Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Dona Flor e Seus Dois Maridos (e Chico)

“Alguém há dias me perguntou o que oferecer a um hóspede de requinte, de paladar esnobe, a quem não apetece o trivial. Num caso desses, aconselha-se servir um cágado guisado. Com gosto de culpa e pecado. Mas se vosso hóspede quer ainda caça mais fina, por que então não lhe servir um prato ainda mais …

Dona Flor e Seus Dois Maridos (e Chico) Leia mais »

“Alguém há dias me perguntou o que oferecer a um hóspede de requinte, de paladar esnobe, a quem não apetece o trivial. Num caso desses, aconselha-se servir um cágado guisado. Com gosto de culpa e pecado. Mas se vosso hóspede quer ainda caça mais fina, por que então não lhe servir um prato ainda mais sofrido? Uma viúva bonita e moça. Eu sei de uma viúva assim. Cuja cama é um deserto a atravessar, escaldante areia do desejo. Sem porta de saída.”

“As conexões entre cinema, música e literatura são mostra de que a combinação entre diferentes expressões de arte podem coincidir em primorosos enredos.” [Imagem: Lígia de Castro/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior]
Por Matheus Oliveira
oliveiramatheus123@gmail.com

Publicado há 52 anos, Dona Flor e Seus Dois Maridos se consagrou como um dos maiores clássicos escrito por Jorge Amado. A história da cozinheira baiana que divide sua atenção entre dois homens logo se converteu em um grande sucesso literário que, dez anos após o lançamento (datado de 1966), foi adaptado ao cinema; assim se tornando o filme nacional de maior bilheteria até 2010, com a estreia de Tropa de Elite 2, de José Padilha.

Dirigido por Bruno Barreto (O Beijo no Asfalto, 1981, O Que É Isso, Companheiro?, 1997), o filme narra a jornada da jovem Florípedes, que em certa noite de carnaval fica viúva de Vadinho, seu grande amor. Após um longo período de consternação e desconsolos, Flor casa-se novamente, dessa vez com Teodoro, um meticuloso farmacêutico cujo arquétipo de bom moço é completamente oposto ao do primeiro marido. Porém, mesmo após o segundo casamento a moça não consegue — e não deseja —  se desvencilhar das graças de Vadinho, que embora morto ainda aparece para seduzi-la. No final, Flor acaba por se convencer a conviver com os dois maridos que, juntos, trazem o que ela sempre procurou: o homem honesto e companheiro de carne e osso e o prazer sexual inenarrável proveniente de um mundo metafísico.

Embora assumam suas próprias formas e pertençam a universos distintos, as conexões entre cinema, música e literatura são mostra de que a combinação entre diferentes expressões de arte podem coincidir em primorosos enredos. Pensada de modo a delinear a trajetória de Florípedes, a trilha sonora em Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976) se constitui como um caractere tão fundamental que pode até mesmo ser fixada como um quarto elemento; um personagem tão importante quanto o trio protagonista.

Composta por Chico Buarque e cantada por Simone a pedido de Bruno Barreto, a canção “O que será” é dividida em três partes — “Abertura”; “À flor da pele” e “À flor da terra”  — que juntas demarcam as passagens dentro da trama. O sucesso da música foi tanto que, ainda em 1976, “O que será – À flor da terra” se tornou a primeira faixa no álbum “Meus Caros Amigos”, dessa vez interpretada pelo próprio Chico e por Milton Nascimento, que ocasionalmente passava pelo estúdio onde o compositor trabalhava e então pediu para fazerem um arranjo em dupla.

A música e o momento

Assim como a música que compõe a trilha sonora do primeiro filme guarda três versões, o próprio enredo é construído pautado em três cortes, ou três transições narrativas, que acompanham a história de Flor ao mesmo tempo em que conversa com as músicas compostas especialmente para a adaptação.

[Imagem: Lígia de Castro/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior]

A música que inicia o filme é, coerentemente, a primeira parte, ou a Abertura, de “o que será”. Tudo começa em uma madrugada de carnaval do ano de 1943, quando o Boêmio Valdomiro (José Wilker), ou Vadinho, como é conhecido pelos mais íntimos, sucumbe em pleno passeio público baiano.

