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A xenofobia na cobertura jornalística europeia da guerra da Ucrânia

Falas ofensivas e reportagens islamofóbicas se tornaram cada vez mais recorrentes na mídia ocidental com o início do conflito ucraniano e são um retrato de parcela da sociedade europeia, que ainda se apega a ideais preconceituosos e bodes expiatórios

O dia 24 de fevereiro de 2022 foi marcado pela invasão de tropas russas ao território ucraniano, dando início a Guerra da Ucrânia. Tal acontecimento obteve repercussão mundial, ocupando as manchetes principais dos maiores jornais do mundo. Afinal, o conflito estava acontecendo em território europeu, que, por muitas vezes, apenas tinha sido mero observador e mediador das guerras do século XXI. Dessa forma, por ser classificada por muitos como o maior desafio do continente desde a Segunda Guerra Mundial, a Guerra da Ucrânia segue ocupando as pautas dos noticiários internacionais ocidentais quase que integralmente. 

Assim sendo, pode-se dizer que, juntamente com o começo do conflito ucraniano, foi dado o início de uma cobertura jornalística intensa, principalmente dos veículos de imprensa europeus. Com esse frenético fluxo de informações estabelecido, tornou-se cada vez mais recorrente dentro da mídia ocidental reportagens carregadas de xenofobia, racismo e islamofobia – escancarando preconceitos normalizados e perpetuados até os dias atuais na sociedade europeia.

 

Contexto político europeu

O continente europeu se encontra em meio a uma tendência política de ascensão da extrema-direita e da popularização de ideais xenofóbicos e higienistas. De acordo com o advogado e jornalista internacional Mathias Boni, “o aumento de popularidade de partidos e políticos de extrema-direita representa mais uma ameaça à democracia no continente, como mostra a votação expressiva de Marine Le Pen, na França, de partidos como o Vox e o Chega, na Espanha e em Portugal, e do próprio Boris Johnson no Reino Unido.”. 

Com a crise de refugiados de 2015, muitas figuras políticas recorreram a discursos nacionalistas e protecionistas para conquistar uma população insatisfeita com o fluxo migratório e a recessão econômica enfrentada após 2008. Um exemplo de político que ganhou notoriedade com essas pautas é o já mencionado por Boni Boris Johnson, primeiro ministro do Reino Unido e responsável por administrar o país durante o Brexit – que teve como uma de suas motivações a regulamentação das fronteiras. 

Destaca-se também a francesa Marine Le Pen, que obteve 41,46% dos votos na última eleição presidencial. Durante sua campanha, Le Pen se mostrou a favor da proibição do uso de hijabs em locais públicos, além de culpabilizar imigrantes por “comportamentos bárbaros” e de causarem insegurança nas ruas francesas. 

 

Eleição presidencial francesa é marcada por uma grande disputa e representa a ascenção da extrema direita no continente
Marine Le Pen, candidata vencida por Emmanuel Macron no segundo turno das eleições presidenciais francesas. [Imagem: Reprodução / Flickr]

 

A guerra da Ucrânia

Com relação ao conflito ucraniano, já existiam tensões entre os países desde 2014, com a anexação da Crimeia pela Rússia e a aproximação da Ucrânia com a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN. Ao final de 2021, o presidente russo, Vladimir Putin, apresentou à OTAN um documento que formalizava uma lista de exigências no âmbito militar. Na documentação constavam tópicos como o não-avanço da organização em direção a Europa Oriental e o ingresso da Ucrânia ao Tratado (o qual Putin se mostrava veementemente contra). Contudo, não houve nenhum avanço na discussão de tais pontos, o que ocasionou no estabelecimento de um clima de apreensão nas fronteiras entre os Estados, com presença militar ativa.

 A origem do conflito armado se deu nas províncias separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk com o reconhecimento de sua independência por Vladimir Putin, que acabou por remanejar suas tropas e mandá-las invadirem tais localidades. Com as movimentações militares de ambos os lados, houve uma rápida escalada de violência entre os países, o que acabou por ocasionar a guerra. 

