próprios publicitários que os criaram e os colocam em prática”. Mesmo que eles não integrem o poder judiciário nem tenham peso legal, “a desvantagem é compensada pela obediência conferida por anunciantes, agências e veículos às decisões ultimamente tomadas, tendo em vista reclamações de consumidores quanto aos deslizes éticos de anúncios e campanhas”.
O site do Conar recebe denúncias do público em geral e a entidade também avalia casos específicos que coleta enquanto monitora a publicidade. Ele “não consegue dar conta de examinar os milhares de anúncios veiculados diariamente no país, mas ao julgar algumas centenas de casos por ano, faz com que suas deliberações e recomendações sejam referências para impor limites para propaganda no Brasil”, diz o professor. Segundo o próprio site do conselho, o “Conar já instaurou mais de 9 mil processos éticos e promoveu um sem-número de conciliações entre associados em conflito. Nunca foi desrespeitado pelos veículos de comunicação e, nas raras vezes em que foi questionado na Justiça, saiu-se vitorioso”. Após receber uma denúncia, o Conselho de Ética do Conar se reúne, julgando a partir do código o anúncio em questão, possibilitando que o acusado se defenda. Se ela for aprovada, a entidade pode recomendar aos veículos que publicam o anúncio a retirá-lo ou sugerir correções, para que ele possa continuar a ser veiculado.
Apesar da grande aceitação do Conar na sua indústria, é extremamente difícil que ele dê conta dos novos meios em que a propaganda existe hoje. Do modo como foi formulado desde sua fundação, a publicidade não é regulada de maneira preventiva, isso seria uma forma de censura. Ao invés disso, a ação do conselho ocorre somente depois de os anúncios serem veiculados: “Há de se destacar que o Conar não se antecipa à realidade do mercado, ou seja, apenas reage ao que ocorre”, afirma Giacomini. E isso acaba por gerar consequências. Como a entidade está sempre reagindo, ela não consegue se adaptar tão rapidamente, “o que a coloca em descompasso com fenômenos atuais como o da publicidade nas mídias virtuais, conteúdos em celulares e uso de novas mídias alternativas”. Giacomini ressalta ainda que esse não é um problema exclusivo de conselhos autorreguladores, mas acontece na legislação em geral, já que esta é sempre escrita tendo em mente o contexto atual. Dessa forma, precisa sempre de ser atualizada para cobrir situações futuras, que surgem após sua primeira concepção. Mesmo que exista essa defasagem, o trabalho realizado pelo Conar não é diferente do Código de Defesa do Consumidor: somente regulando algo depois que ele começa a gerar problemas; não sendo, dessa forma, uma falha da entidade autorreguladora.
Apesar do código não definir estritamente o que é publicidade infantil, ele coloca diretrizes para todo tipo de publicidade dirigida para um público infantil, publicada com conteúdos infantis e de produtos destinados para esse público. O código é bastante completo e aborda temas diversos do universo da publicidade, mas, segundo Tomasevicius, é o Artigo 37 que trata da publicidade infantil.
A maior regulamentação desse tipo de publicidade é justificada pois a criança é atingida por esses anúncios de maneira mais intensa. Segundo a Professora Leila Tardivo, do Instituto de Psicologia da USP, isso ocorre porque “as crianças possuem muito mais desejos e, diferente de nós, não têm os mesmos limites, expressando esses desejos constantemente”. Dessa forma, as crianças acabam por ter mais dificuldade em lidar com a propaganda. Suas características “as tornam mais suscetíveis às influências, também porque não tem um discernimento entre o que pode e o que não pode, algo que se desenvolve aos poucos. E é justamente nessa linha que atua a publicidade”, afirma ela.