Rodeado pelos fiéis amigos que sempre estiveram ao seu lado e o tinham como figura das mais benquistas, o homem de cachos louros por quem Flor (Sônia Braga) é sagradamente apaixonada deixa o mundo dos vivos e é velado em meio às lamentações mais profundas — incluí-se as de uma amante —  e os bochichos maldosos de Dona Rozilda (Dinorah Brillanti), a sogra que deixou de se dobrar às graças do genro e o via e vendia como um punhado de más qualidades.

Nas palavras do prestigiado poeta e amigo do morto, Clodoaldo (Nelson Dantas), em elegia baiana das mais sofridas: “Jamais outro virá tão íntimo das estrelas, dos dados e das putas. Estão de luto os jogadores e as negras da Bahia. Um minuto de silêncio em todas as roletas.Bandeiras a meio pau no mastro dos castelos. Bundas em desespero a soluçar.”

Em face da viuvez, Flor embarca em um longo período da mais profunda tristeza e solidão, sendo consolada por Norminha (Haydil Linhares), amiga com ares maternos que dá a Flor o carinho que sua mãe, dona Rozilda, nunca lhe deu.            

Mas, com o tempo, o que era luto se transforma em saudade. Saudade do Vadinho que, como nenhum outro, sabia provocar e fazer brotar À flor da pele seus desejos mais íntimos.

[Imagem: Lígia de Castro/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior]

A saudade e as lembranças dos momentos que compartilhou com Vadinho, em especial os tempos em que tinham um ao outro, fazem Flor “suplicar” por aquilo “que não tem descanso”, e muito menos “cansaço”. A moça, então, passa a resgatar e viver das lembranças da vida que teve com o ex-marido, se embrenhando em um nostálgico jardim de desejos vibrantes e interrompidos. À flor da pele marca a superação do luto — ou, no mínimo, a substituição deste pelas memórias de Vadinho — e o retorno da personagem-viúva às atividades da vida cotidiana, onde aparece Teodoro, o segundo Marido.

Na extremidade oposta à de Vadinho, Teodoro é o típico homem habilmente ajustado, íntegro farmacêutico de invejável corretude e respeito — o que porém não o livra da má língua de Dona Rozilda; já que, aliás, farmacêutico não é Doutor. Casando-se novamente, Flor encontra em seu novo marido muito daquilo que sempre cobrou do primeiro: o homem comum que depois do trabalho traz o jornal do dia embaixo do braço e sempre chega a tempo do jantar.

Se por um lado o que brota À flor da pele é o desejo de Flor por Vadinho, por outro, À flor da terra pode ser lida como uma conciliação entre dois mundos. Conciliação por que Flor, depois de casada com Teodoro, passa a receber visitas de Vadinho, o finado marido.

[Imagem: Lígia de Castro/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior]

Atormentada pela presença do ilustre senhor, a moça recorre da umbanda ao catolicismo na ânsia de mandá-lo de volta para as terras do além. Ocorre que, em verdade, Flor não quer que Vadinho se vá. A consciência pesada por se manter em tão inusitada bigamia rapidamente transforma-se para ela na mais agradável aliança entre o bom marido e o fudião. Talvez mesmo que desprovido de “sentido” ou “decência” para a cognição e moral, Flor por fim aceita e concilia sua relação com os dois maridos e também consigo mesma.

Embora filmado há mais de 40 anos, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” toca em questões sensíveis que vão desde a liberdade sexual feminina até o conceito de poligamia. Inegavelmente, a adaptação cinematográfica não se furtou ao tratar de temas controversos para a época e também ao produzir a mais bem pensada trilha sonora da história do cinema brasileiro. Em 1992, ao tomar conhecimento de sua ficha no DOPS, assim como de uma análise da censura em “O que será” , Chico Buarque disse ao Jornal Brasil: “Acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar…”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima