Nesse dia 25 relembramos a importância da figura desse jornalista na história recente do país
Por Mariane Roccelo (mariane.roccelo@gmail.com)
“Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras!
É canto funeral! … Que tétricas figuras! …
Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror! “
Foram os versos de Castro Álves citados por Audálio Dantas, então presidente do sindicato dos Jornalistas, durante o enterro de Vladimir Herzog, em 1975. Neste 25 de outubro completam-se 37 anos da morte deste jornalista, que acabou por se tornar um dos maiores símbolos da luta contra a cruel repressão do período da ditadura militar brasileira.
Ao longo destes 37 anos, sua família e amigos lutaram para que a morte de Herzog fosse devidamente esclarecida. No último dia 24 de setembro seu atestado foi retificado, e sua morte foi dada por decorrência de lesões e maus tratos sofridos nas dependências do Doi-Codi, ao contrário da “morte por voluntário suicídio” que consta no atestado da época.
Vlado Herzog nasceu na Iugoslávia em 1937. Aos cinco anos foi obrigado a fugir para a Itália com seus pais, Zora e Zigmund, devido à então perseguição nazista na Europa, aos oito anos veio para o Brasil com sua família. Adotou o nome Vladimir por considerar seu nome de nascimento “exótico” para um país da América do Sul. Em 1959, Herzog entrou no curso de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e logo em seguida foi chamado para assumir um cargo de jornalista na equipe que implantou a sucursal do jornal O Estado em Brasília.
Em 1965, Vlado recebeu uma bolsa para trabalhar na BBC de Londres, saiu do país com sua mulher Clarice e seus dois filhos, Ivo e André. Estendeu sua morada na Inglaterra fazendo um curso de produção de televisão, associado à TV Cultura. Ao voltar para o Brasil, trabalhou como editor de cultura na Revista Visão, chefiou a sucursal do jornal Opinião em São Paulo e, finalmente, dirigiu o departamento de telejornalismo da TV Cultura onde teve sua carreira encerrada. Suas atividades não estavam ligadas apenas aos veículos jornalísticos, Herzog adorava cinema e planejava aprimorar seus estudos nessa área, dirigiu o documentário-denúncia Marimbás e também deu aulas de jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da USP.
Tortura e morte
Na manhã do dia 25 de outubro de 1975, Vlado levantou-se calmamente após uma noite de sono tranquila. Na noite do dia anterior havia sido abordado, durante seu trabalho na TV Cultura, por dois agentes de segurança que diziam ter ordens de levá-lo ao Destacamento de Operações Internas do II Exército, o Doi-Codi, mas poderia passar a noite em sua casa e comparecer apenas no dia seguinte. Era algo já esperado, semanas antes o nome de Vlado e de outros jornalistas foram citados por Cláudio Marques, em sua coluna no jornal Shopping News, sobre envolvimento e atuação comunista na TV Cultura. Outros 11 jornalistas estavam detidos quando Vlado chegou no Doi-Codi, aparentemente seria mais um caso de detenção que duraria no máximo algumas semanas. Entretanto, às 18 horas daquele dia Vladimir Herzog se encontrava morto, após longas sessões de tortura.
Na sala em que Vlado foi “interrogado”, estava presente a equipe de torturadores liderada pelo investigador de polícia e funcionário do Doi-Codi, Pedro Antônio Mira Gracien. O método comumente usado para a obtenção das confissões era colocar o torturado na chamada “Cadeira do Dragão”, espécie de cadeira elétrica apelidada de “pimentinha” pelos torturadores brasileiros. Depois de ser torturado, Vlado teria escrito uma carta onde confessava sua ligação com o partido comunista e mencionava o nome de alguns outros colaboradores. Mas, na hora de assinar, ele teria picotado a carta, o que enfurecera os torturadores que então aumentaram a dose de crueldade, levando à morte do jornalista.
Muitas foram as tentativas de dizer que a morte de Vlado fora por decorrência de um suicídio, “asfixia mecânica por enforcamento” como diz o laudo médico emitido na época. Entretanto,muitas eram as evidências de que sua morte fora provocada, na verdade, pelas torturas sofridas no Doi-Codi. Tantas eram essas evidências, tanto no corpo do jornalista quanto nas falhas da história contada, que três anos após o ocorrido, o juiz Márcio José de Moraes declarou que o laudo emitido era imprestável e que a União foi responsável pela morte de Herzog.
Mais de mil pessoas compareceram ao enterro, cerca de 30 mil estudantes da Universidade de São Paulo, apoiados por professores, paralisaram suas atividades por uma semana pela perda do docente. O sindicato dos jornalistas passou a adotar uma postura mais resoluta contra o regime, e o apoio a estes jornalistas foi se multiplicando por todo país.
A reação popular
A sociedade brasileira aos poucos foi reconhecendo as mentiras do chamado “milagre econômico” divulgado durante o regime militar. A crise econômica que afundou o país nas décadas seguintes já mostrava suas primeiras garras. A desumanidade e opressão do regime era algo cada vez mais evidente e menos suportado, não só por aqueles que sempre lutaram contra, mas também pela parte da sociedade que antes o apoiara. A morte de Vlado foi como a gota d’água que faltava para que a sociedade exausta transbordasse, foi a “argamassa que uniu as correntes oposicionistas” – como revela Rodolfo Konder no prefácio do livro Dossiê Herzog, de Fernando Pacheco Jordão – e, apesar do país não ter passado rapidamente para um estado democrático, a partir de então a ultra-direita se viu obrigada a se explicar e justificar seus atos perante a sociedade.
Após a morte de Herzog, um culto ecumênico foi marcado pelo sindicato dos jornalistas, em São Paulo, para o dia 31 de outubro do mesmo ano. O culto foi realizado na catedral da Sé, cerca de 500 policiais foram designados para patrulhar os arredores do local. A chamada operação Gutemberg tinha o objetivo de impedir o acesso do público à catedral. Entretanto, todos os esforços para diminuir o evento foram em vão, quando, na manhã do dia 31, cerca de oito mil pessoas compareceram ao culto em homenagem à Vlado Herzog.
A Comissão da Verdade
Tendo início a Comissão da Verdade, na qual serão investigados os crimes contra direitos humanos na época que vai de 1946 a 1988, outras vítimas desse período turbulento da história brasileira poderão ter algumas verdades esclarecidas, algumas injustiças expostas. O nome de Herzog foi um dos primeiros símbolos dessa conquista popular em defesa da Memória, da Verdade e da Justiça no Brasil. Em setembro deste ano foi dada a ordem de retificação de seu atestado de óbito, ao contrário do “voluntário suicídio” presente no atestado de 1975, na retificação consta a verdadeira causa da morte do jornalista, a qual “decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército – SP (Doi-Codi)” .
Apesar das dificuldades em sua carreira, impostas pelo regime, Vlado surpreendia ao dizer que “não devemos ter medo das próprias emoções”. Segundo seu amigo de colégio e de carreira, Luiz Weis, o que Vlado realmente temia era o que chamava de “insensibilidade olfativa gradativa”, quando nos acostumamos a conviver com algo ruim e paramos de lutar contra este algo, ideia mais explícita na frase que, segundo seu colega, dissera muitas vezes: “de tanto ficarmos no meio da merda a gente se acostuma com o cheiro”.
O regime militar vitimou cerca de três mil e quinhentas pessoas, entre mortos, torturados, presos e banidos. A reabertura dos inquéritos envolvendo crimes contra direitos humanos no Brasil nos relembra a importância de não permitirmos que essa insensibilidade gradativa deixe impunes as dezenas de assassinos que se esconderam e se escondem ainda hoje nas “frestas podres” do estado.
“Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala”
Navio Negreiro – Castro Alves