Além das características das crianças as tornarem mais vulneráveis, é importante mencionar que a propaganda também pode gerar consequências sociais. Caso feita de maneira antiética, ela pode incentivar uma mentalidade de consumismo e insatisfação. Muitas crianças acabam por conectar o valor pessoal com a posse dos produtos anunciados: “as crianças mais velhas acabam comparando com os colegas”, afirma a Professora Tardivo. É justamente a mencionada ideia do “eu tenho você não tem” que o Código busca evitar ao proibir a propaganda de “impor a noção de que o consumo do produto proporcione superioridade ou, na sua falta, a inferioridade”. Isso é especialmente danoso pois, em muitos casos, os pais não possuem as condições financeiras para atender aos pedidos de seus filhos.
Entre outras técnicas usadas nessa publicidade antes de sua regulação, está a inclusão de crianças nos anúncios, falando com o público como se fossem suas amigas, promovendo uma manipulação muito mais intensa.
E, quando esse tipo de anúncio está presente em aplicativos dirigidos para crianças, vídeos na internet e nas redes sociais, se torna muito mais difícil de ser regulado. “Crianças aparecem em vídeos apelativos de unboxing para atrair outras a consumir novidades do mercado; ou fazer apelos materialistas levando-as a importunar os pais muitas vezes sem poder aquisitivo para comprar de tudo; ou então prendê-las em games viciantes, alguns ostentando marcas e anunciantes”, afirma Giacomini. Como cada vez mais as crianças têm acesso a essas mídias e elas são produzidas de forma descentralizada (qualquer um pode colocar um vídeo na internet), as fronteiras antes claras entre o que é conteúdo e o que é propaganda agora se diluem. Essas “estratégias diversificam o formato comum da publicidade antes confinada em intervalos comerciais previsíveis, mas agora trazem uma experiência total para criança com a marca e produto”. A família e a escola, por sua vez, precisam fazer frente a esses recém-formados laços. Isso acaba por violar a separação entre o horário comercial e o do conteúdo, do trecho IV do Código, que aconselha justamente uma distinção mais clara, qualquer que seja a plataforma.
E essas táticas, mesmo que não sejam novas — já foram barradas no passado, quando eram usadas na televisão — agora não podem ser reguladas com a mesma eficácia e pior, se colocam diante das crianças sem que os pais tenham noção.
Nova propaganda no YouTube
A principal plataforma de vídeos atualmente é o YouTube. Qualquer um pode criar um canal e começar a colocar seus vídeos no ar, publicamente, desde que obedeça as regras da plataforma. O que torna os canais viáveis comercialmente são justamente os anúncios exibidos antes, durante ou depois dos vídeos. Se um vídeo seguir as regras e for atrativo para anunciantes, ele poderá ser monetizado pelo produtor. Isso significa que o pagamento dos anunciantes será dividido entre ele e o YouTube. De acordo com o histórico de vídeos já assistido por uma pessoa e o que atualmente é popular na plataforma, o YouTube irá oferecer recomendações personalizadas de vídeos para serem assistidos em seguida.
É claro que o YouTube comporta um conteúdo muito diverso, tanto em tema como em qualidade, incluindo vídeos educacionais, de entretenimento, notícias, tutoriais, jogos e muitos outros assuntos. Mas a plataforma nem sempre é adequada para crianças. O problema não está somente nos anúncios veiculados em parceria com o YouTube nos vídeos monetizados — já que esses são aprovados pela plataforma — mas especialmente naqueles misturados no conteúdo dos vídeos. Eles podem abusar da relação de proximidade criada entre o produtor do conteúdo e seu público para veicular uma mensagem comercial. Pelas regras da plataforma, o público deve ser avisado mas isso nem sempre ocorre e, quando ocorre, é de difícil compreensão por parte das crianças.
Um dos exemplos mencionados pelo Professor Giacomini são os vídeos de unboxing de produtos. Eles consistem em pessoas abrindo pacotes e mostrando os produtos para câmera. Mesmo que não sejam exatamente uma propaganda, têm um efeito muito similar: causam desejo na audiência. Muitas vezes os produtos são enviados de graça para os produtores desses vídeos, estabelecendo uma relação de ajuda mútua: o produto é anunciado e o produtor do vídeo tem conteúdo para publicar, lucrando a partir dessas parcerias ou dos anúncios padrão da plataforma. Quando o conteúdo é direcionado ao público infantil, geralmente serão crianças fazendo o unboxing, realizando uma apelo por proximidade. Isso pode violar o trecho que proíbe “empregar crianças e adolescentes como modelos para vocalizar apelo direto, recomendação ou sugestão de uso ou consumo”.
