Por Mirela Costa (mirelacosta@usp.br)
“Eu não escrevo sobre tragédias, mas sim sobre as omissões que causam tragédias”. A fala de Daniela Arbex, em entrevista à Jornalismo Júnior, revela a essência do trabalho empenhado há cerca de trinta anos pela jornalista. Ao levar histórias invisibilizadas e eventos trágicos pouco conhecidos à memória coletiva brasileira, Daniela busca humanizar as narrativas por meio da aproximação com o público e impedir que caiam no esquecimento.
Quem é Daniela?
Escritora, palestrante, documentarista e jornalista independente, Daniela já foi contemplada em mais de vinte prêmios nacionais e internacionais. Sua primeira produção literária, que se tornou best-seller, foi Holocausto Brasileiro (Geração Editorial, 2013). O livro retrata o genocídio de 60 mil vítimas e as demais violações dos direitos humanos ocorridas no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. Os lançamentos seguintes foram Cova 312 (Geração Editorial, 2015), Todo dia a Mesma Noite (Intrínseca, 2018), Os dois mundos de Isabel (Intrínseca, 2020) e Arrastados (Intrínseca, 2022).
Em janeiro deste ano, Todo dia a Mesma Noite ganhou uma versão em minissérie de ficção na Netflix, que logo entrou para o ranking global da plataforma. Mesmo com o grande reconhecimento dos últimos anos, a paixão de Daniela pelo jornalismo não é recente. “Eu sempre tive muita intimidade com a palavra e muito prazer em escrever. Na adolescência, sentia muita indignação e pensava como poderia transformá-la em ação. Foi aí que eu tive a sorte de ter encontrado o jornalismo tão cedo”.
“Filha do papel e voz da resistência”
Daniela Arbex é formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde o jornalismo investigativo começou a tomar espaço em sua carreira. Na graduação, ela apurou um caso envolvendo a denúncia de um professor da faculdade de direito e sua matéria foi publicada no jornal laboratório da época. “A matéria foi uma revolução tão grande que eu entendi a potência da palavra e o poder que o jornalista tem. Eu queria usar esse poder para transformar a realidade que eu vivia”.
Assim que se formou, em 1995, passou a atuar como repórter especial no jornal Tribuna de Minas, no qual permaneceu por 23 anos. A jornalista conta que sua experiência na redação foi como uma escola para o trabalho que faria adiante. “Todo o caminho que eu trilhei na literatura foi baseado no que eu aprendi no jornalismo impresso e comunitário da ‘Tribuna’. É entrar na casa do outro, a investigação, a checagem cuidadosa, a busca de informações”. Como repórter para o jornal, Daniela ganhou cinco vezes seguidas o prêmio Eloísio Furtado de Melhor Reportagem do Ano.
Dos folhetins aos livros
O Holocausto Brasileiro marcou a introdução definitiva da jornalista no campo da literatura nacional. Se antes a escrita de Daniela era exclusiva às páginas dos jornais mineiros, foi a partir de 2013 que a escritora passou a ser lida nacionalmente. Ela afirma que a transição da imprensa para os livros-reportagem ocorreu espontaneamente, de forma que já se sentia preparada para esse próximo passo em sua carreira.
“Sempre digo que escrevi o ‘Holocausto’ em 17 anos. Esse foi o tempo que eu tive de amadurecimento na redação para contar uma história tão densa como essa. Cheguei [na literatura] muito mais madura não só quanto ao texto, como também ao respeito e olhar para o outro.”
A obra expõe a rotina de maus-tratos de um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil do século 20 por meio das perspectivas de sobreviventes, ex-funcionários do local e outros envolvidos com a tragédia. Segundo a jornalista, não é fácil oferecer escuta qualificada a pessoas traumatizadas, já que se coloca em evidência um lugar sensível de dor e memória do luto. O livro foi eleito o segundo melhor livro-reportagem no Prêmio Jabuti de 2014 — o prêmio literário mais relevante do país — , além de ter se tornado referência de estudo para áreas como psicologia, medicina e direito.
Das páginas para o Brasil: os livros-reportagem
Após o primeiro lançamento, Daniela deu sequência às produções na literatura. Os livros-reportagem foram sua opção para documentar a história e, assim, poder humanizá-la. A formação de “pontes para o coração do outro”, como a própria define, esteve presente durante toda a produção de sua obra.
Cova 312 veio como uma reconstituição da história do jovem Milton Soares de Castro, militante político que foi preso, torturado e morto pelas Forças Armadas durante a ditadura militar. Com a obra, Daniela foi vencedora do Prêmio Jabuti de 2016 também na categoria livro-reportagem.
O mesmo impulso pela recuperação da memória de jovens que tiveram suas vidas interrompidas é encontrado em Todo dia a Mesma Noite, que revisita a madrugada em que 242 pessoas morreram em decorrência de um incêndio na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
Já Os dois mundos de Isabel conta a história de uma líder do espiritismo que lutou contra o preconceito religioso e o patriarcado, enquanto Arrastados relata o trágico rompimento da barragem explorada pela mineradora Vale em Brumadinho, que vitimou 272 pessoas.
Embora as histórias contadas se passem em momentos diferentes, elas abordam questões que podem ser discutidas em qualquer tempo. Segundo a jornalista, enquanto apresentam um olhar para o passado, as narrativas também funcionam como um alerta para que as tragédias não se repitam no futuro.
“Meus livros colocam o leitor em um lugar que às vezes é muito desconfortável, mas é um lugar que ele, pela primeira vez, consegue se enxergar na posição do outro. Aí, ele vai sentir o cheiro do hospital, vai se sentir dentro da boate e também vai perceber o tsunami de lama.”
Entre o emocional e a investigação
Imerso em relatos dolorosos e memórias de trauma, o jornalista investigativo tem como um de seus desafios a preservação de seu emocional. Daniela diz que todos os livros que escreveu a atravessaram de alguma forma, já que, segundo ela, é quase impossível manter-se indiferente diante das vivências relatadas. No entanto, ressalta que “para comover o outro, é preciso se deixar tocar. Senão, dificilmente o público se sensibilizará. E esse é um mergulho muito difícil”.
A jornalista relata inclusive ter desenvolvido uma arritmia cardíaca durante o processo de elaboração de um dos seus livros: “Eu nunca tive nada no coração. Quando veio o diagnóstico, até brinquei que fosse uma arritmia literária, fruto dessa emoção de escrever. Porque de resto, está tudo bem”. Daniela acredita ser “essencial que se faça tudo de verdade, não dá para se entregar apenas pela metade. Se o objetivo é contar uma história completa, é preciso se entregar inteiramente para ela”.
Não só jornalista, como também mãe
Em 2011, Daniela teve Diego, seu primeiro e único filho. Ele nasceu em um momento em que a carreira da jornalista estourou em vista da produção e publicação de seus primeiros livros. “Escrevi o ‘Holocausto’ durante a amamentação do meu filho. Na época, eu tive depressão pós-parto e achava que minha carreira tinha acabado ali. Eu não entendia o que estava acontecendo. Hoje eu vejo que ele só veio para me acrescentar em tudo. Me ensinou a amar e a ser uma pessoa melhor, mais humana”, enfatiza.
Daniela ainda aponta a maternidade como um fator que a ajudou a se aproximar das mães das vítimas com as quais conversa. “Ser mãe me fez entender o que é uma rotina de ausência”. A conciliação da vivência materna com a vida profissional não foi uma tarefa fácil, mas a amparou em seu processo de amadurecimento. “No começo, eu vivia só para o jornalismo. Quando comecei a viver para outra pessoa, parecia que eu estava traindo a minha profissão. Mas nós somos capazes de amar tanto, somos tão múltiplos”.
A jornalista diz que mesmo hoje é difícil lidar com a distância do filho no decorrer da sua rotina extensa de viagens. Ainda assim, ela tem consciência de que Diego, aos 12 anos, entende a relevância do trabalho de Daniela para a sociedade e admira a mãe. “Eu tento ser a melhor mãe que eu posso entregar para ele. Por mais que eu tenha que estar longe por causa do trabalho, acho que ele está crescendo capacitado para ser um ser humano melhor, para impedir o esquecimento e construir a memória coletiva do Brasil”.
Novos projetos: no papel e nas telas
A jornalista anunciou que está no processo de produção de mais uma obra, cujo tema ainda não foi revelado. Para além das páginas dos livros, o trabalho de Daniela conquista o universo audiovisual. Todo Dia a Mesma Noite ganhou uma versão adaptada pela Netflix e também uma série documental no Globoplay, que aborda o júri do Caso Kiss no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), sucedido em 2021.
Outros livros como Holocausto Brasileiro foram adaptados para a televisão da mesma forma. A obra teve um documentário produzido pela HBO em 2016 e uma série também produzida pelo Globoplay em 2021. Neste ano, o streaming da TV Globo anunciou a adaptação de Arrastados e Os Dois Mundos de Isabel.
Daniela diz sentir muito orgulho e emoção ao ver seu trabalho ocupando este novo espaço. “Eu acho que é uma vitória do jornalismo de qualidade, porque esse conteúdo é tão necessário que ele está transpondo o papel para ganhar as telas e alcançar um público ainda maior. E a função do jornalismo é justamente essa: ampliar as discussões, apresentar múltiplos olhares e dar voz para o outro”.