Atualmente, o embate entra em seu quarto mês e não existe uma previsão para o seu encerramento, uma vez que encontros diplomáticos entre os dois Estados foram orquestrados mas não obtiveram nenhum avanço em direção ao cessar-fogo. Até o mês de maio, foram confirmadas 4.031 mortes e 3.680 feridos, além de mais de 6 milhões de refugiados, segundo a chefe da Missão de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre a Ucrânia.

 

A guerra da ucrânia tem ocasionado o deslocamento de um grande número de pessoas
Refugiados ucranianos fogem de seu país devido ao clima de violência e insegurança instaurado com a guerra. [Imagem: Reprodução / Wikimedia Commons]

 

A cobertura europeia

“Este não é um lugar, com todo o respeito, como o Iraque ou o Afeganistão, que têm visto conflitos violentos há décadas. Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia, cidade onde você não esperaria isso”, disse o jornalista estadunidense Charlie D’Agata, do canal norte-americano CBS News, em um programa ao vivo, no dia 25 de fevereiro de 2022. Esse tipo de posicionamento é um exemplo de como os veículos de comunicação ocidentais vem apresentando a Guerra da Ucrânia: como se o conflito fosse algo impensável para um país europeu e atos de violência e hostilidade fossem exclusivos de países longínquos ou “menos desenvolvidos”, de acordo com certos padrões.

Veículos de imprensa como o britânico The Telegraph, BBC News e, até mesmo, o Al Jazeera foram responsáveis por difundirem falas como a de D’Agata. Ainda de acordo com o jornalista internacional Mathias Boni, “A cobertura midiática europeia em relação à guerra na Ucrânia é completamente desproporcional em relação às coberturas de outras guerras que são feitas pelos veículos do continente.” A afirmação de Boni destaca o caráter xenofóbico da mídia europeia, que dispõe de diferentes abordagens e vocabulários para conflitos classificados como não-relevantes por eles. 

 

 

Essa cobertura preconceituosa realizada por muitos jornalistas ajuda a perpetuar certos estereótipos, como o de que o Oriente Médio e o Norte da África são áreas substancialmente violentas. Dessa maneira, dentro desse contexto de confrontos armados, é possível destacar outro embate: o de narrativas. 

O escritor e activista político palestino-estadunidense Edward Said aborda essa guerra narrativa em seu lirvo “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”, que discute o conceito de orientalismo. Tal concepção destaca a construção de uma visão do Oriente pelo Ocidente em sua posição hegemônica mundial.

Uma clara demonstração de orientalismo é o próprio nome “Oriente Médio”, que é dado em relação à posição dos países localizados ao oeste asiático com relação à Europa. Dessa forma, quando um jornalista francês diz em rede nacional que “Não estamos falando de sírios fugindo dos bombardeios do regime sírio apoiado por Putin, estamos falando de europeus fugindo de carros como os nossos para salvar suas vidas”, fica evidente como certas narrativas orientalistas impregnam os pontos de vista europeus.

 

As consequências da cobertura

Layla*, uma holandesa de ascendência árabe, diz que a mídia não traz uma representação fidedigna do que realmente acontece em relação aos conflitos que se passam hoje no Oriente Médio. “Muitas pessoas têm ideias erradas sobre muitos países e religiões e elas só acabam por descobrir isso quando têm a chance de estudar sobre determinado país e cultura. Mas, você não pode culpá-los porque eles não controlam esse tipo de informação” diz Layla, salientando o papel dos meios de comunicação na perpetuação de certos preconceitos em relação a estrangeiros, principalmente os de origem árabe. Na visão da holandesa, os jornais possuem um grande poder na hora de contar histórias, já que sempre existirão marcas ideológicas e pontos de vista no ato de noticiar um acontecimento. 

