Embora mais de 10 anos tenham se passado desde o lançamento do livro Divergente (Rocco, 2011), de Veronica Roth, a história continua a interessar leitores ao redor do mundo. Composta por três livros principais, a saga completa já vendeu mais de 35 milhões de cópias, mas, mesmo com esse sucesso, a trilogia divide opiniões. Quer saber mais? Nessa resenha, o primeiro volume será analisado.
No universo distópico e futurístico de Divergente vemos a história de Beatrice Prior em uma Chicago destruída por uma grande guerra anos atrás. Narrado em primeira pessoa pela personagem, a perspectiva limitada dela apresenta um mundo dividido em cinco facções: Abnegação (altruísmo), Amizade (generosidade), Audácia (coragem), Erudição (inteligência) e Franqueza (honestidade). Cada membro da sociedade deve se enquadrar em uma delas e se comportar segundo o padrão da facção da qual faz parte, mesmo quando não se identificam com os valores do grupo.
Nascida na Abnegação, Beatrice descobre que tem aptidão para três facções diferentes, sendo, assim, uma divergente. Sem saber o que o termo implica e com a obrigação de escolher apenas um dos grupos, a garota de 16 anos precisa decidir entre ficar com a sua família ou abandoná-la para sempre e começar uma nova vida. Uma escolha difícil por não envolver apenas o que ela deseja, mas também implicações políticas e uma surpresa familiar momentos antes de sua decisão que a faz ter um imenso peso na consciência.
Tris ― nome escolhido por Beatrice ao escolher a Audácia ― logo percebe que o maior desafio ainda está por vir. O processo para ser considerada um membro oficial da nova facção, que envolve arriscar sua vida, se tornar alguém que não quer ser e, ficar entre os melhores, pode custar o seu desejo de liberdade e autonomia. Mas, talvez a liberdade esteja mais distante do que parece e apenas poucas pessoas a tenham em mãos.
Ações rápidas e sem enrolação
Divergente também pode ser considerado um livro de ação. Focado naquilo que pode movimentar a trama, nem sempre há detalhamento do cenário e das personagens. Essa estratégia usada por Veronica Roth é semelhante à que é usada em Jogos Vorazes (Rocco, 2008) e agrada muitos adolescentes e jovens, o principal público-alvo do livro, sendo um dos motivos para a popularização da história.
As duas sagas são trilogias narradas por uma protagonista feminina. Nas histórias, as personagens possuem algum desafio perigoso a ser enfrentado a todo momento, tornando a leitura mais dinâmica.
“Ouço uma porta rangendo e viro-me para ver quem é. O que vejo não é uma pessoa, mas um cachorro com nariz pontudo, parado a alguns metros de mim. Ele se agacha, esgueirando-se em minha direção, e seus lábios se abrem, revelando seus dentes. Um rosnado soa do fundo de sua garganta, e percebo que um pedaço de queijo talvez fosse bastante útil agora. Ou uma faca. Mas já é tarde demais para isso.”
Trecho do livro Divergente
Uma parte do livro que merece menção é o final. Com poucos capítulos para acabar a história, as ações ocorrem de forma tão rápida que é difícil compreender alguns trechos que incluem morte de personagens, lutas e . Parece que a autora estava com pressa ou com um número limitado de páginas que podia escrever e se lembrou que ainda precisava terminar a história.
Personagens sem profundidade
Veronica Roth focou tanto na ação e no enredo que o desenvolvimento das personagens ficou precário. Tris poderia facilmente figurar em listas de “protagonistas criadores de ‘ranço’”. No começo do livro, ela é um tanto dramática e enfatiza várias vezes a sua situação desvantajosa. A personagem também não tem tanta aptidão para a abnegação quanto a autora tenta fazer o leitor acreditar que tem. Em diversos capítulos, ela se mostra egoísta e com ódio de pessoas fracas. Esses traços de caráter são os únicos que parecem motivar Tris a agir em algumas situações ao longo do livro. Características mais admiráveis em uma protagonista não são cultuadas e tornam a personagem um tanto vazia, com os únicos objetivos de sobreviver e ser contra o sistema.
Outros personagens também carecem de profundidade e muitas vezes são movidos apenas com base em estereótipos, como se um valentão fosse apenas um valentão ou um medroso sempre agisse como tal. A estratégia funciona quando se trata de personagens que estão distantes da protagonista, afinal, na vida real, é o que é feito. Avalia-se pessoas com base em estereótipos e se não há uma profundidade na conexão, os estereótipos podem acabar moldando o imaginário da pessoa. Mas a mesma estratégia usada em personagens que são próximos do protagonista cria um distanciamento entre o leitor e a história. É difícil sentir empatia por personagens que não se conhece com profundidade.
Desenvolvimento de mundo precário
A ideia de dividir as pessoas em grupos com base nas suas personalidades pode lembrar um pouco a saga Harry Potter (Rocco, 2000) com as suas famosas casas: Corvinal, Grifinória, Lufa-Lufa e Sonserina. Mas enquanto na saga do bruxo a divisão funciona, em Divergente, ela parece um mecanismo frágil. Resumir a personalidade das pessoas a um único traço não é algo fácil de se aceitar. Em mais de um capítulo, as personagens revelam ter fortes traços de facções diferentes das quais mostraram aptidão, o que quebra a montagem dos divergentes como as únicas pessoas que não se enquadram no sistema.
Divergente também peca em algumas explicações para o mundo criado. Parte das respostas estão nos próximos livros da saga, mas para algumas delas, não há sentido nem mesmo no mundo literário criado pela autora.
As explicações para as atitudes da antagonista e líder da Erudição, Jeanine Matthew, também não fazem sentido. Ela é considerada quase como uma máquina humana de tão inteligente que é, mas, mesmo assim, é extremamente ingênua nos métodos que escolhe para conquistar seus objetivos. A Erudição como um todo não parece ter sido desenvolvida para ser a facção dos inteligentes, ou seja, daqueles que possuem o QI mais alto e, dessa forma, são considerados os mais inteligentes na obra.
O paralelo com a vida real
Mesmo com as fragilidades na construção das personagens e do mundo, Divergente continua a ser um livro que vale a pena ser lido. As relações entre distopia e sociedade são estudadas e trazem ensinamentos e reflexões para a vida. É possível enxergar muitas semelhanças da vida de Tris com a dos jovens da vida real: o processo de crescimento e amadurecimento que envolvem escolhas cujas consequências são impossíveis de prever. A passagem para a vida adulta é dolorida e às vezes requer uma maior maturidade. A teimosia e o egoísmo estão amplamente presentes no cotidiano, e a tão almejada liberdade não deixa de ser um dos maiores desejos do jovem.
Veronica Roth segue uma fórmula já conhecida para agradar o público-alvo e fazer da obra um best-seller. Com capítulos pequenos e linguagem acessível, Divergente é aquele livro que pode ser lido em um dia. Além disso, o período que Divergente foi lançado também colaborou para o sucesso da saga: a febre das distopias literárias Young Adult no Brasil e em vários países.Com tamanho sucesso, os fãs nem precisaram esperar muito para assistir ao filme da saga. O longa-metragem Divergente teve recepções mistas dos fãs e da crítica. Seja como for, assistir ao filme depois de ler o livro é uma boa opção para entender melhor a narrativa.