Por Maria Eduarda Oliveira (marieduarda@usp.br)
Indicado à categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar 2024, Eu, Capitão (Io, Capitano, 2023) chegou ao Festival de Cinema Italiano para relembrar como a imigração está intrinsecamente ligada à história da Itália. O longa acompanha Seydou (Seydou Sarrar) e seu primo Moussa (Moustapha Fall), jovens senegaleses, durante a jornada dos dois em busca de oportunidades no continente Europeu. A direção é do cineasta de Matteo Garrone, conhecido por trabalhos como Gomorra (2008) e Pinóquio (Pinocchio, 2019).
Os protagonistas sonham em trabalhar com música, mas em Dakar, no Senegal, a única maneira de se conseguir muito dinheiro é através de trabalhos braçais. Ainda que a mãe não concorde com a ida do filho para um país estrangeiro, Seydou acredita que essa é sua única chance de alcançar um futuro melhor, então decide fugir de casa.
Assim como o sucesso da Netflix As Nadadoras (The Swimmers, 2022), que acompanha o percurso de duas irmãs sírias tentando se refugiar na Alemanha, o enredo é baseado em uma história real. Garrone contou em entrevistas ter se inspirado em um relato que escutou de um adolescente chamado Fofana Amaral, que tinha apenas 15 anos na época do ocorrido, durante uma visita a um centro de acolhimento a refugiados.
Assim como Seydou, Fofana foi obrigado por milicianos líbios a guiar um navio ilegal transportando mais de 200 pessoas até o porto de Augusta, na Sicília. O jovem não tinha qualquer experiência com embarcações e sequer sabia nadar, porém, conseguiu manter todos vivos durante a viagem.
A busca dos protagonistas pelo sonho europeu é realidade na vida de uma grande parcela da população mundial. Alguns vão em busca de refúgio político, outros procuram oportunidades melhores de emprego, educação e segurança, e existem os que são obrigados pelas guerras. Segundo a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), cerca de 120 milhões de imigrantes forçados estão espalhados pelo mundo. Pelo menos 3% da população mundial vive fora de seu país de origem. Em contrapartida, a Europa tem adquirido cada vez mais médias que restringem o acolhimento de imigrantes do chamado terceiro mundo. A crise migratória é um dos maiores debates geopolíticos do último século.
Na maior parte do tempo, o filme se foca na forte relação fraternal de Seydou e Moussa, que passam por diversos momentos de felicidade e tristeza na companhia um do outro. A amizade se constrói em um ambiente por vezes hostil, o que não abala a ligação entre eles. Enquanto isso, a sintonia dos atores em cena faz com que os dois naturalmente pareçam primos e melhores amigos. As atuações não são extraordinárias, mas cumprem o necessário e o carisma da dupla torna as cenas mais leves.
O longa tem a brutalidade do mundo estampado em cenas que explicitam a dor de meninos que buscavam apenas realizar seus sonhos. Seydou sofre na mão da maioria das pessoas que passam por seu caminho, especificamente os que são responsáveis por essa travessia entre um país e outro, e assim como ele, o telespectador começa a questionar a escolha do protagonista em sair do lado da mãe para encontrar algo incerto. No meio dessa dor, a direção usa de elementos fantásticos, como uma mulher flutuando no meio do deserto, para quebrar a aridez da situação.
As cores usadas na fotografia colaboram com essa perspectiva mágica e juntos os dois aspectos formam planos visualmente deslumbrantes, combinando os elementos dos cenários de maneira magnífica.
Apesar da competência na abordagem das adversidades experimentadas na trajetória de imigrantes, é impossível ignorar que essa é uma produção completamente liderada por italianos. Sua indicação ao Oscar como Melhor Filme Estrangeiro, inclusive, foi representando a Itália, não o Senegal. Esse aspecto não deslegitima o trabalho apresentado aqui, entretanto, abre questionamentos sobre quem é verdadeiramente dono dessa história.
A ideia de que alcançar a Itália encerraria o sofrimento para eles é resultado direto da omissão do roteiro em relação ao que os meninos provavelmente iriam encontrar em território italiano. No caso de Fofana Amara, ao ser resgatado pela guarda costeiral siciliana ele foi também preso, pois era menor de idade e estava pilotando o barco, e por mais que as circunstâncias fossem únicas, o ato ilegal foi o que importou mais para as autoridades italianas.
Quando se escuta o depoimento de refugiados reais, é possível perceber que a perseverança foi um dos fatores que os fizeram permanecer vivos enquanto cruzavam desertos escaldantes e mares revoltos que poderiam os engolir. Ainda assim, abraçar tão forte essa perspectiva faz parecer que Garrote acredita que a perseverança é o que os manteve vivo, quando na verdade se trata de uma aleatoriedade cruel.
Mesmo que essa não tenha sido uma escolha pensada durante a produção, a montagem de algumas cenas, principalmente na parte final, quando a história chega ao ápice dos desafios para Seydou e Moussa, podem levantar a dúvida no telespectador se esse é um filme verdadeiramente interessado na perspectiva dos imigrantes ou mais um longa ocidental que se aproveita do sofrimento de quem eles ignoram para contar histórias tristes.
O ato final cultiva no telespectador o medo de que, novamente, as coisas deem errada para Seydou e Moussa. Com todos os acontecimentos ruins que atravessaram o percurso dos jovens, sobra ao espectador a torcida de que o sofrimento chegue ao fim. Pensando que esse filme rodou os principais festivais do mundo cinematográfico, chegando a ganhar o Leão de Prata de Melhor Diretor, talvez o maior legado dele tenha sido lembrar a grande elite europeia da existências dessas histórias sufocadas pela arrogância ocidental.
Eu, Capitão entrega um belo trabalho, mas em sua essência, perpetua a invisibilidade do que é contado diariamente por quem experimentou os percalços dessa realidade. O cinema é livre para contar história sem considerar fronteiras, mas como em outras expressões artísticas, a quantidade de pessoas que irá alcançar e impactar cada obra depende de onde ela está vindo.
Confira o filme no Festival Italiano de Cinema. Assista o trailer:
Imagem de capa: Divulgação/Festival de Cinema Italiano