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Democracia sob ataque

Os filmes precisam ter um fim, desligar o projetor, apagar a luz do cinema. Mas o que acontece quando uma narrativa continua retratando, sem parar, a realidade? Não há meio de parar a projeção do presente na tela, que teima em reverberar mesmo com esta estando desligada. O documentário “Democracia em Vertigem”, lançado em 2019 por …

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Os filmes precisam ter um fim, desligar o projetor, apagar a luz do cinema. Mas o que acontece quando uma narrativa continua retratando, sem parar, a realidade? Não há meio de parar a projeção do presente na tela, que teima em reverberar mesmo com esta estando desligada. O documentário “Democracia em Vertigem”, lançado em 2019 por Petra Costa, narra os acontecimentos políticos do Brasil que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder. Não apenas um político, as eleições presidenciais de 2018 colocaram sob o holofote também uma nova-velha classe política, que saiu do poder não muito tempo atrás, ansiosa para retornar aos palcos e impor seu próprio roteiro. 

O livro “Como as democracias morrem”, publicado no fatídico 2018 por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, tenta explicar a guinada antidemocrática que alguns países vêm enfrentando nos últimos anos. A hipótese dos autores é a de que uma democracia pode ruir aos poucos e de dentro para fora, com a eleição justa de um presidente com intenções antidemocráticas. Essas intenções objetivam a permanência no poder usando regras inconstitucionais. Para isso, o presidente em questão deve apresentar pelo menos um dos quatro comportamentos: rejeição de regras democráticas, rejeição da legitimidade de oponentes, tolerância ou encorajamento a violência e propensão a restringir liberdade de oponentes e da mídia.

Livro Como as democracias morrem. [Imagem: Arquivo Pessoal / Jornalismo Júnior / Alice de Souza Silva]

Tentar definir se, nesse caso, a vida imita a arte ou a arte imita a vida não faz diferença. O fato é que esse filme nós conhecemos, e não estamos gostando do final. Mas Bolsonaro não foi o precursor da ideia de tentar mudar as regras do jogo por dentro. No mesmo 2018, Viktor Orban se tornou primeiro-ministro da Hungria pela quarta vez (em 2022, pela quinta vez)

Antes deles, Donald Trump se elegeu utilizando os quatro comportamentos como promessa de campanha. Mais recentemente, o governo de Mianmar foi deposto por acusação de fraude nas eleições. A América Latina já conheceu diversos outros líderes antidemocráticos. Vladimir Putin está no poder há quase 25 anos. A família do então líder supremo da Coreia do Norte, Kim Jong-un, comanda o país desde 1948.

Mas por que esses políticos ainda conseguem voz? Uma voz alta, forte e incisiva, que ressoa nos auto-falantes da realidade. Anne Applebaum, jornalista e escritora vencedora do prêmio Pullitzer, em seu livro “O crepúsculo da democracia”, diz que sistemas políticos com crenças radicais e simples são por definição atraentes, principalmente quando beneficiam os que são leais a eles e excluem todos os demais. O ato de dizer que seu pensamento é o melhor e que todos os outros estão errados, juntamente com uma autopromoção de seu sistema de crenças e garantia de benefícios a aliados, explicam a polarização brasileira que permitiu o embate de políticos cada vez mais extremos. 

Livro O crepúsculo da democracia. [Imagem: Arquivo Pessoal / Jornalismo Júnior / Alice de Souza Silva]

Além disso, Applebaum também afirma que “os autoritários precisam de pessoas para promover tumultos ou iniciar golpes. […] Eles precisam de pessoas que deem voz às queixas, manipulem os descontentamentos, canalizem a raiva e o medo e imaginem um futuro diferente”. Nesse sentido, ir contra as regras internas, que funcionam exatamente para manter os autoritários fora do poder, é visto como a única possibilidade de mudar “o sistema”. 

Segundo Levitsky e Ziblatt, o primeiro comportamento apresentado por um líder, eleito democraticamente, que possui intenções autoritárias é o de rejeitar as regras democráticas. Aqui não se aplicam apenas as regras que norteiam os processos eleitorais, mas sim toda e qualquer regra que o representante máximo do Estado de Direito esteja sujeito. Segundo eles, é preciso ficar alerta ao menor sinal de que um líder esteja desdenhando a Constituição ou os outros Poderes. 

De acordo com a revista Veja, Bolsonaro e seus aliados decretaram pelo menos seis sigilos de um século a informações que prejudicariam seu governo e sua imagem. Esta medida provisória foi única na história do país, ao ampliar a gama de pessoas com acesso a este poder. Dentre os sigilos, está o do encontro de Bolsonaro e Putin, às vésperas da invasão do país à Ucrânia. 

A quantidade de vezes em que é possível registrar o atual presidente atacando os atos do Supremo Tribunal Federal (STF), ou até mesmo incitando seus apoiadores a se manifestarem contra os juízes, deveria causar espanto. A bacharel em Direito, Luana Ferreira, afirma que essa situação entre STF e Bolsonaro “é preocupante, pois a postura de todos os envolvidos só traz descrença para a população, que vive um círculo vicioso de briga política. [Os políticos] Esquecem o real motivo de estarem no cargo, que é buscar o melhor para o interesse coletivo e social da população.”

O segundo comportamento é a “captura” de oponentes do time adversário, seja desacreditando ou os impedindo de tomar posse. Nos debates presidenciais de 2016, Trump usava argumentos sobre o passado de Hillary para desacreditá-la como uma líder capaz. Na campanha de 2020, dentre outras coisas, afirmou que não aceitaria o resultado de uma eleição que considerava fraudada. 

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O ex-presidente americano também incitou o levante popular neste tema, com grande ajuda da propagação de fake news, culminando na Invasão ao Capitólio do dia 6 de janeiro de 2021. Na ocasião, apoiadores de Trump ocuparam as dependências do Congresso americano durante a certificação da vitória de seu oponente, Joe Biden, para tentar impedir que sua posse acontecesse. Para alguns membros do Partido Republicano, a invasão foi uma tentativa de “salvação da pátria”. A revista Time intitulou o episódio em sua primeira matéria de capa do ano como “Democracia sob ataque”, como sendo o mais próximo que a democracia americana chegou de ruir, mesmo que anteriormente tenha sido considerada a precursora no mundo.

Neste sentido, o bacharel em Ciências Econômicas pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FEA-RP/USP) e mestrando em Economia pela Escola de Economia de São Paulo (EESP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Pedro Scatimburgo, analisa que a ideia de uma tentativa de golpe de estado com pessoas invadindo o Capitólio era impensável antes de Trump. “Apesar de não ter sido exitoso em seu processo de encerrar a democracia americana, o caso Trump com certeza abalou muito as instituições. Elas não são mais instituições apartidárias e a marca desse processo vai permanecer nos Estados Unidos por muitos anos.”

Uma comissão parlamentar de inquérito instalada no Congresso americano para apurar os fatos ocorridos no Capitólio acusou Donald Trump de ter orquestrado a invasão, em uma tentativa de golpe. Já conhecemos a força do diretor desse teatro. Os atores o seguem sem questionar o roteiro. E os telespectadores assistiram às cenas mais importantes da história contemporânea americana sem conseguir desviar os olhos do horror representado. 

O terceiro comportamento é o de tolerância ou encorajamento à violência. Segundo a Folha, em 2021, Bolsonaro proferiu 46 ofensas à imprensa, enquanto seus apoiadores foram responsáveis por oito ocorrências de agressão e dez de intimidação a jornalistas. Esses dados demonstram como os adeptos do presidente se sentem à vontade em desrespeitar a vida e o trabalho dos jornalistas, à semelhança de seu líder. 

Em discurso proferido em abril deste ano, Bolsonaro disse que “Nós facilitamos a compra de armas de fogo por parte do povo brasileiro. Nos últimos anos, temos dobrado o número de armas de fogo no Brasil. Eu sempre digo para vocês: povo armado, jamais será escravizado. Reagirá a qualquer ditador de plantão que queira roubar a liberdade de seu povo”. O encorajamento à violência, nesse sentido, também é direcionado aos membros do Judiciário, vistos como vilões da narrativa encenada pelo presidente até hoje. 

Por fim, bastante ligado ao ato de ofender e encorajar a violência,  está a propensão a restringir a liberdade de oponentes e da mídia. Apesar de conter uma cláusula em sua Constituição que prevê liberdade de imprensa, toda informação na Coréia do Norte é pronunciada pela Korean Central News Agency, agência oficial do governo. Em 2017, um tribunal norte-coreano condenou e executou dois jornalistas que publicaram uma entrevista com desertores do regime de Kim Jong-Um. Em Mianmar, no ano de 1991, militares impediram a posse da recém-eleita primeira-ministra Suu Kyi e a condenaram a 15 anos de prisão domiciliar. Vemos, dessa forma, que o líder com propensão antidemocrática segue um roteiro bastante detalhado de ataques, enganação, violência e menosprezo das regras. 

Ainda segundo Levitsky e Ziblatt, ao apresentar uma das quatro características mencionadas, ou todas, o líder antidemocrático pode tentar controlar o poder, por dentro dele e seguindo alguns métodos. O primeiro é a “captura” de órgãos de controle, colocando aliados nessas posições. Quando foi a sua vez de escolher o comando da Procuradoria Geral da República (PGR), Bolsonaro ignorou a lista tríplice de indicações do Congresso, um costume de afabilidade no retrato político do país, e elegeu o candidato com ideologias em maior compasso com as suas. 

Pedro Scatimburgo diz que o cenário da tomada de instituições por parte de Bolsonaro é preocupante. “Notavelmente, a Procuradoria Geral da República antes de Bolsonaro era uma ‘pedra no sapato’ dos últimos presidentes.” Ele complementa: “Com Augusto Aras, o procurador geral voltou a ser reconhecido como ‘engavetador’ da PGR e que, além de engavetar os processos, sai em defesa do presidente.”

A presença dos filhos do presidente em reuniões importantes para o futuro do país deixou de assombrar, como em um filme de terror no qual você não se assusta mais quando a porta da casa abandonada é aberta. Segundo a apuração do Poder360, o presidente levou os filhos em 18 das 26 viagens internacionais que realizou até fevereiro deste ano.

Jair e Eduardo Bolsonaro em jantar com Donald Trump. [Imagem: Reprodução / Flickr / Alan Santos]

O segundo método é o da tentativa de reescrever as regras do jogo para seu próprio benefício. A legislação russa permite, assim como a brasileira, apenas dois mandatos consecutivos de um mesmo presidente. Para não ter a eventualidade de sair do governo em 2024, Putin alterou essa lei e sancionou a possibilidade de se reeleger por mais três mandatos, abrindo caminho para continuar no poder até 2036. 

A Constituição de Mianmar, criada em 2018, quando o país estava sob um regime militar iniciado em 1962, prevê que 25% das cadeiras do Congresso sejam dedicadas ao Exército. Outra medida sancionada pelo governo militar foi a de que pessoas com cônjuges e filhos estrangeiros não podem se candidatar à presidência do país. Essa última medida foi criada para que Suu Kyi, principal opositora do governo e outrora eleita primeira-ministra e impedida de tomar posse, não pudesse oficializar uma candidatura. 

Apesar dos inúmeros exemplos de ações antidemocráticas apresentados acima, você pode estar se perguntando se a situação está realmente tão ruim, já que estamos vivendo em um regime democrático, Trump aceitou a derrota e saiu do poder e os líderes abertamente tiranos estão bem longe de nós. 

De acordo com o Instituto para Democracia e Assistência Eleitoral, 70% da população mundial vive em países onde há retrocesso democrático. Apenas nos últimos três anos, quatro países passaram de regimes democráticos à ditatoriais, dentre eles Mianmar. 

Segundo a revista The Economist, que produz anualmente o Democracy Index, índice de acompanhamento da democracia mundial, o Brasil vive uma “Democracia Imperfeita”. Este estado, no qual também se encontram países como Índia, Namíbia, Peru, Indonésia e Mongólia, deriva do fato de que Bolsonaro, como explicado pela revista, “exigiu a renúncia de dois membros do Supremo Tribunal Federal após a investigação de pessoas de grupos pró-Bolsonaro estariam espalhando mentiras, […] questionou a integridade do sistema eletrônico de votação, apesar de não haver nenhuma evidência de fraude, […] disse que iria ignorar os resultados das eleições presidenciais e legislativas de 2022”. Ainda segundo o mesmo índice, apenas 6,4% da população mundial vive em regimes de democracia plena. 

Mapa da democracia mundial. [Imagem: Reprodução / Our world in data]

Donald Trump, de acordo com Levitsky e Ziblatt, não foi o primeiro líder com ideias antidemocráticas a tentar alguns dos métodos de controle de poder a se eleger nos Estados Unidos. Mas seu mandato foi marcado por ideias tão extremistas, e que antes não tinham espaço no país, que sua eleição pôde ser considerada inédita. Anteriormente, candidatos que possuíam algum tipo de ideia extremista eram barrados pelas prévias de seu próprio partido, que não permitiam o lançamento de suas candidaturas. Caso, de alguma forma, esses políticos ainda fossem eleitos, o Senado e a Câmara representavam os papeis de “Guardiões da Democracia”, impedindo que medidas autoritárias passassem a valer como regra no cenário nacional. No caso de Trump, que não apenas conseguiu se eleger como se esquivou dos comandos dos diretores jurídicos de seu ato, o Congresso não foi capaz de reverter a polarização intensa que o elegeu e que norteou seu mandato. 

O discípulo brasileiro de Trump não fica tão atrás. Também eleito com o uso de uma intensa polarização que definia seu lado como o herói da história, enquanto seus oponentes eram retratados como vilões, Bolsonaro driblou as regras oficiais e não oficiais da mise-en-scène da política brasileira, que funcionavam relativamente bem desde 1985. No poder, além de colocar pessoas íntimas e com ideologia semelhante à sua em cargos de liderança, Bolsonaro usou de distribuição de verbas e cargos para comprar congressistas do chamado “centrão”. A política de centro costumava cumprir seu propósito no país: ser o meio termo entre dois extremos, mantendo a estabilidade e impedindo que medidas radicais fossem sugeridas e aprovadas. Com a união do presidente e essa camada política com dever tão importante, as regras do jogo mudaram e a captura de quem deveria proteger a democracia aconteceu. 

[Imagem: Arquivo pessoal / Vinícius Princiotti]

Quando perguntado se a captura dos órgãos e partidos de controle, por parte de Bolsonaro, afeta a democracia do país, Vinícius Princiotti, graduado em Ciências Econômicas pela FEA-RP/USP e mestrando em Administração Pública e Governo pela EAESP/FGV, é enfático ao responder que sim. Em suas palavras: “Acho que a grande questão pra mim é a forma como ele faz isso. Se você olhar para o tal do ‘orçamento secreto’, por exemplo, vê dinheiro público sendo destinado a projetos definidos por parlamentares sem que se garanta um processo de transparência.”  

Princiotti ainda complementa: “Só nisso você já perdeu boa parte do que ‘democracia’ prevê. Se considerar também que os demais órgãos públicos, que deveriam até mesmo fiscalizar os primeiros, estão de alguma forma aparelhados, a gente se vê mesmo sem perspectiva”.

Qualquer semelhança da atual política brasileira com a descrição de representar os “salvadores da pátria” proposta por Applebaum não é mera coincidência. Mais ainda, o uso de “clercs” no pano de fundo da política ― pessoas definidas por ela como influenciadores da opinião pública que, como descrito anteriormente, dão voz às queixas, manipulam os descontentamentos e canalizam a raiva ― foi capaz de reescrever o script da realidade para que se encaixasse no esquema de heroísmo proposto pelo governo. Dentre os “clercs” brasileiros, os que fazem mais barulho são os próprios filhos do presidente, que mandam e desmandam sem ter poder oficial para isso e propagam seus pensamentos antidemocráticos para quem quer ou não ouvir. 

Como diz Petra Costa em seu documentário: “Somos uma república de famílias. Umas controlam a mídia, outras os bancos. E, de vez em quando, acontece delas se cansarem da democracia, do Estado de Direito”. Vinícius Princiotti complementa que, nesse cenário, as “instituições se corroem aos poucos, sem que muitos sequer percebam, sem protesto, sem um entendimento completo do que de fato está acontecendo. A democracia já está corrompida, e a gente paralisado porque ainda nem entende muito bem”. É preciso cuidado e atenção às próximas cenas dessa dramaturgia, para que não acabe como uma tragédia shakespeariana. 

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