Esse vídeo, “BRINQUEDO CARA A CARA – VI EM DOBRO ABRINDO CARA A CARA #unboxing”, pode ser um exemplo. Não que esse vídeo seja necessariamente uma violação das regras de publicidade ou tenha sido feito com más intenções, mas ainda assim aparenta ser apelativo, girando mais ao redor do produto em si do que o uso que as crianças fazem dele, da mesma forma que um anúncio faria. Mesmo que não tenha sido feito para vender o produto, ainda incentiva a mesma relação de desejo e consumismo. No início do vídeo, as crianças chegam até a anunciar o conteúdo da embalagem.
Esses não são os únicos estilos de vídeo que contém uma publicidade velada. No canal do famoso youtuber Luccas Neto, anúncios e conteúdo de entretenimento para crianças muitas vezes se misturam. Como diz a descrição de seus vídeos: “Atenção: Além do conteúdo lúdico e de entretenimento, este vídeo contém publicidade.” Talvez o caso mais emblemático seja o vídeo “DR MAUMAU TRANSFORMA LUCCAS NETO EM BONECO”, em que o youtuber anuncia o lançamento de um boneco dele mesmo, por valores que iniciarem em mais de R$500 e hoje está por volta de R$110. Novamente, vale ressaltar que é difícil saber se o vídeo ou o produto foram feitos com más intenções, mas, diante de seu caráter apelativo, isso se torna irrelevante. A relação de proximidade entre o seu público e Luccas Neto dificilmente é mediada por pais, deixando ele exercer, por bem ou por mal, grande influência sobre sua audiência. E isso é amplificado, já que seus vídeos constantemente incluem crianças (o que promove mais um aviso na descrição: “Todos os menores de idade que participam deste vídeo são acompanhados de seus representantes legais, no set de filmagem, durante a gravação”).
E os exemplos não param por aí. Tendo em mente esses problemas, o YouTube criou um novo aplicativo, o YouTube Kids, buscando oferecer somente conteúdo adequado a este público. Porém, não eliminou muitos dos problemas aqui discutidos; na verdade, somente criou uma plataforma exclusiva para este tipo de conteúdo.
Outros aplicativos, como jogos infantis disponíveis nas lojas de aplicativos (Play Store e App Store), também estão lotados de anúncios, mesmo aqueles direcionados exclusivamente às crianças e bebês. Muitos desses aplicativos são gratuitos e podem ser encontrados em seções especiais das lojas, direcionadas para crianças. Assim, a obtenção e uso é cada vez mais fácil, deixando os anúncios inescapáveis.
Apesar de tudo, o Professor Giacomini se posiciona contra a proibição da publicidade: “O contato com a publicidade pode ajudar na formação crítica da criança ao possibilitar que ela contraponha tais conteúdos com a realidade que encontra (família, dinheiro, amigos, frustrações, recompensas) de forma a participar da construção de um cidadão mais cético com a propaganda e as relações de consumo”. E ainda reforça a importância do acompanhamento quando as crianças consomem conteúdo: “Considero essencial que a família e a escola participem desse convívio criança-publicidade e que tais experiências embasem melhorias para uma atuação responsável do marketing e a propaganda”. Nesse ponto, a Professora Tardivo reforça que “é preciso oferecer outras alternativas. Sei que muitas vezes não pode, os pais têm de trabalhar”. A infância é uma fase especialmente importante da vida, em que estamos mais vulneráveis, mas também muito dispostos a aprender. “O que faz mal é a adultificação da infância. A criança precisa ir aprendendo, ter desejos e conhecer também quando esses desejos não podem ser atendidos. O acompanhamento com a publicidade precisa ser cuidado pelos pais. E cuidar é dar atenção!”, afirma ela.
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