Para Tom*, cidadão holandês, a imprensa é responsável por criar certa imagem dos imigrantes e refugiados vindos do Oriente. “Essas pessoas do Oriente Médio estão vindo à Europa para fugir, mas sua vinda tem interesses por trás – essa é a história que o jornal irá te contar. Eles vão dizer que os refugiados estão aqui para roubar nossos empregos”, aponta Tom, dando destaque ao caráter orientalista tão perceptível nas manchetes europeias.

 

“Eles vão dizer que os refugiados estão aqui para roubar nossos empregos”

Tom, cidadão holandês

 

Já Maria*, uma brasileira que já morou em alguns países e, hoje, reside na Holanda, sente que “existem pessoas que são mais importantes do que outras”, nos olhos da mídia ocidental. Segundo ela, tal hierarquização também é refletida no sistema de imigração dos países europeus, com a separação de solicitações de refúgio para ucranianos e de outras nacionalidades. “Eu observo diferenças dentro do sistema. O sistema é racista para mim”, a brasileira alega.

 

“Eu observo diferenças dentro do sistema. O sistema é racista para mim”

Maria, brasileira residente na Holanda

 

Reprodução de página do sistema de imigração que denota postura preconceituosa e segregacionista com aqueles que migram
Reprodução da página inicial do site do serviço de imigração holandes, no qual existe uma área exclusiva para refugiados ucranianos. [Imagem: Reprodução / Serviço de Imigração e Naturalização (IND) dos Países Baixos]

 

Em contraponto a esse cenário de preconceitos sistêmicos, o continente se mostra extremamente receptivo para com os refugiados ucranianos, existindo até incentivos monetários para aqueles que se dispuserem a acolhê-los. O presidente polonês, Andrzej Duda, disse em declaração que “ as pessoas sabem que devem abrir seus corações e receber os refugiados”, já que a Polônia recebeu 2,1 milhões de ucranianos nesses últimos três meses. A sua fala destoa da posição anti-imigrante de seu governo, responsável por fechar as fronteiras para 4 mil refugiados vindos de países do Oriente Médio.

Segundo Mathias Boni, “nas últimas décadas, vem sendo notório o comportamento de violação a esses direitos que os europeus vem fazendo ao redor de seus territórios”. O jornalista ainda complementa: “Essa diferença também ficou ainda mais clara nessa crise na Ucrânia, pois os ucranianos fugindo de seus país foram rapidamente acolhidos dentro da União Europeia, algo que sírios, líbios e afegãos, por exemplo, sofrem há anos para conseguir.” Nesse sentido, vale citar o Estatuto dos Refugiados, documento sancionado em 1951 pela Organização das Nações Unidas, que define a universalidade dos direitos a todas as pessoas em situação de refúgio.

 

Art. 3º – Não discriminação 

Os Estados Contratantes aplicarão as disposições desta Convenção aos refugiados sem discriminação quanto à raça, à religião ou ao país de origem

Estatuto dos Refugiados, Organização das Nações Unidas

 

O comodismo preconceituoso europeu

“Eles parecem tanto com a gente. Isso é o que faz ser tão chocante. A Ucrânia é um país europeu. Sua população assiste Netflix e tem contas no Instagram.” Essa frase, retirada de um artigo escrito por Daniel Hannan para o jornal britânico The Telegraph, evidencia a xenofobia presente na cobertura jornalística europeia da guerra da Ucrânia. 

Dessa forma, é fato que existe uma clara distinção de tratamento entre os refugiados ucranianos e vindos do Oriente Médio e de outras partes do mundo, dentro da sociedade europeia. Com isso, os veículos de comunicação refletem em suas matérias algo que está consolidado na base do pensamento europeu: uma narrativa repleta de orientalismo e preconceito, que é reproduzida sem nenhuma reflexão ou vontade de realmente conhecer o que se passa fora das fronteiras de seu continente. 

 

*Todos os entrevistados preferiram ter suas identidades preservadas.

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